Rolling Stone
Busca
Facebook Rolling StoneTwitter Rolling StoneInstagram Rolling StoneSpotify Rolling StoneYoutube Rolling StoneTiktok Rolling Stone

O Pregador da Riqueza

No sul do Brasil, o padre católico Lauro Trevisan consolidou um império esotérico milionário baseado no suposto poder da mente

Por Márcio Fernandes Publicado em 07/03/2008, às 15h38 - Atualizado em 20/02/2013, às 15h02

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
O poder da mente: Lauro Trevisan posa com seu Chrysler comprado à vista
O poder da mente: Lauro Trevisan posa com seu Chrysler comprado à vista

Um Chrysler 300 preto corta silenciosamente as ruas de Santa Maria em uma manhã qualquer de janeiro, conduzindo um passageiro conhecidíssimo na cidade que boa parte do Brasil já ouviu falar devido à sua universidade federal, à sua base aérea e aos seus personagens fascinantes, o motorista do Chrysler dentre eles. São 11 horas e, ao som de uma voz grave que recita salmos no CD-player, Lauro Trevisan assim justifica seu patrimônio, não o espiritual, mas o material: "Faço a oração da riqueza. Sou um pregador da riqueza. Deus dá o que se pede e eu pedi isso", sentencia, sem rodeios, quando o questiono sobre seu carrão, uma máquina empurrada por 340 cavalos de potência e quitada dias antes - R$ 170 mil, dos quais R$ 125 mil em cash (uma Mercedes conversível serviu para pagar o restante). Aos 73 anos, o padre Lauro, como é comumente chamado, é um peixe grande em uma cidade de cardume variado. Minutos antes de embarcar no Chrysler (painel em madeira nobre, teto solar, câmbio automático), ele estava despachando no Palácio da Mente, um colosso encravado no centro de Santa Maria (no interior do Rio Grande do Sul) que vale, por baixo, R$ 3 milhões. No cartório de registro de imóveis, o local está em nome dele, Lauro Trevisan, um padre que há 30 anos não pára de consolidar o império construído à base do poder da mente e da Era de Aquário, tendo o Evangelho como pano de fundo. "Ele parece o cara do Bee Gees", avalia um pedestre que está cruzando pela rua do Palácio, no instante em que o fotógrafo Marcos Hermes faz uma sessão de fotos com o religioso. Tivesse visto um dos quadros que o retratam e ornamentam o Palácio, o comentarista o teria comparado a Jesus Cristo, e não a Barry Gibb.

Popstar que tem Orkut e garante responder a todas as mensagens postadas, e homem de negócios internacional, Lauro Trevisan é sacerdote desde os 25. Depois disso, nunca administrou uma paróquia, arrumou discussões intermináveis dentro da Igreja Católica por conta de seus livros sobre a mente humana e há anos doa sua aposentadoria de R$ 1,5 mil mensais para o Patronato Antônio Alves Ramos, onde mora desde 1960, um complexo multifuncional que abriga desde uma olaria até uma faculdade mantida pela Sociedade Vicente Pallotti, a mesma de Trevisan. Ali, celebra missas e tem à sua disposição uma quitinete bastante frugal, na qual se sobressai uma televisão 42 polegadas - quase nada quando posta diante do telão de 3 metros que decora uma das intermináveis salas da Casa da Península, misto de mansão, hotel e centro espiritual na serra de Santa Maria que o padre mantém e usufrui nos finais de semana, ao som de pássaros, cascata - dentro do imóvel - e Beethoven.

A casa é mítica para os moradores da região. Não é difícil encontrar um punhado de gente que sonha em conhecer o lugar, de 30 cômodos, dotado de sistema de som interno e externo, distante 20 quilômetros do centro da cidade, os quais regularmente Trevisan percorre em seu Chrysler, quase sempre com amigos a bordo, todos ouvindo os tais salmos, gravados, claro, com sua voz. "E que estão à venda em CD", ressalta o religioso. Por essas e outras é que Trevisan se tornou o santa-mariense vivo mais conhecido do planeta. Seu competidor mais próximo era João Pozzobon, um agricultor com dois casamentos e sete filhos, já morto e em processo de canonização por seus 35 anos de peregrinação carregando a imagem de uma santa.

