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Passado Negro

Por Tadeu Breda Publicado em 09/10/2009, às 10h14

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FOTOS RAONI MADDALENA
FOTOS RAONI MADDALENA

Melânia não parece ser do tipo que costuma falar com estranhos, mas não se incomodou quando interrompemos seu trabalho, solicitando uns minutos de conversa. Ainda com o facão na mão, um pedaço de ferro oxidado com o qual podava pés de cacau, sentou-se sob a sombra de sua casa, entre sabugos de milho, pintinhos cantantes e baldes d'água. O cheiro, na maior parte do tempo, era de terra. As raras bocanadas de vento daquele sábado ensolarado, porém, vinham sempre acompanhadas de uma fragrância química e enjoativa. Era exatamente aquele o tema da conversa.

Melânia Chama é uma agricultora de mais ou menos 40 anos. Não foi a única pessoa que conhecemos no Equador que não soube dizer com exatidão a própria idade. Quem mora e tira seu sustento do campo pode muito bem reger toda uma vida entre dia e noite, sol e chuva, inverno e verão. Relógio e calendário não têm muita utilidade para quem sabe de cor o cio da terra e sente na pele as mudanças de estação. É o caso de Melânia e, provavelmente, também de suas três filhas, que poderiam ser oito se a mãe já não tivesse passado por cinco abortos espontâneos. Ninguém sabe explicar muito bem por que esta campesina perdeu tantos bebês em tão pouco tempo. É verdade que certa vez um médico disse que sua estrutura corporal não era das melhores para enfrentar uma gravidez, mas a saúde de suas três filhas, que labutam com ela na roça, prova o contrário. Para Melânia, há outras razões por trás das gestações interrompidas. "Vivo aqui há mais de 20 anos", ela conta. Aqui, no caso, é Shushufindi, município encravado na floresta Amazônica, no norte do Equador, distante pouco mais de uma hora da fronteira com a Colômbia. Ela habita uma pequena casa de madeira, suspensa do solo por quatro vigas também de madeira para evitar que os animais saiam do matagal para dentro de seu lar. Junto com o marido, Melânia e as filhas tiram o sustento daquilo que conseguem cultivar na propriedade. Hoje é possível ver pés de mandioca, banana e milho, além do cacau, crescendo por ali. Antes da chegada da família Chama, no entanto, tudo era uma imensa piscina de petróleo.

Melânia divide sua história com outros 30 mil agricultores e indígenas que há mais de quatro décadas sofrem com a contaminação do ar, da água, da terra e dos lençóis freáticos no noroeste equatoriano. Shushufindi foi tão degradada pela atividade petrolífera que os moradores do lugar mais chegados ao cosmopolitismo empregam o termo "toxic tour" para designar o trajeto visitado pelos forasteiros que desejam conhecer pessoalmente as conseqüências sociais e ambientais de uma tragédia. Em 1964, o governo do Equador decidiu que estava na hora de reivindicar sua fatia na divisão internacional do petróleo. Era preciso, porém, delegar as tarefas de busca e exploração a uma empresa confiável, e a escolha óbvia apontava para a maior e mais importante companhia petroleira da época. No poder estavam os militares, e das mãos de seu nacionalismo a norte-americana Texaco Inc. recebeu uma área de 1,4 milhão de hectares para encontrar o objeto da cobiça oficial. Com o sinal sempre verde das autoridades, a empresa começou a derrubar a mata, construir estradas e instalar os primeiros poços de perfuração. A população indígena, que habitava o local há muito tempo antes de existir a Texaco ou mesmo o Equador, foi ignorada em nome do bem comum. O dinheiro do petróleo era necessário, e os índios simplesmente não entendiam o que estava acontecendo. Na década de 60, poucos indígenas falavam o castelhano na Amazônia equatoriana e, em algumas tribos, apenas haviam estabelecido algum tipo de contato com o homem branco. As perguntas só poderiam ser respondidas muitos anos depois.

