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A Grande Família

Os quase 19 anos no ar, os segredos da estréia nos cinemas, a polêmica com o Brasil... O que pensam os membros da família mais famosa da televisão mundial - segundo os seus próprios criadores

Pablo Miyazawa Publicado em 22/09/2008, às 18h40 - Atualizado em 10/03/2014, às 16h39

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A nudez de Bart é um dos paradigamas quebrados em Os Simpsons - O Filme - The Simpsons TM and © 2007 Twentieth Century Fox Film
A nudez de Bart é um dos paradigamas quebrados em Os Simpsons - O Filme - The Simpsons TM and © 2007 Twentieth Century Fox Film

"126 dias, 4 horas, 58 minutos"

Implacável, a contagem regressiva do painel digital dependurado paira pesadamente sobre o que pode ser descrito como um "caos organizado". A disposição das mesas, cadeiras, computadores e papéis, a decoração, o cheiro, a temperatura glacial do ar-condicionado remetem a um tedioso escritório de contabilidade ou a uma frenética agência de criação. Nem uma coisa nem outra, aquele trailer adaptado abriga cerca de 25 artistas profissionais, homens e mulheres concentrados em uma luta coletiva contra a inevitabilidade do tempo.

Aquela é apenas uma entre as dezenas de equipes responsáveis pela produção de Os Simpsons - O Filme, primeiro longa-metragem baseado no seriado de animação mais popular da história da televisão mundial. Naquela derradeira semana de março, meros 126 dias separavam aqueles trechos inacabados de desenho da estréia nos cinemas norte-americanos. O tempo não pára, e a incessante contagem regressiva pendurada na parede não permite a ninguém ignorar o fato.

O estúdio de criação de Os Simpsons é um organismo virtualmente vivo. Desenhistas rabiscam personagens com notável facilidade diretamente nas telas LCD de seus caríssimos tablets Wacom Cintiq. No lado oposto do quarto, artistas dão cor digitalmente às cenas recém-desenhadas. A equipe de áudio experimenta ruídos e aplica vozes sobre as seqüências animadas. Outros analisam storyboards sobre mesas sem espaço vago, tomadas por pilhas de papéis, materiais de escritório e embalagens de fast food. Debruçados sobre suas tarefas, todos parecem ocupados demais para levantar os olhos e atentar para o pequeno grupo de jornalistas que torna aquele microespaço ainda mais intransitável. Há muito para se ver, ao mesmo tempo, quase nada para se decifrar. Nenhuma pista ou evidência é digna de lembrança. Existem outros trailers iguais àquele em um espaço não muito distante, onde a velocidade de produção e a urgência são as mesmas, se não piores. Por volta de 300 profissionais trabalham simultaneamente na produção do filme - exatamente a mesma equipe que produz cada um dos 24 episódios do seriado exibidos anualmente.

As palavras enfáticas pronunciadas minutos antes pelo produtor executivo James L. Brooks, uma espécie de capataz da franquia Simpsons, aqui parecem fazer todo sentido: "Qualquer pessoa que aparecer no estúdio um dia desses e nos vir trabalhando irá pensar que aquele é o primeiro ano do programa, tamanha a intensidade, o cuidado e o empenho com que realizamos as coisas".

Notícias sobre um possível longa-metragem de Os Simpsons percorrem a imprensa desde 1996, mas a Fox, empresa detentora dos direitos da série, só passou a tratar o tema oficialmente a partir de 2005. Boatos afloravam pela internet e davam como certo que: a animação só seria realizada após o encerramento da série na TV; ou que seria realizada em três dimensões; ou que os personagens seriam interpretados por atores de carne e osso. No caso de um filme com bilheteria garantida, baseado em uma franquia de US$ 1 bilhão, manter segredo absoluto confirmou ser a alma do negócio. Nenhum detalhe sobre o enredo havia sido revelado à mídia até aquela semana de março. O trailer, divulgado semanas antes, pouco ou nada esclarecia. Um termo de sigilo assinado no saguão do hotel, antes do percurso a pé até os estúdios de produção de Os Simpsons, em Century City (Los Angeles), indicava que algo quente estaria para ser desvendado.

