Rolling Stone
Busca
Facebook Rolling StoneTwitter Rolling StoneInstagram Rolling StoneSpotify Rolling StoneYoutube Rolling StoneTiktok Rolling Stone

Ensaio sobre o cinema

Do diretor experimental do século 20 ao cineasta aclamado do 21, Fernando Meirelles mexe com os sentidos em Ensaio Sobre A Cegueira, propõe revoluções de imagem e orgulha-se de ser um "embaixador da sétima arte", do Brasil para o mundo

Por Ademir Corrêa Publicado em 07/08/2008, às 16h56 - Atualizado em 21/08/2008, às 12h09

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Meirelles confere de perto o enquadramento e a fotografia de sua última obra
Meirelles confere de perto o enquadramento e a fotografia de sua última obra

A visão é desoladora - uma rua dominada por carros, estacionados ou em movimento, pilhas de lixo jogadas pelas calçadas, cachorros vira-latas correndo entre os restos do chão e resquícios de algum comércio ambulante. O cinza do asfalto convive harmoniosamente com o encardido dos prédios e estabelecimentos. Na outra esquina, a Companhia de Entrepostos e Armazéns de São Paulo (Ceagesp). Um pouco antes, um estúdio gigante e azulado chama a atenção. Com uma fachada bem cuidada e um movimento constante de pessoas, a O2 Filmes (de Fernando Meirelles, Paulo Morelli e Andrea Barata Ribeiro) é quase uma construção extraterrestre se enquadrarmos o entorno recém-descrito.

O hall se abre e surpreende pela sensação de respirar sétima arte e publicidade. Óculos pesados com armação preta de cineasta vêm e vão e as conversas são cortadas por gente que caminha bem rápido, talvez workaholics. É um local milimetricamente pensado. Atrás da recepcionista, cadeiras estofadas e uma exposição informal de cartazes, alguns longas: Antônia (2006), Não por Acaso (2007), Cidade dos Homens (2007), O Banheiro do Papa (2007). À esquerda está a sala vermelha, na verdade apenas uma parede dela é fiel a essa cor - o suficiente para a nomenclatura do espaço. Um silêncio precede a exibição de Ensaio sobre a Cegueira, a adaptação cinematográfica do livro (homônimo) do escritor português José Saramago, orquestrada por Meirelles e que ganhou nova versão pós-Festival de Cannes.

Do outro lado da parede, a calma é rompida pelo diálogo ocorrido atrás da porta fechada: "Você fez um vendedor no Dois Filhos de Francisco [2005]? Bem pobre, rústico?", questiona uma voz feminina. "Não, não", um homem responde. A conversa se afasta.... Sem ver o mundo, mas ouvindo as possibilidades que ele oferece, espero a sessão matinal de cinema sobre o tumulto causado por uma epidemia de cegueira.

Café na xícara e créditos iniciais. As trevas brancas tomam forma, desfocam, enquadram ações, personagens se batem, são conduzidos por cordas, choram, morrem. Duas horas e alguns socos no estômago depois, um outro recinto, gêmeo do vermelho, mas conhecido como "a sala verde", será o palco que receberá o diretor Fernando Meirelles, 52.

Ele chega, boa-pinta - blusão preto, calça clara e sapato marrom - cumprimenta com um aperto de mãos e acomoda-se para uma batelada de perguntas sobre sua última obra, seu passado como diretor experimental de TV (ainda nos tempos da produtora Olhar Eletrônico), e seu futuro no Brasil e fora dele. À minha frente, um arquiteto de prédios (por formação) e imagens. Um realizador capaz de discutir arduamente sobre obras de arte - como as de Hieronymus Bosch, Rembrandt, Kazimir Malevitch, Francis Bacon - e acordos comerciais viáveis; que fala com propriedade de William Shakespeare, ao mesmo tempo que atualiza, com humor, o blog de produção de seu longa criticando crises, a sua e a aérea (da época das filmagens). Um produtor paulistano que defendeu a descriminalização da maconha em revista e sabe que os usuários sustentam o tráfico, sugerindo, então, a campanha: "Não compre. Plante!"; um artista que alerta para a preservação das nossas terras indígenas (em declaração à Agência Lusa).