O padre Lauro atual é a cristalização de uma carreira construída por décadas, durante as quais tem relativizado vários postulados tidos como imutáveis pelos católicos, relativismo tirado de vertentes esotéricas do pensamento humano. No final dos anos 70, Lauro Trevisan era um conhecido editor de revistas católicas, membro de uma família rica da cidade e mestrando em Filosofia. Em duas décadas de sacerdócio, nunca havia sido pároco, mas seu nome estava na boca dos fiéis da fronteira gaúcha até o Mato Grosso do Sul, pelo menos, onde a revista Rainha circulava. A publicação era um estrondo e, no topo, vendia 130 mil exemplares por edição, um fenômeno até hoje. Por 15 anos, portanto, tinha sido o diretor-geral da Rainha, que, em vez dos apóstolos, estampava gente como Tarcísio Meira na capa a partir de certo período. Tido como excelente marqueteiro desde sempre e péssimo administrador (na época), perdeu o posto na Rainha e foi estudar na Universidade Federal de Santa Maria, a famosa UFSM, a primeira instituição do gênero no interior brasileiro. Ao apresentar uma proposta de dissertação que tinha mais relação com pensamento positivo do que com filosofia, ele levou bomba. A partir daí, o que era para ser um limão azedo se converteu em limonada suave: o texto serviu de base para o livro O Infinito Poder da Mente, lançado em 1980, 1 milhão de exemplares vendidos até hoje, em diversos idiomas.

Estava nascendo o mítico padre Lauro e seu alter ego, menos visível para a opinião pública - o empresário Lauro Trevisan. "No início, ele seguia a linha de desenvolver a capacidade de influenciar as pessoas e fazer amigos. Aí, descobriu que tinha enorme carisma e que estava diante de uma mina de ouro", avalia o filósofo Ronái Pires da Rocha, com a segurança de quem acompanha o dia-a-dia de Trevisan há 30 anos. Quando a década de 1970 estava acabando e ele tentava o diploma de mestre, Ronái já estava na UFSM. A memória do filósofo também é ótima quando se trata do patrimônio de Trevisan. Antes da mansão da Península, recorda o professor, o religioso dispunha da Casa da Pirâmide, agora pouco ocupada e distante alguns quilômetros de outro lugar que Trevisan mandou erguer e que, por ora, tem as portas cerradas - o Parque Oásis. Nos seus melhores dias, o balneário tinha até passeio de trem e espetáculos com neve artificial, recebendo 50 mil visitantes ao ano. Um Beto Carrero World gaúcho, digamos.

De livro em livro (já são 57), e curso após curso ("para auxiliar pessoas a desenvolverem o poder da mente, em busca da felicidade", alegava), Trevisan amealhou sua fortuna. Estimativas oficiosas falam em R$ 20 milhões, conseqüência também de cassetes, VHS, DVDs e outros negócios que sempre prosperaram. Até hoje, um dos locais nobres do centro de Santa Maria é a Livraria da Mente, um centro comercial que, obviamente, dedica uma estante de destaque a seu fundador. Mas é no Palácio que o interlocutor de Lauro mais se surpreenderá com o império da mente.

O QG está no 5º andar e quem por lá chega costuma ser recebido com uma cerimônia chamada "O ritual". Eu e o fotógrafo Marcos Hermes participamos de uma dessas edições do café-da-manhã espiritual, capaz de durar cerca de dez minutos e praticada há dez anos. A sessão inclui instantes de mentalização, de reflexão sobre escritos advindos de cartas de baralho que o padre mandou imprimir e uma dose de água mineral misturada com um suposto guaraná em pó da Amazônia. Na boca, a sensação que resta é a de que o sujeito acaba de engolir uma boa quantidade de casca esfarelada da madeira mais amarga. São necessários mais dez minutos para que o gosto desapareça da língua. Entremeios, Lauro Trevisan continua a desenrolar sua história, incluindo aí a criação dos baralhos há pouco mencionados. São três - de Jesus, de personalidades históricas e o do próprio padre, com sua visão acerca de diversos momentos da vida humana. No carteado dos famosos, a lista inclui o pensador chinês Confúcio e o americano Og Mandino, um guru mundial de vendas. Sigmund Freud é outro nominado ali.