"Conforme a companhia avançava floresta adentro e despejava no meio ambiente os resíduos da prospecção petrolífera, os índios foram sendo desalojados. Tiveram que abandonar suas terras porque, obviamente, já não podiam viver ali", explica o advogado Pablo Fajardo, que trabalha na defesa das populações afetadas pela atividade da Texaco no Equador. Pablo chegou de bicicleta para a entrevista que marcamos na sede do Comitê de Direitos Humanos de Shushufindi, um pequeno escritório cedido pela Igreja Católica onde começou a militância que mais tarde o levaria para a faculdade de Direito. Trazia o filho na garupa, junto com a experiência de quem está envolvido em uma das maiores batalhas judiciais da história. No começo da década de 90, quando o processo começou a correr na Corte de Nova York, Fajardo ainda não era advogado. Aprendeu a lidar com a Justiça convivendo diariamente com a injustiça, que cresce em praticamente todo pedaço de terra amazônico. E não importa se é regada com água da chuva ou petróleo: floresce do mesmo jeito e se dissemina em cada caso de infecção, câncer ou intoxicação que não para de ser registrado no hospital da cidade.

É inevitável sentir um nó na garganta ao olhar para as condições de vida dos shushufindenses. O primeiro que se nota são os oleodutos. Estão espalhados por todos os lugares, quentes na beira dos caminhos, em cima dos rios, no meio dos campos. O bombeio ininterrupto do petróleo se traduz em estridência metálica ao ouvido humano, como se o combustível saísse da terra com marretas e golpeasse os canos de dentro para fora, ferro com ferro batendo no compasso matemático da extração. Quanto aos poços de petróleo, é bem fácil vê-los por aí, chupando o sangue da terra. Nem é preciso sair do perímetro urbano. Espaço de brincadeira da criançada, se espalham entre as casas e fazem parte da vizinhança. E são discretos. A tecnologia reduziu aquelas enormes estruturas pendulares, intrincado mecanismo de balanços e alavancas, a pequenos aparelhos que se assemelham a hidrantes. Cada poço vem sempre acompanhado de uma torre. Em Shushufindi, são conhecidas como mecheros, palavra que vem de mecha, que em castelhano quer dizer "chama". Diariamente, no alto de cada uma, queima-se o gás que sai da terra junto com o petróleo e que não é aproveitado economicamente. Por isso é que as noites da cidade misturam a escuridão ponteada de estrelas com os reflexos alaranjados de um incêndio industrial perpétuo, e o horizonte verde dos dias ensolarados é salpicado por pequenos focos incandescentes entre o que sobrou da mata virgem.

Bastou jorrar petróleo pela primeira vez, em 1967, para que o estado equatoriano decidisse apoiar sua economia na extração e venda do combustível em estado bruto. Ainda hoje é assim. Há dois anos, o Equador virou colega da Venezuela, da Nigéria, de Angola, do Irã, da Arábia Saudita, do Kuwait e de outros paraísos petroleiros ao ingressar novamente na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Aproximadamente 40% da receita obtida pela balança comercial do país depende do barro preto e pegajoso que move as engrenagens do mundo. Pelo menos na teoria, o governo necessita dos lucros do petróleo para investir em programas sociais que tirem os equatorianos da pobreza. Por isso, houve júbilo nacional quando se comprovou a viabilidade das reservas hidrocarboníferas na década de 60.

Mas, olhando para Shushufindi, a casa de máquinas da economia nacional, ninguém tem dúvidas sobre qual é a verdadeira origem do subdesenvolvimento.