Dentro do complexo - uma verdadeira cidade de proporções reduzidas -, os jornalistas eram direcionados em fila indiana até uma mesa repleta de xícaras de café e rosquinhas cobertas por creme cor-de- rosa e confeitos coloridos - não por coincidência, as favoritas de Homer Simpson. Uma réplica em fibra de vidro da mais emblemática pose gerada pela série nos últimos 18 anos - a família amarela esparramada no sofá - convidava os visitantes para um instantâneo histórico. A porta negra logo ao lado dava acesso a uma pequena sala de cinema com capacidade para não mais do que 100 pessoas sentadas. Como é praxe na recente era da paranóia.com, bolsas, câmeras e celulares ficaram retidos na entrada. Fomos lembrados das restrições que deveriam ser praticadas durante os meses seguintes. David Silverman, o diretor do longa, avisava que os dez minutos que veríamos não estavam finalizados, e para não ser levada em conta a qualidade técnica, e sim o conteúdo apresentado. E reiterou o pedido de silêncio em relação a tudo o que seria exibido, principalmente ao que ele chamou de "grande segredo". Frames ainda desenhados a lápis se misturavam a trechos já finalizados, ao lado de pedaços incompletos e sem sincronia de voz. Nas cenas coloridas, a melhoria na qualidade da animação ficava evidente. A idéia de que o filme será um mero episódio de luxo cai rapidamente por terra assim que uma frenética seqüência de ação envolvendo Bart Simpson se inicia. Quando começa a ficar realmente empolgante, a exibição termina. E aquele esperado "segredo" não se mostrou assim tão grande.

Aqueles dez minutos exibidos entregavam muito pouco, ou quase nada: uma participação musical inédita na cena de abertura (diga-se, o Green Day - "Alguém nos avisou que eles queriam aparecer em Os Simpsons, e assim foi", resumiu o criador da série, Matt Groening), uma seqüência de iluminação espiritual dentro de uma igreja, uma mensagem de conscientização ambiental e uma intensa cena de ação que culmina em uma verdadeira quebra de paradigma, conforme definiu o produtor executivo Al Jean: "A maior piada do filme nós não podemos mostrar na TV". A seqüência em questão mostra Homer e Bart realizando uma aposta: o pai duvida que o filho tenha coragem de andar de skate completamente pelado por um longo trecho na área central de Springfield. Bart vence o desafio, e o espectador é premiado com o primeiro nu frontal da história da família Simpson.

Parece improvável que seja essa a única real ruptura oferecida pela estréia dos personagens de Matt Groening na tela grande. A promessa é a de uma história independente (porém relacionada) ao seriado, com óbvias conseqüências posteriores nas próximas temporadas. "Não queremos excluir ninguém, ninguém vai poder reclamar que não entendeu a piada", argumenta Jean. "Se alguém assistir ao filme sem jamais ter assistido a um único capítulo do seriado da TV, irá curtir o filme. E esperamos que, após isso, comece a assistir o seriado." Fazendo coro, James L. Brooks justificou a efemeridade da obra: "Temos algumas surpresas reservadas para o filme. Por um lado, queremos manter as coisas em segredo. Por outro, estamos sempre mudando, tanto que é difícil dizer o que estará mesmo na versão final".

Apesar de a Fox divulgar que a história não será focada em nenhum protagonista específico, é certo que será Homer o causador da grande catástrofe que precisa ser resolvida ao longo da trama. Arquétipo do homem simples de classe média, morador de subúrbio, bebedor de cerveja, o patriarca da família Simpson há muito tomou de Bart o posto de ícone mais poderoso da franquia: dados não oficiais divulgam que ele é, de longe, o personagem mais vendido em camisetas, brinquedos e memorabília. Apesar de tê-lo batizado com o nome de seu pai na vida real, Groening jura que o personagem não é autobiográfico. "O Homer é um cara guiado pelos impulsos. Todo mundo consegue se enxergar nele", teoriza.

Al Jean discorda, às gargalhadas: "Eu acho que o resto do mundo só gosta do Homer porque enxerga nele o estereótipo do típico norte-americano". O que não deixa de ser uma verdade.