Escrever é um dos dons do sacerdote. Poesias de Lauro Trevisan para uma Vida Melhor é uma das obras mais recentes. Em suas páginas, cabe de tudo, sempre com rima - de uma versão sua para o Pai Nosso até uma ode ao cachorro. "Se um dia, que Deus me livre / A morte botar-me o véu / Fico na porta do céu / De lá não saio nem corro / Até que Pedro decida / Que eu entre feliz da vida / Levando junto o cachorro" é o que está posto na página 36. Em seu escritório, no Palácio, Trevisan mantém uma mesa coberta com seus trabalhos, além de recordações de suas dezenas de viagens ao exterior, para oficinas, conferências ou a lazer.

Quando está no Palácio, aliás, o empresário Lauro Trevisan se sobressai. Por alguns momentos, encarna o papel de padrinho, de dindo. Seus afilhados podem ser tanto figuras públicas de Santa Maria ou a filha de sua sócia, Maria Odete Fleig, sua assistente há mais de 30 anos. Aos 53 anos, Fleig é a administradora da maioria dos investimentos de Trevisan. Para facilitar o dia-a-dia de trabalho, ela mantém aposentos no último andar do Palácio. "Ele é o artista; ela cuida do resto", define uma pessoa próxima aos dois. Bastam poucos minutos para notar que a cumplicidade entre ambos é intensa e antiga. Nos álbuns das viagens de Trevisan mundo afora, Maria Odete aparece em quase todos, assim como a menina.

Em outros instantes, quem aparece é o padre da mente, o homem que, anos atrás, deve ter sido excomungado mentalmente por dezenas, talvez centenas, de autoridades católicas ao afirmar que Jesus de Nazaré não nasceu como o filho de Deus, tendo sido transformado em Jesus Cristo somente após o batismo, aos 30 anos. "Não é impossível que ele tenha se tornado o filho de Deus somente quando do batismo", diz, mais uma vez sem voltas na língua. Em outra de suas conversas comigo, novamente tentou justificar sua ostentação patrimonial: "A vida não é um sacrifício. Deus não é sádico".

Foi por declarações assim que Trevisan arrumou meia dúzia de inimigos de peso dentro do Catolicismo. Ivo Lorscheiter, morto em 2007 e outrora o poderoso bispo de Santa Maria e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tinha pavor dele. Dom Lucas Moreira Neves, arcebispo de Salvador, era outro. Certa vez, Lauro arrumou encrenca quando disse que não via muito sentido nas rezas cotidianas, nas repetições de palavras e frases das orações católicas. "Isso parece coisa de papagaio", classificou, dizendo-se influenciado pelo pensar de Bhagwan Rajneesh, o Osho, um místico indiano do século 20 que colecionava belas jovens e Rolls-Royces. Em mais um momento de verborragia, num dos encontros comigo, enfatizou: "Eu busco a verdade e não quero nem saber se o cardeal pensa o contrário. Se a Igreja fica pensando sempre a mesma coisa, ela fica para trás".

