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O Verdadeiro Preço do Etanol

O Brasil, maior produtor e exportador mundial do etanol, é o mesmo que emprega feitores nas lavouras de cana de Pernambuco, desrespeita a legislação trabalhista, comete crimes ambientais e oferece apoio a usineiros fora-da-lei

Por Maurício Monteiro Filho Publicado em 12/06/2009, às 17h51

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FOTOS ANDRÉ PESSOA
FOTOS ANDRÉ PESSOA

Quarenta e seis trabalhadores estavam reunidos no terraço do alojamento onde passaram metade dos seus últimos quatro meses - a outra metade foi gasta, e gastou-os, no corte da cana nas terras da usina Cucaú, em Rio Formoso, extremo sul da Zona da Mata pernambucana, próximo à fronteira com Alagoas. As expressões nos rostos alagoanos e pernambucanos alternavam entre tensão, ansiedade e alívio: esperavam o carro com os auditores do Ministério do Trabalho e Emprego que determinariam o fim de uma longa espera de quase uma semana. A safra tinha terminado para eles fazia seis dias e, desde então, os lavradores aguardavam o pagamento de sua última quinzena de trabalho mais o "acerto" - como são chamadas as verbas rescisórias, muitas vezes o único dinheiro que os trabalhadores conseguem levar intacto de volta para casa.

Num espaço de poucas horas, os trabalhadores receberam mais visitas ilustres do que em todo o período da safra. Advogados e altos diretores que nunca pisaram ali nestes quatro meses agora se acumulam, falando nervosamente aos celulares.

Chego perto de um agrônomo da empresa, que vai logo dizendo: "Ontem parece que vieram aqui uns homens que se passaram por fiscais do trabalho..." Os homens éramos o fotógrafo da reportagem, o padre Tiago Thorlby da Comissão Pastoral da Terra em Recife e eu. E nunca tínhamos escondido nosso objetivo quando falamos com os trabalhadores no dia anterior: estávamos checando a denúncia de que os agricultores não tinham sido pagos no fim da safra, feita dois dias antes. Agora, voltávamos para acompanhar o desfecho da história. "Deve ter sido suposição de algum dos capatazes da empresa", respondo. Um deles tinha até me perguntado, proativo: "Você viu alguma coisa errada que a gente possa resolver?" "Pagar os trabalhadores é um bom começo", eu disse. Não era preciso ser fiscal do trabalho para pensar assim, certo? Repeti a palavra "capatazes" algumas vezes em nossa breve conversa. Isso parece ter incomodado o agrônomo, que disse:

- Aqui não tem isso de "capataz". Essa palavra tem um sentido...

- Tudo bem. Feitor, então...

- Isso.

Desde os livros didáticos do ensino fundamental, todo brasileiro aprende sobre as capitanias hereditárias, os engenhos e todo o ciclo econômico que se baseou na produção de açúcar na época da Colônia. E aprende que Pernambuco foi justamente o epicentro de toda essa cultura. Nas mesmas terras em que a cana nasceu para o Brasil enquanto o próprio Brasil nascia, hoje cidades são literalmente engolidas pelas lavouras.

Atualmente, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2007, Pernambuco é apenas o sétimo estado em área plantada de cana, com 356.500 hectares, e o nono em produção, com pouco mais de 19,6 milhões de toneladas. São Paulo, líder disparado em ambos os rankings, tem 3,89 milhões de hectares de lavouras de cana e produz 329 milhões de toneladas.

Mesmo assim, Pernambuco continua tendo papel de destaque no setor sucroalcooleiro nacional porque opera em época complementar ao Centro-Sul, isto é, sua safra ocorre na entressafra dos outros polos produtores nacionais. Isso significa dizer que, devido à produção dos estados nordestinos, Pernambuco incluído, o Brasil tem cana-de-açúcar disponível durante o ano inteiro. E para um país que pretende estar presente nos tanques de combustível de todo o globo através de seu etanol, essa produção constante é fundamental. "Isso representa uma vantagem competitiva para o Brasil", enaltece Renato Cunha, presidente do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool no Estado de Pernambuco (Sindaçúcar).

