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Cultura da Guerrilha

Juca Ferreira, um dos 100 terroristas mais procurados do país (durante a ditadura), braço direito de Gilberto Gil, dá continuidade às mudanças do MinC, sem o carisma do artista tropicalista, mas com os dois pés no chão

Por André Deak Publicado em 08/09/2008, às 17h27 - Atualizado em 09/09/2008, às 16h41

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O "então" Secretário Executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, anuncia o resultado de um edital do MinC ao lado do "então" ministro/cantor Gilberto Gil (2007)
O "então" Secretário Executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, anuncia o resultado de um edital do MinC ao lado do "então" ministro/cantor Gilberto Gil (2007)

As baianas preparavam o acarajé quando a polícia chegou. Faziam mais ou menos do mesmo jeito que as escravas aprenderam a fazer havia séculos, quando o bolinho era uma oferenda preparada pelas filhas de santo. Agora o acarajé já não era mais para os santos, mas para os passantes, a R$ 3,50 cada um. A polícia que chegava para retirar as baianas vinha para fazer mais ou menos como os oficiais estão acostumados a fazer há séculos, removendo camelôs, sem-teto, vagabundos e outros irregulares que insistem em viver ou trabalhar na via pública. Mas daquela vez foi diferente. Pouco mais de uma semana antes de a polícia chegar, o então ministro Gilberto Gil havia passado por Salvador.

Naquele dezembro de 2004, o acarajé tinha virado patrimônio nacional, em uma decisão tomada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão do Ministério da Cultura que ao mesmo tempo determinou que ser "baiana do acarajé" era uma profissão regulamentada. Quando a polícia veio pra cima, rodou-se a baiana. As mulheres, munidas com seus bolinhos, gritaram aos guardas: "Isso aqui é patrimônio brasileiro! Somos reconhecidas pelo governo!". Os policiais não entenderam direito, mas acharam por bem deixá-las ali. O documento do governo, apesar de não ter valor algum para mantê-las trabalhando na rua sem autorização, deu a elas algo ainda mais importante: a aceitação da legitimidade de sua cultura. Transformou saberes regionais, profundos, em poder concreto, capaz de vencer embates. Inclusive com a polícia.

As baianas não são as únicas. Rappers, repentistas, capoeiristas, ciganos, índios, homossexuais e hackers, entre outros, estão ou estiveram na mira do Ministério da Cultura nos últimos seis anos. Essa opção pela cultural marginal, não-consagrada (pelo menos no velho eixo Rio - São Paulo), trouxe a Gilberto Gil apelidos não-lisonjeiros como "ministro Bumba-Meu-Boi". Mas a defesa dos chamados conhecimentos difusos trouxe também reconhecimento - mais fora, aliás, do que dentro do país. Gil foi chamado de "ministro da cultura do mundo" pelo forte movimento do Brasil em defesa da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, que exclui a cultura das regras do comércio internacional. A convenção foi aprovada em Paris, em 2005, pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por 148 países. Apenas Estados Unidos e Israel votaram contra. A convenção é uma espécie de Protocolo de Kyoto da cultura - em uma comparação feita, na época, pelo próprio Gil. Permite que os países utilizem as ferramentas necessárias para defender suas culturas, sem que sejam acusados de protecionistas.

A gestão Gilberto Gil foi, sem dúvida, a que trouxe mais atenção para o Ministério da Cultura. Criado em 1985, era até então um apêndice do Ministério da Educação. Com a chegada do artista, a pasta ganhou dimensão nacional e internacional. Há quem diga que ele misturou as coisas, tendo sido mais um ministro-showbiz do que um político, mas essa é uma análise rasa. Nos primeiros meses no governo, era comum que a cada discurso ouvisse o pedido em coro da platéia: "canta, canta, canta!"; nos últimos anos, em um show em Brasília, já ouvia um refrão diferente: "mi-nis-tro, mi-nis-tro, mi-nis-tro!". O político se sobrepôs ao artista. Inverter essa relação foi a justificativa que ele deu ao pedir para sair, repetidas vezes, tendo sido finalmente atendido em julho. Mas não escondeu, na entrevista em que explicou a decisão, que lastimava não ter dinheiro para realizar ações. "Acho que a gente podia ter tido um orçamento mais generoso. As dificuldades com as contas governamentais e o superávit primário [economia que o governo faz para pagar juros da dívida] fizeram com que não tivéssemos atingido 1% [do orçamento da União], que era nossa meta e o recomendado pela Unesco." Ele conseguiu chegar a 0,6% em 2007, de 0,2% que recebia em 2003. De um jeito ou de outro, é pouco. O que fica e o que vai com o artista é uma questão pertinente. O legado que ele deixa, em uma perspectiva histórica, só o tempo mostrará. Mas sua saída deverá manter os rumos indicados por ele, até porque a equipe que fica é a mesma. O braço direito, desde o primeiro momento, foi justamente Juca Ferreira, sucessão natural dentro do gabinete. Nos últimos meses, já era ele quem comandava quase tudo.

Você lê esta matéria na íntegra na edição 24 da Rolling Stone Brasil, setembro/2008