A querela com Dom Ivo, aliás, só não foi maior pelo fato de que nunca se tornou pública o suficiente e, na condição de presidente da CNBB por dois mandatos (além de outros dois como secretário- geral), o bispo tinha mais o que fazer, segundo a definição de Ronái Rocha. "O padre Lauro era um problema sobretudo dos palotinos", sustenta, referindo-se à ordem que sustenta o Patronato, onde também vive o sacerdote (aposentado) Derli Signor, artista plástico, especialista em biodança na argila e autor de um recente livro de título um tanto atípico no universo da fé - O Padre que Capinava Nu. Signor é também o mantenedor, dentro do Patronato, de um enorme acervo de esculturas de barro, muitas das quais em poses bastante eróticas. Outro especialista em religiões, Roman Pagliarin (ex-jesuíta, colega do sociólogo Betinho outrora e respeitado professor universitário em Santa Maria) lembra de uma informação que ajuda a explicar o vasto patrimônio de Trevisan - a Sociedade Vicente Pallotti permite que seus membros usufruam seus bens materiais, algo raro dentre as instituições que compõem a doutrina católica. Boicotes à parte (Lauro conta que, por muitos anos, era proibido de celebrar missas fora de Santa Maria), a trajetória do homem que buscou inspiração no irlandês Joseph Murphy, ícone global do suposto poder da mente, é um sucesso só. Suas obras foram traduzidas até para o búlgaro. Nas paredes de seu escritório, certificados que outorgam a ele o título de Cidadão Honorário do Rio de Janeiro, por exemplo. Anos atrás, as frases de efeito de Trevisan eram proclamadas até em escolas públicas de Santa Maria.

Já no mesmo Patronato, vi o sacerdote Lauro Trevisan a comandar uma missa matinal em um sábado nos primeiros dias de 2008. O tom monocórdio da voz, o olhar um tanto triste e a batina de cor clara compunham a imagem de um homem que em quase nada lembrava o personagem do dia anterior. Instantes após a liturgia, Lauro partiu para outra de suas rotinas, o café-da-manhã com os demais padres aposentados do Patronato, um dos quais seu irmão de 81 anos, Victor, e igualmente defensor da canonização do diácono João Pozzobon. Como se vê, religião é um dos pilares dos Trevisan, tal qual o empreendedorismo. Nos períodos de fartura, a família administrava 1,2 mil funcionários e mais de 30 supermercados, espalhados pelo Rio Grande do Sul. No campo espiritual, Lauro teve três tios padres, além de um primo que chegou a seguir a doutrina palotina.

Mas, para além da fé e dos negócios, ele gosta muito é da exposição pública. Vaidoso, cuida para que suas roupas tenham tom sobre tom. A modéstia, por vezes, fica de lado, como no instante em que lascou a frase "No Brasil, é difícil que alguém não me conheça". Há anos, mantém contribuições regulares à imprensa de Santa Maria e se deixou entrevistar por personalidades nacionais como Hebe Camargo e Jô Soares. Deste, as lembranças não são das melhores. "Ele fazia a pergunta e também queria responder", recorda, para, em seguida, remendar: "Claro que dez minutos em TV e com o Jô são muito valiosos". Lá pelo final dos anos 70, quando estava na UFSM, Trevisan também fazia sucesso entre seus colegas pelo fato de ter um carro melhor que os deles e de ser bom de oratória.

Dois dos próximos projetos midiáticos começam a tomar forma ainda este ano. O mais simplório, se comparado ao outro, é sua biografia (sob o título Quando Florescem as Azaléias), prevista para 2009. O segundo é um museu interativo a ser erguido em Santa Maria para retratar seu trabalho que começou como seminarista, passou pelas rotativas, chegou ao poder da mente, viajou pela Era de Aquário (Lauro Trevisan também flertou com essa vertente do pensamento contemporâneo) e anda ultimamente em torno das tentativas de se firmar no horizonte como poeta e de retomar a pregação das mentalizações que levam à felicidade. "A vida é uma festa, aconteça o que acontecer" tem sido seu lema.