Segundo Cunha, a cana nordestina apresenta muitas outras vantagens. O dirigente diz que, enquanto a região responde por cerca de 13% da renda gerada pelo setor, emprega 35% de seus trabalhadores. "Nós ocupamos 5,8 homens por tonelada de cana produzida, enquanto no Sudeste a taxa é de 0,8 homem por tonelada. Praticamos uma agricultura social", atesta. Essa alta proporção de empregabilidade se deve, em grande parte, ao fato de que o relevo das áreas produtoras do Nordeste é acidentado, composto basicamente por morros. Isso impede a mecanização, que já vem sendo empregada em diversas porções do Centro-Sul. Ainda de acordo com Cunha, "aqui não existe problema de trabalho escravo, não existe itinerância de trabalhadores e não há a figura do 'gato' [recrutador de mão-de-obra]".

No contexto nacional, em 2008, o Brasil quebrou o recorde de exportação de etanol, com 5,16 bilhões de litros vendidos no exterior e permanece inabalável como o maior produtor e exportador mundial desse combustível. Esses dados permitem dizer que, mesmo em meio à crise financeira mundial, o etanol brasileiro vive um boom. Padre Tiago, que é de origem escocesa, conhece bem esses estrangeirismos. "O problema é que esse boom vira bang", analisa.

A situação atual da lavoura canavieira de Pernambuco é o melhor retrato desse bang, que no estado assume mais a forma de uma implosão. Na década de 1980, 43 usinas de cana operavam em Pernambuco. Hoje, são apenas 24. O endividamento do setor é tamanho que cada vez mais impera, em diversos segmentos, a noção de que a cana em Pernambuco é um negócio estruturalmente inviável, não apenas do ponto de vista socioambiental, mas também do econômico. Com isso, agravou-se a concentração fundiária no estado, o que explica a grande variedade de movimentos organizados de luta pela reforma agrária pernambucana. De acordo com o líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no estado, Jaime Amorim, "a reforma agrária é a única alternativa que se tem para resolver o problema dessa região".

Em vez desse cenário ampliar a consciência dos empresários do setor para a necessidade urgente de mudanças, parece estar acirrando vícios históricos. De fato, ao cruzar as vicinais que cortam a Zona da Mata por dentro das usinas e engenhos, fica claro que a figura evocada pelo agrônomo da Cucaú - o feitor - continua fazendo parte do cotidiano nas usinas. Às vezes, ele assume ares mais tecnológicos e aparece através de intricados esquemas de segurança que contam com guaritas, torres de observação e vigias com rádios. Ninguém entra ou sai de uma usina despercebido. Nas quadras, frentes de trabalho da cana, o feitor está dissolvido em um rígido sistema hierárquico em que lavradores mandam em lavradores que mandam em lavradores. Um deles, o cabo, carrega uma vara de mais de 2 metros de comprimento: é o temido instrumento da medição da cana cortada pelos trabalhadores a cada dia. Todos respondem a um supervisor montado em um cavalo. A cena, que se desenrolava à minha frente, me fez lembrar uma parábola sobre um empresário da cana que, quando perguntado se um dia mecanizaria sua produção, respondeu: "De jeito nenhum!" Por quê? "Hoje, de cima do cavalo, eu olho para meus funcionários de cima para baixo. Se eles estiverem no comando das colheitadeiras, serão eles que me olharão de cima."

Em alguns momentos, o feitor parece agir de dentro dos próprios trabalhadores. José Antônio da Silva, de 58 anos, começou no corte de cana com 11 anos. Já está registrado na usina Cucaú há 30. Quando paramos para conversar com ele, que estava limpando o mato de uma área, o lavrador vai logo dizendo: "Só coloco os equipamentos de proteção para ir pra cana grande". Na cana grande, perdeu um dos dedos, mas isso não o fez ter raiva da planta. Nem o fato de não estar dando para sustentar a família com o salário que ganha, e ter que contar com a aposentadoria próxima para conseguir fazê-lo.

Mas, sem sombra de dúvida, o feitor mais eficiente das usinas pernambucanas não suja os sapatos nas lavouras, não se dirige aos trabalhadores e não assume responsabilidade alguma por eles. Mesmo assim, é vital para a sobrevivência das empresas do setor sucroalcooleiro. Sem ele, quase nenhuma das conquistas do segmento teria se concretizado. Seus fins justificam os meios e o modus operandi é o lobby: o feitor dos feitores de Pernambuco são os padrinhos políticos, as costas quentes nos gabinetes, emulações contemporâneas dos velhos coronéis.