Antes de tudo, é também um perdedor, como bem descreve em seu diário virtual: "Parece uma maldição que me persegue. Perdi meu roteiro novamente. Digo novamente, pois também perdi três semanas antes de acabar Cidade de Deus [2002] e o mesmo aconteceu com o do Jardineiro Fiel [2005]. Claro que poderia imprimir uma nova cópia, mas nem é o caso... O que me faz falta não são os diálogos ou as descrições das cenas, mas sim as anotações que fui rabiscando nos cantos ou no verso das páginas. As idéias que me pareceram boas até lembro, mas certamente vou esquecer detalhes que nunca chegarão a ser filmados. Merda..." Um tique nervoso pisca em seu olho azul direito e tem início este ensaio-entrevista.

Você não tinha desistido do cinema?

No final de 2005, decidi parar e fiquei pensando no que ia fazer. Mas aí surgiu Ensaio sobre a Cegueira. Coloquei algumas condições, só aceitaria se a O2 produzisse e se pudesse rodar em casa. Fiquei traumatizado com viagens. Na promoção de O Jardineiro Fiel não comia direito, emagreci sete quilos. Desta vez queria ficar por aqui. E as locações acabaram sendo no Canadá, no Uruguai e no Brasil.

Foi fácil filmar em São Paulo?

A gente passou por algumas dificuldades. Não existe um departamento, uma "film commission", em que uma produtora internacional vá e receba ajuda. E isso tem em qualquer cidade: Milão, Nápoles. Rola ainda uma burocracia, foi complicado trazer os equipamentos, as caixas, ficou tudo retido na alfândega. E algumas questões de grana também pegaram. Entrava o dinheiro para pagar a equipe, já vinha um imposto imenso.

Ainda se considera um diretor brasileiro?

Pô, pelo amor de Deus. Tenho um lado patriótico de fazer questão de pôr equipe brasileira em tudo, estou sempre tentando trazer investidores e pessoas para filmar aqui e empurrando técnicos e talentos para fora. Fico meio de embaixador do cinema nacional. E este filme [Cegueira] é mais brasileiro do que canadense ou japonês. Do Japão tem o dinheiro, do Canadá, o roteiro. Todo time de criação, tirando a figurinista e o roteirista, é nosso. E foi filmado metade em São Paulo. Infelizmente é falado em inglês.

Infelizmente?

Adoraria ter feito em português. O problema é que um longa em qualquer língua que não seja em inglês, e em chinês talvez, não pode custar mais que 5 ou 6 milhões de dólares porque não se paga. Os do [Pedro] Almodóvar têm um teto de 8 milhões, isso que são distribuídos no mundo inteiro. A primeira vez que a gente pegou o Ensaio, tentou fazer com 12 milhões, mas tinha cidade destruída, computação gráfica, um grande elenco. Teríamos que abrir mão de muita coisa.... Então fechamos o custo dele em 25 milhões.

Um superorçamento, se pensarmos na realidade brasileira, mas infinitamente pequeno para uma produção internacional...

Realmente, um médio norte-americano custa 50, 60 milhões de dólares. Um de 24, 25 é pequeno... Mas, pensando no que vou fazer daqui para a frente, é nesse nicho que quero ficar. Os norte-americanos chamam esse tipo de filme de "small art", é meio de autor, mas tenta levar público. Alguns cineastas, como o David Lynch e o David Cronenberg, não fazem projetos com mais de 30 milhões. Ou você é os irmãos Coen, aí pode ter uma obra muito pessoal por 60 milhões. Tem pouquíssimos assim, dá para contar nos dedos.

A possibilidade de distribuir em vários países afasta você de produzir para o nosso mercado, para o nosso público?