Nesse meio-tempo, ele relata, manterá o antigo hábito de circular pela Espanha e por Portugal (possui um apartamento em Lisboa), para cursos que costumam sair por 45 euros (algo como R$ 120) por uma jornada de seis horas. No Brasil, a conta para um período assim é mais leve - R$ 50. "E o que o senhor faz com o dinheiro que arrecada?", quis saber em determinado momento de uma das conversas. "Faço o que o senhor também faria - invisto", responde seco, para em seguida desconversar, embora, horas depois, tenha falado mais sobre isso. É que, na Casa da Península, ele pretende construir logo 11 miniapartamentos que abrigarão hóspedes em busca de oficinas mais longas, do mesmo modo que fazia nos anos 80 e 90, quando sua fama chegou a pontos como Alemanha e Miami. Hoje, o lugar tem duas lareiras, três cozinhas, colunas de estilo romano, iluminação especial, churrasqueiras, auditório para 150 pessoas, quartos com banheiras de hidromassagem e está assentado em uma área de 70 hectares e dois cânions. "Os ricos dão a vida para levar o mundo pra frente", diz, sobre esse luxo todo, em mais uma de suas peculiares visões de mundo. Boa parte dessas opiniões um tanto atípicas para um padre são forjadas durante os longos passeios de Trevisan pela orla da praia de Tramandaí, no litoral gaúcho, onde o religioso mantém uma casa há anos e que, do mesmo modo que a da Península, é generosa no recebimento de amigos. Neste verão de 2008, Maria Odete, a sócia, e um conhecido radialista de Santa Maria estavam entre os hóspedes.

Opiniões e comportamentos inusitados são marcas da região de Santa Maria. A área está cheia de personagens fascinantes e o italiano Antonio Meneghetti é um deles. Dado a mistérios, Meneghetti está erguendo um império que inclui hotel, restaurante, condomínio residencial caríssimo, centro de pensamentos existenciais e uma faculdade. Seus laços de amizades se estendem do empresariado local até o Kremlin, na Rússia. Pouco modesto, gosta de se comparar a Leonardo Da Vinci. No mesmo mês de janeiro, Meneghetti inaugurou uma instituição de ensino superior que leva seu nome. Naquele dia, uma de suas convidadas era Ludmila Verbitskaya, quem o cerimonial apresentou como reitora da Universidade Estatal de São Peters-burgo e assessora especial do presidente Vladimir Putin. Do coquetel de lançamento do lugar, ainda que fosse a figura principal, Meneghetti praticamente não participou. Seus seguidores dizem que, por ser uma pessoa de uma enorme força energética, sua presença por muito tempo perturba e desequilibra o ambiente.

Outro que está se fortalecendo é Hernán Mostajo. Por anos, era tido simplesmente como um sujeito excêntrico encantado com a Ufologia. Quem o visita no museu que ele e a esposa, Roberta, ergueram na serra de Santa Maria se depara com Hernán Mosttajo (assim mesmo, com um "t" a mais), autodenominado cientista, próximo do cantor Zé Ramalho e do astronauta Marcos Pontes. "Tudo aqui é um show", avisa Hernán, enquanto passeia pelos ambientes do centro de memória que inclui objetos tão interessantes quanto bizarros. Por R$ 10, o visitante pode apreciar, ao som de Vangelis, uma detalhada maquete que explica a evolução das espécies até objetos que contam parte da trajetória de Antônio Nelson Tasca, um morador de Chapecó (SC), agora com 74 anos, e que desde 1983 jura ter sido abduzido por ETs do planeta Agali, no qual teria permanecido por 12 horas, tempo suficiente para manter uma relação sexual com a agaliana Cabalá, que resultaria em duas filhas - Mada e Madana -, as quais, obviamente, nunca apareceram na Terra. Assim como Lauro, modéstia não é o forte de Hernán. Sempre que a chance aparece, ressalta a seu interlocutor que a NASA e a família de Carl Sagan (o astrônomo que aparecia na TV apresentando a série Cosmos) são parceiros do museu e que a Base Aérea de Santa Maria (BASM) costuma periciar materiais ufológicos coletados por ele e sua equipe. Tanta promoção rendeu ao lugar 50 mil visitantes em sete anos de funcionamento e a passagem de um punhado de figuras públicas por lá - Ratinho, do SBT, e o cantor brega Ovelha estão na lista, além do padrinho Zé Ramalho, que, ao conhecer o espaço místico, deixou de presente um CD com três músicas temáticas: "Kryptônia", sua; "SOS", de Raul Seixas, e "Errare Humanum Est", de Jorge Ben Jor. "Aqui eu sou um intérprete do conhecimento", autodefine-se Hernán, com um gestual que lembra Arnaldo Antunes em seus momentos no palco.