A longa escadaria rumo a um andar inferior conduz a um labirinto de corredores mal iluminados, com aparência descuidada e de teto baixo. Algumas esquinas adiante, surge o que parece ser a mais secreta sala de conferências do complexo dos estúdios Fox. Diante da pequena platéia com poltronas enfileiradas, cinco banquinhos de madeira aguardam para serem ocupados. O núcleo duro por trás de Os Simpsons finalmente toma seus lugares, com dez minutos de atraso. David Silverman, o diretor do filme; os produtores executivos Al Jean e James L. Brooks; o roteirista Mike Scully; e Matt Groening, criador, produtor executivo e espécie de mentor espiritual. Nenhum daqueles rostos parece vagamente familiar, exceto o de Groening, o único nome realmente conectado à marca Simpson, visivelmente mais robusto do que nas fotografias. Todos aparentam ter por volta de 45 anos, para mais ou para menos. Brooks, o mais velho, tem 67. Vestem-se de maneira uniforme, com a típica formalidade displicente do norte-americano médio: jeans, camisas sociais de manga comprida, sapatos casuais, penteados caretas. Aqueles cinco tios tanto poderiam passar por criadores da animação mais incrível da televisão mundial quanto por vendedores de eletrodomésticos, corretores de seguros ou qualquer outro emprego menos interessante.

Apesar de Groening ser reconhecido como o homem que inventou Homer, Marge, Bart, Lisa e Maggie, é Brooks quem se comporta como o dono do brinquedo - e tem cacife para tanto. Produtor, diretor, roteirista com três Oscars e 17 prêmios Emmy na estante, ele é o dono da Gracie Films, produtora que apresentou Os Simpsons aos executivos da Fox há 20 anos. Al Jean é o piadista, e divide com Brooks a tarefa de responder as questões mais técnicas. Silverman é discreto, parece que acabou de entrar para a equipe, apesar de trabalhar com Groening desde os primeiros esboços dos Simpsons. Scully, de tão silencioso, quase se confunde com a sombra na parede.

Fica evidente rapidamente o porquê de a grande maioria das entrevistas relacionadas aos Simpsons serem concedidas coletivamente. Juntos e falando quase ao mesmo tempo, aquele grupo magicamente se comporta como uma família. A brincadeira velada, parece, é replicar rapidamente uma resposta sobre a frase do outro. A amarração com que as sentenças são emendadas soa exaustivamente ensaiada. Nenhuma pergunta os pega de surpresa, apesar de a campanha de divulgação do filme ter se iniciado poucos dias antes. O tom das respostas, porém, passa a sensação de uma empolgação genuína e pueril, como se aquele projeto representasse a maior realização já atingida nas carreiras dos cinco marmanjos.

Pergunta: "Por que fazer um longa-metragem só agora?"

Jean: "Começamos a pensar em fazer o filme em 2001, mas levamos uns dois anos para escrever o roteiro, iniciar a animação... Acho que se tentássemos fazer este filme há uns 10, 15 anos, não conseguiríamos de jeito nenhum, porque ele depende totalmente da tecnologia digital para funcionar".

Groening: "Se fôssemos fazer este desenho em 2001, não teríamos nem equipe suficiente para fazer o desenho e o filme ao mesmo tempo".

Brooks: "E jamais conseguiríamos mostrar no seriado aquelas piadas físicas, tipo comédia pastelão. Graças aos novos recursos, podemos fazer tudo o que quisermos, com muito mais detalhes".

Silverman: "Nós só queremos fazer o melhor trabalho possível. Mas a maior pressão quem coloca somos nós mesmos".

Pergunta: "Qual a diferença de se fazer o filme e o seriado?"

Brooks: "É uma experiência que não tem comparação. Visualmente falando, conseguimos alcançar coisas que jamais foram possíveis antes."

Silverman: "Sempre que estamos trabalhando no filme, me leva um pouco de tempo conseguir mexer na série novamente, porque a animação é tão superior, tão mais avançada".

Jean: "Há coisas que nem conseguiríamos fazer na TV, porque a tela é pequena, não há espaço. Na tela grande é possível ver a imagem maior, com mais detalhes. Conseguimos colocar diversos personagens em uma única tomada. Dá para ver a cara de todo mundo e reconhecer cada um".

Groening: "A gente premia os fãs detalhistas. Aqueles que prestarem muita atenção vão encontrar referências, coisas bem escondidas que só fãs de verdade vão perceber. E tem coisa muito bem escondida ali".

Brooks: "Nós temos tipos diferentes de fãs. Tem aqueles que começaram a nos acompanhar há 15 anos. E tem gente que acabou de começar a assistir".

Groening: "De vez em quando, exibíamos uns episódios para platéias e era gratificante escutar uma sala cheia de gente rindo ao mesmo tempo. Para mim, fazer um filme é um modo de repetir essa experiência".

Formalidade e bom-mocismo duram até surgirem as oportunidades certas - ou as perguntas mais estúpidas. E como em um passe de mágica, os Simpsons em carne e osso se materializam diante de nossos olhos.