Optar por trabalhar três anos para mostrar só no Brasil... Uma hora vou fazer isso, por enquanto não. Mas estamos planejando um investimento para que Ensaio sobre a Cegueira tenha 300 mil espectadores nos cinemas brasileiros. O Jardineiro teve 500 mil. Nos Estados Unidos eles falam em milhão. Lá queria que fizesse 20 milhões de dólares de bilheteria, Jardineiro fez 36. Se ficar em menos de 20, vou achar que não deu certo, não consegui ser acessível.

Quando topou dirigir Ensaio sobre a Cegueira estava preparado para as críticas comparativas?

É um livro que tem várias portas de entrada, muitas pessoas leram e gostaram, portanto é perfeito para frustrar 75% dos espectadores. Tem nego que acha que é sobre o comunismo, sobre aprender a viver em comunidade. E isso não está lá. Outro se identificou com um personagem específico que também não está. Enfim, fazia parte do pacote. Comecei e nem tinha uma visão do que poderia ser essa história. Sabia exatamente o que não queria, tinha muito medo de que os personagens parecessem zumbis. Essa foi uma das minhas primeiras preocupações... E consegui, porque você não se sente incomodado pelo fato de as pessoas estarem cegas.

Como foi vencer o desafio de não cair no cine-catástrofe e manter essas infinitas metáforas escritas pelo José Saramago?

Se tivesse uma leitura superficial, não acharia nada ruim. Seria até legal que um espectador shopping center fosse lá e conseguisse assistir uma historinha e pronto. Mas tem uma outra pegada, vai por outro lado, não parece Eu Sou a Lenda [2007]. Percebi isso nos test screenings [sessões especiais feitas pelos estúdios para medir a reação, e a aceitação, dos espectadores]. Quem não gostou queria saber, por exemplo, por que o médico não buscou a cura da cegueira. Não é sobre isso, entende? Esse seria o Eu Sou a Lenda, o herói que descobre o antídoto, se sacrifica e salva o mundo. Ensaio sobre a Cegueira é uma outra realidade, quase uma peça de teatro. Só tinha medo de que ficasse muito metafórico. Por isso a primeira parte é uma luz meio bobinha, com uma interpretação naturalista, para envolver as pessoas. Queria que os espectadores se relacionassem com as cenas, é difícil por causa do texto, pelo fato de ninguém ter nome. É isso que vai pegar. Quem vê pela segunda vez, gosta muito mais, posso garantir. No começo aquelas pessoas são meio frias, uma dona-de-casa tola, um médico arrogante, uma prostituta, um japonês - com quem, por alguma razão, a gente não se identifica - e um ladrão. Quando elas ficam isoladas, você está pouco se lixando. Assim que assiste de novo, já gosta delas.

Que características do original chamaram sua atenção e como você imaginou enquadrá-las?

O que me assustou era a fragilidade humana. Como a gente assume o que não é e vive de aparência. Um pequeno acontecimento, o Império Romano acaba e tudo vai pro saco... Uma coisa que faria se começasse de novo era abusar mais do desenquadramento. No início tinha pensado que ia ter quase só diálogos e cenas abstratas. Usei como referência um documentário que chama Black Sun [2005], sobre um cara que foi assaltado em Nova York e jogaram ácido no olho dele. É um pintor [Hugues de Montalembert] que ficou cego e conta sua experiência, algumas vezes ele mesmo filmando. A imagem é um nada, câmera ligada e voz. É lindo porque tem um texto muito bom e você entende mais ou menos onde o cara está. Ia fazer nessa linha. Durante o processo, talvez tenha me acovardado porque, na hora em que você está lá com a Julianne Moore enfiando uma tesoura no pescoço do Gael [García Bernal], não dá para sair e mostrar uma grade desfocada. Se tivesse atores menos conhecidos ou um décimo do orçamento, teria feito uma pintura mesmo. No entanto, construímos umas cenas iguais aos quadros do Lucian Freud... espero que ninguém me processe [risos].

Ao apresentar a cópia na Miramax Films, eles pediram para "diminuir um pouco a voltagem, amenizar alguns planos". Você acatou essa decisão?