"Há 28 poços petrolíferos funcionando dentro da nossa comunidade. Portanto, deveríamos gozar de todo tipo de serviços, mas sequer possuímos água potável ou saneamento básico", lamenta Santiago Chiriap, promotor de saúde intercultural no território indígena de Yamanunka, onde vivem cerca de 1.400 índios da etnia shuar. A cruzada pessoal de Santiago contra as "mortes repentinas" que começaram a assolar seus vizinhos o levou a investigar a qualidade da água que se bebe por ali. Isso porque as raízes e as plantas medicinais que sempre haviam curado com facilidade as dores de barriga de sua gente já não surtiam mais efeito. Chiriap, então, pediu ajuda a universidades e ONGs de Quito e, depois de três anos de análises laboratoriais, chegou à conclusão de que os indígenas estão ingerindo quantidades consideráveis de chumbo, arsênico e hidrocarbonetos junto com a água. Guarda com ele um calhamaço de papéis com o resultado de todos os testes e os mostra para quem quiser ver.

Quem duvida das palavras de Santiago ou de sua pasta de documentos pode facilmente procurar o doutor Jorge Herrera no Hospital Municipal de Shushufindi e ouvir praticamente as mesmas palavras: "A água dos nossos rios não está apta para consumo humano devido à contaminação por resíduos oriundos da atividade petroleira", resume.

Em 28 anos de operações no Equador, entre 1964 e 1992, a Texaco retirou do solo amazônico cerca de 1,7 bilhão de barris de petróleo. Em troca, deixou para esse canto esquecido do país um impacto sócio-ambiental "incalculável", que é como o advogado Pablo Fajardo define os efeitos colaterais da extração. Para maximizar os lucros, a empresa preferiu não seguir os parâmetros de proteção ambiental vigentes na época. A Texaco, por exemplo, não reinjetava no solo os líquidos tóxicos originados no processo de perfuração, conhecidos como "água de formação", uma substância esbranquiçada que sai das profundezas da terra exalando um cheiro que lembra a solvente. Ademais, conta Fajardo, para cada poço que escavava, a companhia construía duas, três ou quatro piscinas. Nelas, lançava todo tipo de resíduos.

"A Texaco escavou mais ou menos mil piscinas e despejou 18 bilhões de galões de água de formação diretamente nos rios. Houve centenas de derramamentos que nunca eram remediados. Também regava com petróleo as estradas de terra para reduzir a poeira. Com a chuva, o combustível obviamente ia parar nos cursos d'água", relata Fajardo. "Vi isso com meus próprios olhos."

A luta que se trava na Justiça desde 1993 - que começou nos Estados Unidos e que dez anos depois veio para o Equador, que já produziu centenas de quilos de perícias, relatórios, estudos técnicos e pareceres e que envolve milhares de pessoas e US$ 27 bilhões em indenizações - é exclusivamente pela reparação dos danos ao meio ambiente. Nenhuma pessoa em particular vai receber um centavo da fortuna que a Texaco terá de desembolsar caso seja derrotada. Fajardo contabiliza na categoria de "irrecuperáveis" os dois mil casos de câncer acima da média nacional que nos últimos 15 anos foram registrados na região; a maior taxa de mortalidade infantil do país; os contínuos abortos; a permanente contaminação dos sedimentos dos rios com metais pesados e outros resíduos tóxicos; as piscinas de petróleo que há 30 anos jazem debaixo da terra ou a céu aberto; a extinção de espécies animais e vegetais; e o desaparecimento de pelo menos dois grupos indígenas - tetetes e sansahuaris - que originalmente habitavam a zona.

"Como você vai calcular o preço de uma vida, como vai exigir uma indenização pela extinção de toda uma população indígena?", discursa Fajardo. "Apesar disso, vejamos o que pode ser feito. Se limparmos os resíduos tóxicos que permanecem nas piscinas, nos sedimentos dos rios, dos pântanos, se limparmos a natureza dos elementos que continuam matando as pessoas, já será muito. Assim se pode devolver um pouco da dignidade que foi roubada da população local."