Pergunta: "Qual é a posição política da equipe?"

Jean: "Bem, duas pessoas entre nós são adoradores de cobras".

Brooks: "Acho que ninguém aqui perderia a chance de liderar um culto..."

Matt: "O problema é que as pessoas enxergam o que querem e se agarram ao que querem".

Brooks: "A verdade é que a gente até se leva a sério, mas não temos a intenção de mudar a cabeça das pessoas".

Jean: "Se bem que eu li em algum lugar que existe um culto na Inglaterra no qual as pessoas se vestem como o Ned Flanders..."

Ou então:

Pergunta: "É verdade que vocês consideraram fazer o filme de Os Simpsons com atores de verdade?"

Jean: "Quando começamos a produzir o filme, as pessoas me perguntavam se seria em computação gráfica, e diziam que esperavam que fosse igual ao original, não diferente".

Brooks: "Mas nós jamais consideraría-mos fazer o filme com atores de verdade!"

Groening: "Marionetes? Sim."

Brooks: "Leonardo DiCaprio é o próprio Homer!"

E caem na gargalhada.

A estréia de Simpsons - O Filme está marcada para 27 de julho nos Estados Unidos e na maioria dos países da Europa e Ásia; ao Brasil, chega somente três semanas depois, 17 de agosto. Um atraso que se torna significativo se analisada a quixotesca relação recente do país com a animação. Dois fatos são dignos de nota.

Em 2005, o jornalista William Bonner se utilizou da figura de Homer para descrever a um grupo de professores universitários o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. A repercussão negativa da comparação obrigou Bonner a divulgar uma nota, na qual dizia que sua visão do personagem não era preconceituosa - pelo contrário. "Refiro-me a pais de família, trabalhadores, protetores, conservadores, sem curso superior, que assistem a TV depois da jornada de trabalho. No fim do dia, cansados, querem se informar sobre os fatos mais relevantes do dia de maneira clara e objetiva. Esse é o Homer de que falo."

Antes mesmo de ser transmitido no país, o episódio da visita dos Simpsons ao Brasil ("Blame It on Lisa", ou "O Feitiço de Lisa", exibido nos Estados Unidos em 31 de março de 2002), resultou em um quase-incidente diplomático. Ambientado integralmente no Rio de Janeiro, o capítulo retrata a metrópole como um local onde macacos, serpentes e ratos infestam as ruas, os taxistas são seqüestradores, as apresentadoras de TV são strippers, e conga, macarena e "penetrada" são danças típicas praticadas pelos locais. Entre as repercussões negativas, reclamações públicas da Riotur ("Se a Fox está tão preocupada com a pobreza de nossas crianças, deveria doar os lucros relacionados ao episódio para os programas sociais do Rio de Janeiro", declarou José Eduardo Guinle, Secretário de Turismo da cidade na época), mensagens de repúdio do então presidente Fernando Henrique Cardoso e ameaças de processo do governo carioca contra a Fox. A imprensa estrangeira repercutiu o fato, o que forçou a emissora a preparar um pedido público de desculpas - com direito a alfinetada - assinado pelo produtor James L. Brooks: "Pedimos desculpas à amável cidade do Rio de Janeiro. Se isso não resolver a questão, Homer se oferece para lutar com o presidente do Brasil no [programa humorístico] 'Celebrity Boxing'".

A rusga pareceu superada, e os processos engavetados. No entanto, os Simpsons jamais retornaram ao Brasil, e mínimas referências ao país têm sido feitas na série desde então. Aparentemente, Matt Groening não conseguiu superar o trauma de ter mexido com o orgulho de um país - ou pelo menos é assim que ele pensava ter acontecido. Ao final da entrevista coletiva, quando me apresento como jornalista brasileiro, ele parece visivelmente vexado. Sorri, abaixa a cabeça e continua a rabiscar um Bart Simpson em uma folha em branco com uma caneta hidrocor vermelha. "Brasil... Ah, fizemos coisas horríveis com o Brasil", lamenta, franzindo a testa, dando o retoque final ao desenho.

Antes que o constrangimento explodisse nossas cabeças, procuro mudar de assunto, mas ele mesmo se presta a quebrar o gelo. "Sabe que um dos meus artistas favoritos é brasileiro?", me encara, sorrindo, esperando que eu acerte em cheio. Jobim? Caetano? Chico? Gil? Vinícius? Os chutes passaram longe. "Conhece o Ed Lincoln, o pianista? Ele é incrível! Adoro aquele disco dele, A Volta, sabe qual é? É fantástico!"