Comparemos as usinas pernambucanas com uma empresa de uma nova área de expansão das lavouras de cana, bem distante do estado nordestino. Peguemos, ao acaso, um município, digamos, do norte do Mato Grosso. Mais precisamente, no município de Confresa: Destilaria Gameleira. Somadas todas as vezes em que essa empresa foi flagrada utilizando mão-de-obra escrava - foram quatro -, ela é a recordista nacional em número de trabalhadores envolvidos. Numa única ação de fiscalização em sua propriedade, em 13 de junho de 2005, foram libertados 1003 trabalhadores. Era a maior libertação de trabalhadores escravizados no Brasil até junho de 2007, quando uma ação numa fazenda no município de Ulianópolis, no Pará, libertou de uma só vez 1064 pessoas. Novamente, tratava-se de uma destilaria, pertencente à empresa Pagrisa. A libertação de 2005 era apenas uma escala na carreira escravista da Gameleira, que já chegou a fazer parte da chamada "lista suja" do trabalho escravo, um cadastro do Ministério do Trabalho e do Emprego que inclui empresas ou propriedades que tenham sido autuadas pela infração e que impede que elas tenham acesso a crédito público por dois anos.

Mas a escravização em massa era apenas uma das faces do caso da Destilaria Gameleira. Além dos problemas trabalhistas, a empresa demonstrou que se alimentava também de poderosas conexões no meio político. Após terem ciência da realidade a que a direção da Gameleira submetia seus trabalhadores, grandes compradoras da destilaria, as distribuidoras Petrobras, Ipiranga, Texaco e Shell suspenderam seus contratos com a empresa. Pouco depois da medida, o Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis recebeu uma ligação ilustre: o então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, dirigiu-se à entidade para averiguar os motivos da suspensão dos contratos comerciais com a destilaria. O próprio Cavalcanti confirmou publicamente a ligação, dizendo que a fizera atendendo a pedidos de deputados federais.

A ação escancarada de lobby em favor da Gameleira foi o argumento usado pelo deputado Fernando Gabeira para redigir o primeiro esboço de um pedido de cassação de Cavalcanti - e foi também combustível do célebre bate-boca entre os dois congressistas. Pouco depois, Severino acabou renunciando, mas pressionado por denúncias de cobrança de propina por parte do então presidente da Câmara.

Severino Cavalcanti é um político que fez carreira justamente em Pernambuco. E nesse mesmo estado ocorreu outra reverberação do caso Gameleira. O Jornal do Commercio, tradicional veículo impresso pernambucano, foi o único a publicar uma notícia sobre a libertação dos 1.003 trabalhadores da Gameleira. Como resultado, o editor-executivo do periódico, Cícero Belmar, acabou demitido.

A chave para entender este verdadeiro labirinto de influências políticas que conecta o Mato Grosso a Pernambuco está na mesa diretora da Destilaria Gameleira. A empresa pertence ao Grupo EQM, controlado pela tradicional família Queiroz Monteiro e sediado justamente em Pernambuco.

À frente do grupo, está o empresário Eduardo Queiroz Monteiro, que, entre outros negócios, é também proprietário do jornal Folha de Pernambuco. Eduardo é amigo do dono do Jornal do Commercio, João Carlos Paes Mendonça, e ambos entenderam que reportagens como a veiculada pelo Jornal do Commercio sobre os escravos da Gameleira eram obstáculos a essa amizade. Daí a demissão do editor.

Outro membro ativo do grupo EQM é o irmão de Eduardo, Armando Queiroz Monteiro Neto. Armando é deputado federal, presidente da Confederação Nacional da Indústria e chegou a ser sócio da Gameleira.

Pela pressão econômica que a péssima conduta trabalhista da destilaria fez recair sobre ela mesma, o grupo se viu forçado a uma alteração radical. A começar pelo nome: desde maio de 2006, a empresa opera sob o título de Destilaria Araguaia. A nova companhia adquiriu mais terras, ampliou suas instalações, reformou seu quadro societário - Eduardo comprou a parcela da Gameleira que pertencia a sua família - e afirmou ter modernizado suas relações de trabalho através de novos investimentos.

Entidades civis locais corroboram a melhora, mas, em 2007, 14 trabalhadores da Araguaia foram presos após protestarem contra o atraso de seus salários.

Apesar de repetidas tentativas de falar com a empresa, até o fechamento desta reportagem o grupo EQM não se pronunciou. O deputado federal Armando Queiroz Monteiro, através de sua assessoria, afirmou que não comenta o assunto.