Sim, porque era realmente muito violento. Em uma projeção para 500 pessoas, 60 saíram. Não achei interessante, é muito fácil chocar. Quer ver [começa a inventar uma história]: "A mãe transa com o filho... aí entra o pai e corta a cabeça... o sangue se espalha pela cama e ele lambe tudo". Simples, não? E depois o que senti é que aquele momento [as cenas dos estupros coletivos] tinha sido tão forte que desconectou, em vez de todos ficarem chocados e depois continuarem na história, pensaram: "Esse diretor é um idiota". E não vão até o fim. Saquei isso. Qual a vantagem de deixar metade da audiência contra? Sabia que era forte, porque o livro também é. Muitos falavam que liam e abandonavam justamente nos estupros. É uma obra difícil, deve faturar no mundo uns 60 milhões ... [pensativo] o que dá 6 milhões de pessoas. Às vezes imagino que pode ser um desastre de público e crítica. Tem coisas que talvez não sejam entendidas. Estou aberto para o que vier, de porrada a comemorações. Assim será o caminho.

Li também que você reeditou a versão apresentada na França, é isso?

Montei e ficou grande, chato. Comecei a cortar, cortar, cortar e acabei cortando demais. Tentei fazer ele ser entendido como banal. Na versão de Cannes, queria que todos o vissem como uma fábula, entrava a narração do Danny [Glover] em oito momentos. Agora ela aparece só no fim. Aquela montagem estava errada. Achei a mixagem exagerada, tinha muito branco. Voltei para a ilha de edição e acrescentei umas coisas, enxuguei outras.

No seu blog você faz um desabafo sobre vender-se ou não ao mercado, abrir mão de algumas escolhas. É um embate entre o seu lado produtor e diretor e também entre sua experiência na publicidade e na TV?

Fico nessa luta com meu lado diretor, sim. Não é fácil, tem horas que você quer mandar o produtor à merda. No entanto, preciso pensar nos dois lados. Tenho um investidor que, só ele, colocou 16 milhões em um projeto meu, simplesmente não posso chegar falando: "Vou torrar seu dinheiro do jeito que quiser". O cara está apostando em mim, chego lá e dou uma porrada? Ontem estava vendo o The Doors [1991], do Oliver Stone. O Jim Morrison não cedeu nunca, né? É lindo ver aquilo. Mas tudo acabou rápido para eles.

Cedendo ou não, a escolha dos atores também é importante para a trajetória, e o sucesso, de um projeto. Você dirigiu um elenco bem heterogêneo - Mark Ruffalo, Julianne Moore, Alice Braga, Gael García Bernal, Danny Glover, Yoshino Kimura, Yusuke Yseya. Foram muitos testes?

A idéia era ser um pouco desparatado mesmo. Pegamos pessoas de muitos lugares, com outras formas de interpretar. Fiz leituras só com a Yoshino, que é uma estrela japonesa, e com o Yusuke, que ainda está começando. Selecionei quatro homens e quatro mulheres e fui para o Japão. Com os outros não fiz isso, você não pode chamar a Julianne Moore para um teste, né? Tinha minha listinha de algumas mulheres do médico possíveis e ela era a favorita.

Alguém recusou?

O Sean Penn foi a primeira opção para o médico. Ele me falou: "Ó, não entendi, Fernando. O personagem não tem nome nem passado. Como é a casa dele? De onde ele vem?" Eu disse: 'Mas é assim que é o livro, é sobre uma situação'. Ele ficou de ler... Me ligou de novo: "Não consigo. Não sei quem é ele, não tenho idéia de como fazer esse cara, me desculpa e tal". E o personagem ficou bem diferente do que tinha imaginado, queria uma figura ainda mais arrogante. O Mark [Ruffalo] tem esse lado humano, ele é frágil em algumas horas...

Sua protagonista é a Julianne Moore, no papel de uma dona-de-casa que é a única que não perde a visão. Não teve receio de que ela ficasse maior do que a própria obra por ser uma estrela de Hollywood?