Assunto para uma próxima conversa, definitivamente, não iria faltar.

A assessora de imprensa internacional da Fox parece não compreender a razão de minha necessidade de entrevistar Matt Groening mais uma vez. "Mas você já não falou com ele? Você sabe que ele não é a única pessoa importante em Os Simpsons, né? Tem o James L. Brooks, o Al Jean..." Explico que gostaria de reforçar o papo com o criador do desenho animado, mesmo ele tendo hoje um papel mais simbólico do que realmente atuante. Questionado sobre quais seriam os assuntos da entrevista, sou o mais genérico possível: rotina, gostos pessoais, os filhos, a paixão dele por música brasileira. Ficou acertado que ele mesmo me ligaria em uma semana. Certo.

Nascido em Portland (Oregon), Groening, 53 anos, se esforça para equilibrar a função de "criador dos Simpsons" com as de "profissional metódico" e "pai dedicado". Acorda por volta das 6 da manhã, prepara o café da manhã dos filhos adolescentes de 15 e 18 anos (Abe e Homer, frutos do casamento com Deborah Caplan) e pessoalmente leva cada um para uma escola diferente. Dirige seu próprio carro até os estúdios Fox, do outro lado de Los Angeles, onde, graças à produção do filme, permanece ocupado até as 10 da noite. Discreto e avesso a colunas sociais, dificilmente é reconhecido na rua - "Só uma ou duas vezes por dia. Isso não me irrita. Se eu fosse a cara do Bart Simpson, aí sim, seria terrível". Publica a tira em quadrinhos Life Is Hell desde 1980, a qual desenha sem a ajuda de ninguém e finaliza às 17h30 de todas as sextas-feiras, religiosamente.

Quando tem (raro) tempo livre, fica em casa ou sai para assistir música ao vivo. Há 20 anos, bate ponto no mundialmente famoso Festival de Jazz de New Orleans. A paixão pela música vem do tempo em que escrevia resenhas musicais para publicações de pequeno porte. "Eu era um péssimo crítico. Curtia escrever apenas sobre o que gostava, porque não queria dar de frente com alguém sobre quem escrevi um review negativo! [risos]", diz, recordando o momento mais constrangedor de sua carreira. "Eu sempre fui fã de Oingo Boingo e costumava escrever coisas boas sobre eles. Mas, uma única vez, escrevi um review negativo. O Danny [Elfman, vocalista do grupo] estava fazendo trilhas para filmes, e eu queria de qualquer jeito que ele fizesse o tema de Os Simpsons. Quando o encontrei, pensei: 'Ah, ele nem vai se lembrar de mim!'. Mas ele se lembrou, a primeira coisa que ele comentou quando nos vimos foi sobre a crítica que fiz. Eu não sabia onde enfiar a minha cara."

Ele se diz fascinado por "canções que não tocam no rádio" e "coisas que não encontra nas coleções das pessoas normais": mantém em seu escritório na Fox uma extensa coleção de discos de diversas partes do mundo, separados por país, em ordem alfabética. De música brasileira, possui álbuns de Baden Powell, Tom Zé, Caetano Veloso, Mutantes e Gilberto Gil. Também é um dos integrantes da Rock Bottom Remainders, banda formada por escritores consagrados como Stephen King, Amy Tan e Dave Barry, especializada em shows para caridade ("Eu costumava tocar pandeiro, mas o arrancaram de mim e tudo o que eu faço é cantar"). Apesar de dar espaço a celebridades musicais em seu próprio desenho animado, possui poucos amigos no mundo do rock. O mestre Frank Zappa, morto em 1993, era um deles. "Ficamos amigos porque ele era fã de Os Simpsons e uma vez fomos entrevistados pelo mesmo jornalista. Liguei para ele, que me convidou para ir a sua casa. Eu costumava ir lá para ouvir música, bater papo, era fantástico. É triste ele ter morrido. Era um gênio."

Por telefone, Matt consegue ser ainda mais afável do que ao vivo. Ele se surpreende quando recordo nossa conversa de dois meses antes, especialmente quando cito seu gosto confesso por Ed Lincoln, que conheceu através de discos que seus pais, Homer e Margaret Groening, trouxeram de uma viagem ao Rio de Janeiro, em 1966.