Pergunto-me qual o papel que os donos da antiga Gameleira - atual Araguaia -, usineiros de carreira em Pernambuco, desempenham no que o presidente do Sindaçúcar chamou de "agricultura social" do estado. A resposta surge enquanto entramos pela primeira vez na propriedade da Cucaú, escrita no uniforme de um trabalhador da usina, que traz o logotipo de um tradicional grupo do ramo sucroalcooleiro pernambucano, em letras capitulares: Grupo EQM.

Subitamente, faz muito mais sentido que uma denúncia de trabalhadores insatisfeitos tenha partido da usina Cucaú, que pertence exatamente ao grupo EQM, um dos maiores escravagistas do Brasil. E a queixa trata da mais elementar das obrigações patronais, que a empresa até agora não honrou: o pagamento de salários. Para despistar a atenção dos capatazes - ou feitores, como preferem os funcionários da empresa -, sempre que alguém diferente se aproxima, o padre Tiago finge estar combinando o horário da missa, com seu forte sotaque britânico. "Gente boa, teremos missa às seis horas para agradecermos por toda a bondade da empresa com vocês, combinado?" Todos confirmam, calejados na arte de camuflar qualquer denúncia contra os empregadores, com medo de represálias. Ainda que não tivéssemos nada a ver com o Ministério do Trabalho, a postura dos funcionários mais altos da usina por si já era quase como uma confissão de culpa, como que garantindo que algo de errado estava acontecendo. "Uma vez que o Ministério veio aqui, o gerente escondeu todas as nossas coisas", conta o alagoano Luiz Carlos Matias Nascimento.

Pelo histórico trabalhista cada dia mais manchado das usinas de cana, a reação natural foi um aumento das ações de fiscalização do Ministério do Trabalho e do Emprego. Entre os trabalhadores alagoanos da Cucaú, um deles já havia trabalhado na Alcomat, outra usina matogrossense que figurou na lista suja do trabalho escravo. Quando perguntei a outro cortador de cana alagoano, Paulo Jorge Melo, qual seriaseu destino quando recebesse o salário, ele disse que ficaria uns dois dias em casa e depois iria para uma entre três fazendas em que já havia trabalhado, todas elas com irregularidades trabalhistas notórias. Mas não é apenas o caso da Cucaú que demonstra o total descaso pernambucano com a legislação trabalhista. Dias antes, a poucos quilômetros dali, uma ação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Pernambuco libertou da escravidão 38 trabalhadores paraibanos no Engenho Liberdade, no município de Escada. Entre eles, havia um adolescente de 16 anos. A ação rendeu ao empregador 46 autos de infração e a interdição dos alojamentos e frentes de trabalho.

Agora, é hora do almoço e os trabalhadores cozinham os últimos restos de comida que ainda possuem, mas já não teriam dinheiro para comprar a alimentação dos dias seguintes. A espera só se tornaria mais dramática daqui em diante. Matias é um dos mais irados entre os trabalhadores. Sua cabeça já está desbastando outras lavouras a centenas de quilômetros dali, mas a consciência de que quatro filhos o esperam em casa em Alagoas exige que ele aguarde o pagamento. Surpreendentemente, o trabalho de safrista, por mais precário, desenvolve uma visão de negócios altamente aguçada em quem se dedica a ele: cada dia parado significa um rendimento menor. É mais ou menos o mesmo raciocínio que motiva um grupo tradicional e estabelecido como o EQM a reter o salário de seus empregados por alguns dias.

Se ainda fosse uma remuneração gorda, proporcional ao efeito físico que o trabalho na cana gera nos corpos dos cortadores, vá lá. Mas outro alagoano, Genival da Silva, acaba de me estender seu holerite: na segunda quinzena de novembro, seu trabalho lhe rendeu R$ 138. Teria valido R$ 223, não fossem os descontos. Entre eles, há R$ 43 referentes a um adiantamento de salário que ele diz não ter recebido. Mas sou eu quem lhe informo o significado dos números no recibo, já que ele não sabe ler.

Entre os descontos, há também R$ 17,90 referentes à contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Paulo Jorge Melo se machucou no alojamento e precisou de atendimento médico e de alguns dias de afastamento. Por acaso, acabou descobrindo que, durante o período em que estivera trabalhando para a Cucaú, nenhuma contribuição à Previdência havia sido depositada em seu nome.