Não fiquei pensando nisso. A Julianne tem uma humildade, não gosta de ser cultuada... fica tão na dela. De cara, pintou o cabelo. O dia em que cheguei em Toronto [Canadá], fui ao camarim dar um "oi" e ouço um grito: "Você não pode entrar, tenho uma surpresa horrível". Na hora em que a porta se abriu, vi aquela loira: 'Meu Deus, o que você fez?' E ainda pedi para ela colocar uma bundona enorme no começo. A gente fez a roupa e pôs uma espuma. Existem alguns planos de costas justamente para ver o bundão. E o personagem vai perdendo aquilo. Sei lá, Michelle Pfeiffer não usaria um enchimento, nunca. Já a Julianne, expliquei que era importante mostrar essa degradação do corpo e ela topou na hora.

Algumas prévias já a apontam como uma indicada para os principais prêmios de interpretação...

Sem dúvida, é a melhor performance. Na verdade, Ensaio sobre a Cegueira é completamente feminino. Elas são legais e os homens uns idiotas que não resolvem nada, se destroem, têm essa arrogância de achar que "sabem" e "podem". Os caras só fazem merda. Acho as mulheres, nos meus filmes, sempre mais interessantes.

É complicado lidar com o lobby dos agentes dos astros, ainda mais depois do Oscar da Rachel Weisz em O Jardineiro Fiel?

Bom, a gente anunciou esse projeto [Cegueira] em Toronto, em 2006. Dois dias depois, eles começaram: "Essa cliente pensou em você, esse está interessado". É assustador, tem o nome de todo mundo ali. Mas testamos alguns casos. Então manda lá, a Julia Roberts quer fazer. Aí você liga e ouve... "Ih, ela não pode." Os agentes ficam tentando mostrar serviço. Eles querem receber convites de todos para depois oferecer: "Tem isso, isso, isso". E as listas que vêm... Pense em alguém... mandou. Fale outro... mandou também.

Indo dos hollywoodianos aos não-atores... Um dos trabalhos responsáveis pela sua projeção internacional e pelo respeito que você ganhou no meio é Cidade de Deus, que trouxe alguns meninos da comunidade (que dá nome ao longa) vivendo os personagens. No Brasil, ele foi um divisor de águas e formou espectadores para alguns hits posteriores. Para você, é uma obra que rompe barreiras?

Acho que sim. É um recordista de público, fez 32 milhões de dólares, dos quais não vi quase nada. Aqui existia esse tabu de que favela e ator negro ninguém queria ver. Acho que ele teve o mérito de mostrar: "Olha, as pessoas estão interessadas na sua própria realidade social".

O José Padilha afirmou que Tropa de Elite (2007)só existe porque antes veio o Cidade. O que acha?

Ele disse que ia na minha cola, mas encontrou outro veio. Naquela época, a coisa do tráfico estava tão grande que só tive a sorte de ser o primeiro. Esse do Breno Silveira, o Era Uma Vez... [atualmente em cartaz], o roteiro já existia. Saí na frente, mas quem mora no Rio de Janeiro pensa nisso o dia inteiro. De alguma forma, abri um ciclo de exclusão urbana.

Assistindo seus longas-metragens, você já consegue traçar uma reflexão sobre diferentes tipos de exclusão?

Tem um caminho por aí, sim. Domésticas [2001] se passa dentro de casa, Cidade é a história de um país, O Jardineiro parte para o global e agora trato da humanidade - não é pensado, mas amplio um pouco, falo de psique.

Nessa evolução, vai acabar filmando a Terra de fora?

Estou com um projeto em francês [ainda em segredo] que será captado de satélite. Tá vendo... [risos]

Não tem medo de virar um diretor cult?