"Meus pais eram cineastas e foram ao Rio para fazer uns filmes publicitários", relata, sem esforço de memória. "Eles acabaram fazendo um curta-metragem por lá, The Secret of the Universe. Tinha dois minutos de duração e consistia em uns meninos de rua chutando uma bola de futebol, equilibrando-a na cabeça, passando um para o outro sem deixar encostar no chão. Ninguém nos Estados Unidos havia visto algo como aquilo. A trilha sonora era uma espécie de orquestra cheia de percussões malucas. Eu acho até que eles gravaram esses sons eles mesmos, nas ruas, não sei bem onde foi..."

A terapia de regressão forçada não parece incomodar. "Daí, eles trouxeram uns discos brasileiros na bagagem, e um deles foi A Volta [1964], do Ed Lincoln, o qual, por coincidência, se encontra aqui na minha frente neste exato momento. Inclusive eu o ouvi esses dias, é um dos meus favoritos de todos os tempos. Significa 'the return', né? Adoro música brasileira. Esse disco foi minha introdução, eu tinha só 12 anos e fiquei fascinado. Por isso ele tem um significado especial para mim."

Aproveitando que o Brasil estava em pauta, descrevo a ele minha sensação de nosso primeiro encontro. Questiono, quase pisando em ovos, se ele realmente se envergonhava tanto da repercussão do episódio brasileiro ou se estava só forçando a barra.

"Pensamos que estávamos sendo engraçados, que tínhamos feito algo divertido. Percebemos que qualquer coisa que tentássemos...", Groening parece perder as palavras, pontua as frases com monossílabos, titubeia, enfim despeja: "Bem, a gente sacou que, se tentássemos retratar o Brasil de forma precisa, não iria funcionar. A gente não tinha informações suficientes. Então, o jeito foi tentar ser o mais ridículo e exagerado que fosse possível. Afinal, já tiramos sarro de tudo normalmente, não haveria problema. Mas algumas pessoas não ficaram felizes com isso", a frase seguinte só sai depois de um longo suspiro. "Mas quer saber? Eu não tinha nenhuma intenção de fazer algo que ofendesse as pessoas!" Respirando aliviado, dá uma sonora gargalhada.

Ovos esmagados, portas abertas, insisto que a tal repercussão negativa que ele ouvira falar se deu apenas com órgãos oficiais e que o público, de maneira geral, havia se sentido mais homenageado do que desprestigiado. "Sério? Oh, que bom. É que nós lemos algumas coisas na imprensa... E você sabe, minha atitude é um pouco mais, como dizer, sensível do que a de algumas pessoas que trabalham comigo. Tem aquela coisa: quando você faz um desenho animado, parte da graça é saber que você está ofendendo alguém." Ele ainda não se dá por satisfeito: "Olha, quero deixar claro que eu não queria fechar nenhuma porta por aí. Eu gostaria muito de poder visitar o Brasil".

O tom de desabafo tira o peso da conversa e de suas costas. "Sabe, foi uma grande surpresa essa história toda. A gente produz 24 episódios por ano, fazemos várias coisas que pensamos: 'Isso realmente vai irritar as pessoas', e ninguém está nem aí. E justamente aquelas coisas que nem levamos a sério, sabe-se lá por que, acabam tomando proporções muito maiores. Vai entender..."

Por fim, Groening jurou que adora o Brasil ("Eu amo a cultura, a história, as extraordinárias belezas naturais") e os brasileiros ("A maioria dos brasileiros com que tive contato me pareceu dois níveis mais feliz que as outras pessoas"), e prometeu visitar o país como turista, assim que tiver um tempo livre. E os Simpsons, será que um dia voltam ao Brasil? "Ah, se conseguirmos criar uma maneira de fazer isso sem parecer que estamos pedindo desculpas, claro que sim. Seria ótimo!"

Walt disney está para Mickey Mouse, assim como Matt Groening está para Homer Simpson.

Desde 1987, sua assinatura consta do pé de página de toda e qualquer imagem relacionada ao clã de Springfield. Foi ele quem rabiscou os personagens pela primeira vez, minutos antes de uma reunião com a Fox agendada por James L. Brooks. O encontro serviu de ponto de partida para a participação de Groening no The Tracey Ullman Show: ele criaria vinhetas animadas de 15 segundos, exibidas nos intervalos dos esquetes cômicos do programa de auditório. "Eu olho para aqueles primeiros desenhos e não acredito como chegamos aonde estamos. Eles eram muito feios", exagera o cartunista.