Para grande parte dos alagoanos, venceu a sede da estrada. Quando a safra terminou, no dia 14 de março, um ônibus da empresa encostou no alojamento para levá-los de volta. Quando perguntaram pelo salário e pelo acerto que faltavam, os trabalhadores foram informados de que eles poderiam voltar depois para receber. Uma parte deles, que agora espera no terraço junto a outros trabalhadores pernambucanos, desconfiou da oferta e preferiu ficar. Mas a maioria partiu. Trocaram a incerteza da espera por alguns trocados pela certeza de que alguma lavoura Brasil afora os esperava. Aos que ficaram, foi dito que não havia previsão para o pagamento dos salários. Matias afirma: "O trabalho é mais pesado para os que vêm de fora". Mas esse é um conceito bastante relativo: no caso dos trabalhadores da Cucaú, para se atingir um valor de R$ 5 por tonelada cortada, era necessário cortar, no mínimo, 7.

Infelizmente essa realidade ainda não foi capaz de transformar o discurso oficial da indústria canavieira pernambucana, que continua alegando estar livre dos problemas que vêm se mostrando crônicos nas lavouras de cana de todo o Brasil. Mesmo assim, por mais contraditório que possa parecer, Renato Cunha, do Sindaçúcar, informa que está sendo coordenada pela Secretaria Geral da Presidência da República uma mesa de diálogo sobre a melhora das condições de trabalho nos canaviais brasileiros. "Ela vai gerar um pacto de boas práticas para o setor", diz Cunha. No caso da Cucaú, as boas práticas só vieram à tona quando a equipe de auditores fiscais do trabalho chegou à usina. Segundo informações da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Pernambuco, no próprio dia da ação, foram pagos R$ 69.068,69 em verbas rescisórias para os 82 trabalhadores envolvidos. Dirigentes da empresa alegaram que a rescisão dos safristas, em sua maioria alagoanos, já estava pronta, mas que os lavradores preferiram aguardar os fiscais para conferir se os valores estavam corretos. Quanto aos efetivados, todos pernambucanos, a empresa se comprometeu a regularizar a situação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. A empresa não ofereceu nenhuma resistência quanto a realizar o pagamento, e alegou que a demora se deveu a dificuldades financeiras que atravessa. O valor pago pela empresa incluiu também a reversão de todos os descontos indevidos sobre as remunerações dos cortadores de cana e a alimentação dos dias em que eles ficaram no alojamento da usina após o fim da safra. A ação rendeu à Cucaú dois autos de infração, mas a fiscalização ainda está em andamento e deve implicar novas punições à usina.

Os discursos contraditórios sobre a cana pernambucana já galgaram os mais altos degraus da política nacional. Depois do presidente Lula ter afirmado que "os usineiros, que dez anos atrás eram tidos como bandidos do agronegócio, estão virando heróis nacionais e mundiais", o ministro do Meio Ambiente Carlos Minc chamou os empresários pernambucanos do setor de "fora-de-lei" e o estado de "desastre do desastre". A declaração de Minc foi uma resposta à Operação Engenho Verde, do Ministério do Meio Ambiente. O resultado da ação foi devastador para o setor sucroalcooleiro: as 24 empresas que atuam em Pernambuco foram multadas, no valor total de R$ 120 milhões, por crimes ambientais. As irregularidades são visíveis das estradas, em qualquer parte da Zona da Mata: topos e encostas de morro e margens de rios tomados pela cana, sem nenhum respeito por áreas de preservação permanente ou matas ciliares. Mas estamos chegando ao auge da devastação ambiental de que a indústria da cana é capaz, descalços e com as calças erguidas até os joelhos. A monótona paisagem de oceanos de cana que emoldurou a viagem vai dando lugar a um mangue que parece intocado. Nosso destino é a Ilha do Constantino, uma das 32 que compõem o arquipélago do estuário das Ilhas de Sirinhaém, onde só é possível chegar a pé, pelo rio.