O mix santa-mariense e cercanias é pródigo em instituições ainda mais distintas em relação aos municípios nacionais. Na esfera religiosa, há comunidades metodistas, judaicas e um importante grupo anglicano, cuja sede data de 1906. Os católicos estão pulverizados pela cidade toda, a ponto de ser comum se ouvir a expressão de que "Santa Maria é uma fábrica de padres e irmãs". Os palotinos, cabe dizer, estão na cidade há mais de 100 anos e coube a um de seus pares, o italiano Caetano Pagliuca, liderar a construção da catedral diocesana, a partir de 1902. Na noite, o cenário underground tem força e encontra no Macondo Bar seu modo mais alto de expressão. Jovens emos, darks, punks, descolados e por aí vai se acotovelam nos dois andares do pequeno sobrado que já recebeu a banda porto-alegrense Superguidis, em ascensão no rock nacional. Alternativa também é a Catacumba, a lendária boate do subsolo de uma das imensas casas de estudantes carentes que a UFSM oferta. Espaço limitado também tem o Ponto de Cinema, provavelmente o bar-símbolo da cidade, freqüentado por intelectuais e gente da moda. Além das unidades acadêmicas de ponta (como pesquisas espaciais), a Universidade também é referência por uma razão mais prosaica, a União Universitária, um surrealista complexo de quatro alojamentos (masculino, feminino, mistão e mistinho) destinado a abrigar, provisoriamente, alunos, cujas paredes internas são meros lençóis, formando o que os alunos chamam de cafofos. O provisório, no caso, pode durar um ano. "Aqui, não se pode é ter vergonha de trocar de roupa na frente das meninas", resume Rose Thies, 22 anos, sete meses dos quais na União e aluna do 2º ano de Química na UFSM.

Em Santa Maria, também se encontra César Barichello, o barítono. Melhor, ex-barítono. De uns tempos pra cá, ele adotou a identificação Césare Barichello, o tenor, e, à frente da Secretaria de Cultura de Silveira Martins, pequena cidade da zona de influência de Santa Maria, está fazendo história como um elogiado produtor cultural. Mais um da esfera da fé é o já citado João Pozzobon, o diácono que será o "santo de Santa Maria", nas palavras do padre Argemiro Ferracioli, líder da campanha iniciada em 1994 (por Dom Ivo, o bispo). Por 35 anos, supostamente sem falhar um dia, Pozzobon carregou no ombro esquerdo uma imagem de Nossa Senhora de Schoenstatt, peça de 11 quilos, em uma peregrinação de 140 mil km por vários países. Ao ser atropelado, em 1985, quando caminhava em direção a um santuário, tinha um calo no ombro e cinco vértebras fora do lugar.

A proposta de beatificação, uma das etapas até o olimpo católico, só não está mais adiantada pelo fato de que ainda é preciso comprovar um milagre do diácono, nos termos que o Vaticano estipula. "Em Roma, processo com um milagre é uma fila; sem milagre, é outra", sintetiza Ferracioli, um simpático religioso que tem feito da causa do seu João o mote da sua vida nos últimos anos. Se for para falar do diácono, Ferracioli é direto e vai logo dizendo que, quando se tornar Venerável (outra fase da glorificação católica), será possível mandar imprimir santinhos e confeccionar estátuas do agricultor. O que não pode, continua, é queimar etapas, como ele alega ter ocorrido no caso de padre Cícero, o peregrino nordestino que virou mito antes da canonização, cuja imagem foi para as lojas de produtos cristãos sem a bênção de Roma.

A influência secular da capital italiana não é a única de origem européia que tem ajudado a moldar Santa Maria e região. Na esfera arquitetônica, para além dos monumentos religiosos (há de se incluir a Paróquia Nossa Senhora do Rosário, de 1854, criada para a comunidade negra), há a Vila Belga, um conjunto de 84 casas que chega a lembrar o layout do Pelourinho baiano. No começo do século 20, o casario abrigava operários que estavam assentando os trilhos ferroviários que mais tarde transformariam Santa Maria em um dos mais importantes entroncamentos da América do Sul. Um engenheiro belga, Gustave Vauthier, era o homem-forte do projeto, colocado de pé à semelhança de residências de seu país e da França na época. Quem por lá passa vê boa parte das moradias com uma pintura externa bem-feita, fruto também de um polêmico ato de privatização levado a cabo nos últimos anos.