A falta de tempo fez com que cada personagem fosse batizado com os nomes de seus familiares - seus pais realmente se chamam Homer e Marge; ele tem duas irmãs, Lisa e Maggie; Bart - inspirado nele mesmo (ele nega) - é um anagrama de "brat", ou pirralho. Foi só em dezembro de 1989 que Os Simpsons ganhariam o espaço exclusivo no horário nobre que jamais perderiam. Com pouca experiência no mundo da animação, Matt já contava com uma equipe de artistas que o ajudaram a animar seus esboços.

"Quando vimos os primeiros desenhos do Matt em 1987, não víamos a hora de transformar aquilo em animação. Os desenhos que existiam na época tinham que seguir um determinado estilo de um estúdio. Foi legal encontrar algo realmente único e diferente", recorda David Silverman. Groening, por sua vez, devolve os confetes: "David faz parte da equipe desde o início, e foi ele quem estabeleceu as regras para desenhar os personagens. Foi ele quem determinou como sendo nove a quantidade de fios de cabelo na cabeça de Bart. Eu desenhava uns 25, ele reduziu para menos". A modéstia, diga-se de passagem, é característica intrínseca ao criador de Os Simpsons. Em entrevistas, ele jamais atribui mais importância a si mesmo do que aos companheiros de trabalho. "Este programa é uma visão coletiva, e esta é uma das razões de ele funcionar tão bem: todo mundo participa, todo mundo fornece alguma coisa. Os dubladores adicionam algo aos diálogos, os animadores contribuem com os roteiros, os autores palpitam nos storyboards..." Groening não se esforça para ser humilde, mas o consegue em 100% do tempo. Também faz sempre questão de lembrar que não é o dono dos Simpsons. "É bom deixar claro que este não é meu programa, não são meus personagens. Eu os desenhei pela primeira vez, mas é gente como James Brooks, Al Jean, David Silverman e os outros animadores que fazem todo o trabalho pesado, são eles que fazem os personagens ganharem vida. Às vezes, eu me sinto como se fosse Zeus, como se eu estivesse aposentado e tudo mais."

Na função de criador e produtor executivo, ele se encontra na confortável posição de aprovar o que gosta e desaprovar o que não gosta, função que prefere glamurizar. "Eu não tenho uma única função. Temos pessoas que apenas escrevem, outras que só desenham. Eu basicamente faço um pouco de cada", explica. "Tento liderar o barco e garantir que aproveito o máximo de cada um dos lados, garantir que a gente se mantenha fiel ao nosso estilo, que já é bem definido." E, com um exemplo, define o chamado "estilo Simpsons": "No início, todo mundo que fazia desenhos animados cultuava Walt Disney, Pernalonga, os velhos clássicos, e tentava repetir esse estilo. Em Os Simpsons, a gente usa um estilo bem simples, que é só nosso. Por exemplo, no primeiro episódio, a Marge e o Homer saem para dançar em uma casa noturna. Quando os animadores desenharam a cena, os fizeram dançando como se fossem profissionais. Eu disse: 'Não, não pode ser assim! Eles são ruins, fora de forma, não podem dançar tão bem'. Os Simpsons são desajeitados, descoordenados, e é exatamente isso que os torna engraçados".

Um único episódio de Os Simpsons tem 22 minutos de duração e leva de seis a oito meses para ser produzido, desde os primeiros esboços de roteiro até sua finalização, cinco dias antes da primeira exibição na TV norte-americana. Os roteiros são escritos a várias mãos, reescritos e testados em leituras com todos os produtores, roteiristas e dubladores presentes, em uma enorme sala para 50 pessoas. Cada dublador normalmente faz a voz de mais de um personagem (Dan Castellaneta, o Homer, também dubla outros 13 personagens. Hank Azaria, o Moe, faz 16). A terça-feira antes da primeira exibição, dia da mixagem de som final, marca o final do processo, quando vozes, músicas e efeitos sonoros são adicionados definitivamente às cenas.

Normalmente, o resultado final de um episódio pouco tem a ver com as idéias propostas inicialmente. Essa máxima também se aplicou ao filme. "Mudamos coisas no último segundo. De vez em quando, as coisas não funcionam, apesar de acharmos que funcionariam. A idéia parece boa, mas, quando a desenvolvemos, percebemos que não é tão divertida quanto pensávamos", confessa Groening. "Nós enlouquecemos os animadores com isso."