A região já serviu de moradia de 53 famílias, que se espalhavam em 17 ilhas. Mas elas estavam na rota de atuação de uma das mais tradicionais entre as usinas pernambucanas, a Trapiche, que pertence ao alagoano Luiz Antonio de Andrade Bezerra. A usina foi fundada em 1887. Hoje, só duas famílias, cerca de 13 pessoas ao todo, resistem à ação da empresa. Enquanto isso, os ilhéus que, pela pressão da usina, acabaram abandonando suas terras, ocupam hoje a periferia de Sirinhaém. "De tudo tinha dentro dos manguezais, guaiamum, siri, camarão... Mas a usina começou a soltar o vinhoto, e foi matando todos os peixes", denuncia Maria Nazaré dos Santos, uma das moradoras, à frente de sua casa de barro. Resíduo da destilação fracionada do caldo de cana-de-açúcar fermentado para a obtenção do etanol, o vinhoto é pastoso e malcheiroso. Pode ser usado como fertilizante, mas é fatal aos rios. Calculase que 12 litros dessa substância correspondem à produção de 1 litro de etanol. Por crimes como o denunciado por Nazaré, a Trapiche já foi autuada três vezes pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mas as agressões da usina não são apenas contra o meio ambiente. A casa onde Nazaré mora, a única construção que merece esse nome em toda a ilha, já teve de ser reconstruída mais de sete vezes. Sua irmã, Maria das Dores, solteira e mãe de seis filhos, hoje - sem condições de reerguer a casa - mora num barraco coberto de lona.

A simples presença dos moradores nessa área é alvo de repressão da empresa. Funcionários da usina, muitas vezes acompanhados de policiais militares, derrubam as casas sem nenhuma acusação ou motivo. Em 2007, de forma ilegal, elas chegaram a ficar presas dentro das próprias casas e, mesmo analfabetas, foram forçadas a assinar documentos para serem liberadas. "Mas os candidatos vêm, na época de eleição", diz Maria das Dores, que é conhecida como Graça. É de seu barraco que ela escuta, num rádio de pilha, o programa Café com o Presidente, que adora. O rádio e idas à cidade para vender o que ainda se pode retirar do mangue são as únicas conexões da família com a vida urbana. Na maior parte do tempo, elas estão completamente isoladas e marcam as estações do ano pelo momento em que o vinhoto, com sua "caatinga de carniça", começa a apodrecer os rios. Mesmo com as constantes ameaças por parte da empresa, as irmãs não pretendem deixar a área. "Aqui é um lugar bom de se morar. Esta ilha tem muita riqueza", afirma Nazaré. Até o fechamento desta reportagem, nenhum representante da usina Trapiche respondeu aos pedidos de entrevista.

As ilhas do estuário são alvo de uma complexa disputa, que envolve questões ambientais e fundiárias. Do ponto de vista ambiental, o avanço dos canaviais sobre as áreas de mangue está em completo desacordo com a lei. Por isso, e para resguardar os direitos dos ilhéus que dependem da área há décadas, em 2006 foi proposta a criação de uma Reserva Extrativista (Resex) na área. O processo da criação da unidade já está em fase de consulta pública, que deve ocorrer em breve. Do ponto de vista da posse da terra, por se tratar de um estuário, as terras pertencem à União, por constituírem terrenos demarinha. Desde 1898, são exploradas através de aforamento, que é apenas uma concessão do domínio útil de terra pública. Por meio de sucessivas transferências desse, a Trapiche tornou-se a atual beneficiária.

Em tese, para que a área seja convertida em unidade de conservação ambiental, o aforamento teria que ser cancelado. Se isso ocorresse, os ilhéus sairiam vitoriosos porque teriam direito de permanecer na Resex e explorá-la para seu sustento. Foi então que, novamente, entrou em cena o poder político dos empresários do setor sucroalcooleiro pernambucano. A decisão sobre o cancelamento do aforamento depende de autorização do ministro do Planejamento. A Gerência Regional do Patrimônio da União que integra o dito ministério propôs o cancelamento do aforamento, endossando a argumentação dos órgãos ambientais. Porém, numa manobra política para beneficiar os interesses da usina, um personagem do alto escalão do governo federal intercedeu na questão: José Múcio Monteiro, que já foi líder do governo na Câmara e hoje é ministro da Secretaria de Relações Institucionais. A conexão de Múcio com o setor sucroalcooleiro pernambucano é bastante antiga. Coincidência ou não, entre 1969 e 1972, ele foi superintendente da usina Cucaú. A partir de então, passou a diretor-superintendente do Grupo Armando Monteiro, pertencente à família de Armando Monteiro Neto e Eduardo Queiroz Monteiro, de onde saiu para dedicar-se à carreira política. Com sua interferência, o cancelamento total do aforamento do estuário de Sirinhaém foi revertido e apenas parte dele foi cancelada.

Quando os resultados da Operação Engenho Verde vieram a público, Carlos Minc afirmou que não daria sossego "para os usineiros com costas quentes políticas". O ministro perdeu uma grande oportunidade de exercer esse juramento com um vizinho de Esplanada.