No âmbito educacional, a Cidade Universitária Professor José Mariano da Rocha Filho é outro marco pioneiro em terras verde-amarelas. Visionário, Mariano da Rocha andou por vários cantos do mundo conhecendo centros de excelência educacional em busca de inspiração para erguer a sua (então) Universidade de Santa Maria. Homem de excelentes contatos políticos, ele arrancou do presidente Juscelino Kubitschek uma assinatura que autorizava a instituição, no final dos anos 50. Por esses e outros atos, Mariano da Rocha acabou eleito o gaúcho do século 20, em uma votação popular que agitou o Rio Grande do Sul no final da década passada.

Nesse caldo filosófico-cultural, cozinhado lentamente, Lauro Trevisan nasceu e prosperou. Aposentadoria ainda não passa pela sua mente, mas há sérias dúvidas quanto ao que restará de seu patrimônio espiritual após sua passagem terrena. Ele diz que nunca quis formar seita ou algo assim, ou ser um profeta e ter seguidores muito próximos, a ponto de se transformarem em herdeiros da obra que criou. Um pequeno senão está no Orkut, espaço em que seus fãs o tratam como um guru. "Morreu ele, morre tudo", arrisca o professor Ronái Rocha. De concreto, há de se registrar que parte da trajetória de Trevisan sofreu esvaziamento em tempos recentes. Chegado o ano 2000, cessaram as edições anuais do Festinvita em Santa Maria, encontros do pensamento positivo destinados a preparar o ser humano para a nova Era de Aquário, que o padre alardeava a todo instante nos anos 90. O incremento no número de vagas na educação superior brasileira fez minguar a procura de pré-vestibulandos por seus conselhos de auto-ajuda.

Mas Lauro Trevisan não se diz muito preocupado com seu legado. Daqui a 50 anos, diz desejar ser lembrado como um sujeito que "se esforçou para que as pessoas pudessem conhecer sua verdadeira dimensão", um conceito bastante vago. Enquanto isso, ele vai levando sua vida de popstar. Na esfera do Catolicismo, as críticas diminuíram progressivamente. Ele se orgulha de nunca ter recebido uma repreensão formal do Vaticano e de não ter, contra si, nenhum bispo católico, por supostamente falar de temas aceitos universalmente. Em termos financeiros, o Chrysler preto indica o quanto os negócios estão bem. Com sua lógica singular, tentou justificar a opulência de seu veículo. "Se eu não compro um carro desses, veja quantas pessoas ficariam desempregadas", taxou, em uma menção aos operários que montaram o veículo, para, em seguida, arrematar: "Pior seria colocar o dinheiro no banco, algo que quase não beneficiaria ninguém".

No primeiro dia em que me recebeu em janeiro, Trevisan aproveitou para inspecionar o Teatro Santa Maria, auditório de 350 lugares com poltronas macias, instalado dentro do Palácio da Mente - uma formatura estava agendada para aquela noite, assim como a Casa da Península estava locada para outro evento. A autobiografia, como mencionado antes, logo estará nas ruas. "Quando estou entusiasmado, pego o computador e faço sair faísca", auto-elogiou-se.

Nesse cenário todo, não é de se estranhar que Lauro Trevisan continue a vestir uma bata, que ele guarda no Palácio, com os dizeres "O essencial é ser feliz". E muito menos se deve avaliar como deslocada uma plaquinha colada ao lado da porta de acesso a seu escritório e que, simbolicamente, descortina para quem está chegando ali o estilo de vida do padre: "Goza a vida, enquanto és vivo, pois vais estar muito tempo morto"

O jornalista Márcio Fernandes assinou a reportagem "Terra do Nunca", sobre Foz do Iguaçu, na RS 06 (abril 07).