Em novembro de 2002, os Simpsons apareciam - com três versões diferentes - pela segunda vez na capa da Rolling Stone norte-americana. Na época, o seriado comemorava 300 episódios no ar e Groening cogitava vagamente a idéia de produzir um longa-metragem inspirado em seus personagens. Quase cinco anos depois, o discurso evoluiu. Comemora-se o fato de Os Simpsons terem ultrapassado os 400 capítulos. Os últimos retoques no aguardado filme são adicionados enquanto essas linhas são digitadas. Parece óbvio questionar o óbvio: o que mudou na vida do criador dos Simpsons desde então?

Pergunta difícil. "Bem, e o que não mudou?" Ele suspira. "Agora sim, parece que Os Simpsons realmente farão parte da minha vida para todo o sempre." E dá início ao monólogo que mais soa como lição de moral de final de seriado.

"Eu sinto, de verdade, como se não houvesse uma única razão para parar. Estamos nos divertindo tanto... Fazer este filme está trazendo a nossa velha inspiração de volta. A melhor coisa é que estamos mexendo com técnicas de animação muito ambiciosas, e que iremos aplicá-las mais ainda ao programa. O desenho está mais bonito do que nunca. E agora... (hesita) acho que descobri que Os Simpsons são mesmo adorados no mundo todo, o que é algo que só imaginamos enquanto estamos trabalhando. As únicas pessoas com quem conversamos sobre Os Simpsons somos nós mesmos - os roteiristas, os animadores e atores. O que acontece é que a gente volta para casa, assiste a Os Simpsons na TV e ninguém liga um para o outro para dizer: 'Ei, eu assisti ao seu desenho'."

"Mas agora..." - pausa dramática, como se fosse revelar o maior segredo da humanidade - "agora com este filme, estamos conversando com a imprensa de todo o mundo e descobrindo o quanto Os Simpsons são populares. É fantástico! Nesses países mais exóticos, exóticos para a gente [faz questão de reiterar], como o Brasil, a intensidade e o entusiasmo são impressionantes."

É difícil crer que o Walt Disney de nossos tempos ignorava a popularidade mundial de sua obra-prima, mas esta é uma entre as várias contradições que cerca o estranho mundo de Homer: instituição cultural de proporções nababescas, Os Simpsons gera uma histeria que ainda espanta seus produtores. "Quando um programa surge e se torna parte da cultura da maneira que aconteceu com Os Simpsons, ninguém pode levar crédito total por isso. É o que se pode chamar de um acidente de trem que deu certo: muitas coisas acontecendo e chegando de uma única vez, que, sabe-se lá como, dão certo juntas", teoriza o produtor Brooks.

Se o futuro dos Simpsons já foi uma incógnita para seus criadores, hoje, 18 temporadas e mais de 400 capítulos depois, é cada vez mais difícil enxergar o fim do túnel, ainda que as críticas a respeito de repetições e do envelhecimento da fórmula tenham crescido ligeiramente nos últimos anos. A chegada do longa-metragem, os produtores acreditam, pode contribuir para a constante renovação do público. A repetição de fórmulas também deixou de ser a maior dor de cabeça, conforme descreve Brooks: "Há uns cinco anos, a gente ficava sofrendo a cada novo episódio - 'Oh, meu Deus, já fizemos isso antes'. E de repente demos um salto. Por alguma razão que nós desconhecemos, isso passou a ser um problema menor".

Matt Groening, raro exemplo de criador que não pára de se encantar com sua criatura, não vê problemas em se resignar com sua atual condição. "Sinto como se pudesse passar o resto da minha vida andando pelo mundo e apertando as mãos das pessoas. Eu deveria fazer exatamente isso: carregar um DVD de Os Simpsons comigo, e sair batendo nas portas das casas, perguntando: 'Olá, tudo bem? Você quer assistir a um episódio de Os Simpsons comigo?'", diz, gargalhando.

"Ainda temos muito a fazer! Agora estamos falando sobre alcançar os 500 episódios e estamos pensando no que vai haver depois disso. E será tudo sensacional. Daqui a uns dez anos, eu espero estar fazendo algo mais além de Os Simpsons. Espero ter alguma coisa a mais para trazer para o mundo. Mas se não, se eu tiver só Os Simpsons, já está bom. Está até bom demais, não acha?" Mais sonoras gargalhadas.

Penso. No lugar dele, quem não iria rir também?