Não. Nesse momento gravo uma minissérie para a Globo [Som e Fúria, que estréia em fevereiro de 2009], no Teatro Municipal de São Paulo. É sobre o cotidiano de uma companhia de teatro que encena Shakespeare e começa a entrar em crise porque ninguém mais quer assistir aos clássicos. É muito divertido, o que acontece no palco como tragédia vai para os bastidores como comédia. O roteiro é muito esperto [uma versão do seriado canadense Slings and Arrows] e estou passando por um elenco com quem nunca tinha trabalhado - Pedro Paulo Rangel, Andréa Beltrão, Rodrigo Santoro, que vai fazer uma participação, Débora Falabella, Felipe Camargo.

Consegue ver o Fernando Meirelles dos anos 80 (época em que inovou com vídeos e reportagens experimentais) hoje no Ensaio sobre a Cegueira e em Som e Fúria?

No filme não muito. Mas na série tem bastante. Fazer televisão, eu fico muito mais soltinho assim, de enfiar caco o tempo inteiro. Fora que é em português, uma delícia, você deita e rola. Tem a emoção da palavra, sabe? Tipo, broa de milho. Não é muffin. Muffin o que que é? Muffin é um bolinho. Agora broa, aquele cheiro, aquela coisa amarela, a minha avó.

Produzir e dirigir para a televisão é um caminho que você quer seguir?

Fiquei analisando isso... Quando quiser fazer coisas em português, vou para a televisão, que dá uma audiência muito maior - você tem logo 20 milhões de espectadores - e é mais rápido. Mas estou com aquela mesma dúvida entre "fazer concessões ou não" com Som e Fúria. Adaptei o roteiro, mandei para o Rio. Eles me ligaram, falando: "Olha, a gente gosta muito e tal, mas tem muita peça, muito Hamlet, vamos fazer mais o outro lado. Tira um pouquinho". Tem um tanto que não dá para cortar: "Desculpa, vou precisar". Mas busco o meio-termo porque os caras vão dar 12 milhões para fazer e precisa ter público, porque se não tiver eles não chamam a gente no ano que vem [quando Meirelles também está cotado para dirigir o longa Trabalhos do Amor Perdido, de William Shakespeare, que teve o enredo recontado em romance do diretor Jorge Furtado].

Já existe projeto em tramitação estabelecendo uma cota obrigatória de produção independente nos canais abertos. Ao mesmo tempo, também acontece um debate entre artistas para uma possível revisão na Lei de Incentivo à Cultura. Está acompanhando essa discussão?

Um pouco. Essa lei tem um troço muito errado - meus colegas podem até me dar um tiro por falar isso - porque o produtor não tem responsabilidade. O investidor que usa os artigos 3º e 1º não vê sua grana de volta. A gente pega um dinheiro que é de graça e não tem o compromisso de devolver, falta uma contrapartida mais clara. É um dinheiro público relativamente muito barato. Foi ótimo, durante dez anos, porque o Estado bancou os filmes brasileiros, e ponto final. Se não tivesse sido assim, a gente não teria tantas pessoas trabalhando na área, não estaríamos produzindo [cerca de] 70 longas por ano. Mas agora está na hora de fazer uma revisão mesmo.

[A vida real invade a conversa e um possível fim é anunciado. Restavam poucos minutos para um último apontamento]

Os filmes que você faz são os que gostaria de ver?

Sabe que nunca pensei nisso... Acho que não. Teria ido no Cidade de Deus porque todo mundo falou dele. Mas não seria minha primeira opção, não curto filme de gangue, com tiro... Hummm, Cidade nem tem tanto tiro assim. Ok, não é o que gosto, preferencialmente. Gozado, né? Mas é verdade.

Mais uma visão desoladora - outra rua dominada por carros, estacionados ou batidos, pilhas (e mais pilhas) de lixo amontoadas pelas calçadas, cachorros e atores vira-latas correndo entre os restos do chão e pistas de alguma sociedade organizada que ali esteve. O cinza do asfalto convive desastrosamente com o encardido dos arranha-céus. É uma seqüência e tanto, criada, agora, pelo cinema. A força das cenas de uma São Paulo abandonada e de um asilo desativado que abriga "contagiosos acometidos pelo branco cego" permanece na cabeça, como uma facada simbólica nos olhos.