Enquanto a Justiça trabalha, Manuel Salinas espera. Esperar, aliás, é o que mais soube fazer durante os23 anos em que viveu sobre uma piscina de petróleo. Quando chegou a Shushufindi fugido de uma seca que esturricou o roçado que tinha no sul do país, ele se deparou com um negócio irrecusável: uma boa chácara a um bom preço. Imediatamente, começou a erguer uma casa de madeira. E semeou. Mandioca, banana, milho, café, tudo crescia ali - com dificuldade. "A terra é fraca." Mas crescia.

Manuel sempre soube que seu pedaço de chão, antes de ser coberto com muita terra pela Texaco, havia sido uma piscina de petróleo. Quando chegou, porém, não avistou vestígios da lagoa negra. O que os olhos não veem, o coração não sente. O corpo, sim, sofreria com os efeitos colaterais, só que mais tarde. No momento, o problema parecia estar resolvido, e a vida continuou."É claro que tudo que sai desta terra está contaminado", diz, com a voz rouca que flui por debaixo do bigode setuagenário. O agricultor, no entanto, jamais deixou de comer os produtos que cresciam em sua chácara, nem quando o petróleo começou a estourar a sepultura de terra e, como por milagre, brotar novamente do solo.

"É a pobreza e a necessidade que nos move. Vamos confiando em Deus para que nos ajude e favoreça. Afinal, ainda estou vivo." É assim que justifica, num misto de alívio e lamento, a contaminação que a fome impôs a seu organismo.

Salinas quase morreu de gastrite depois que a tubulação subterrânea do poço 38 se rompeu a poucos metros da superfície. Ao lado, o agricultor mantinha um reservatório de água, de onde tirava para beber, banhar-se e cozinhar, porque não há saneamento básico na zona rural de Shushufindi. Depois do incidente, os líquidos tóxicos se infiltraram no lençol freático que abastecia seu reservatório e sua família. Demorou até que Manuel fosse informado do vazamento. Quando os técnicos vieram comunicar que o cano havia estourado, o estômago do campesino já reclamava suas dores. Não fosse a ação de amigos em levá-lo para tratamento em Quito, Salinas tem certeza, já estaria morto.

Antes do aparelho digestivo, no entanto, foi a pele que reagiu ao contato diário com a contaminação. Foi começar a contar suas mazelas para que arregaçasse as mangas e mostrasse os pequenos grãos rosados que se misturam às rugas do sol e da idade, que se espalhavam ainda pelo peito, barriga e costas. Enquanto fala, ele enfia um galho de árvore fino de dois metros de comprimento diretamente no solo, sem o menor esforço. Percebo que Salinas e toda sua propriedade há mais de duas décadas flutuam sobre milhares de litros de uma mistura de petróleo, lodo, água de formação e todo tipo de rejeitos. Foi exatamente ali que cresceram os alimentos que encheram seu prato durante tantos anos.

Dentro do contexto local, porém, Manuel Salinas pode ser considerado um sujeito de sorte. Há pouco mais de dois anos, quando acabava de ser eleito presidente do Equador, Rafael Correa fez uma visita à chácara de Salinas. Conheceu de perto a piscina que se revelava em seu quintal e conferiu a qualidade da água utilizada pela família do agricultor. Com a ajuda de um assistente, o presidente puxou um balde do fundo do reservatório, molhou as mãos e aproximou-as do nariz.

"Cheira a gasolina", comprovou.

Não demorou até que Salinas conseguisse do governo um novo lugar para morar. O poder público cedeu o terreno, mas o campesino teve que juntar as economias e financiar a construção da casa. Hoje, vive longe da piscina de petróleo e da intoxicação diária, recebe água na torneira e se protege da chuva em paredes de alvenaria. Mas não está satisfeito. "A contaminação está espalhada por toda a região", lamenta. "Não temos muito para onde escapar. Se me dão alguma indenização, compro uma terrinha em outro lugar onde dê pra plantar. Se eu pudesse, sairia de Shushufindi, não tenha a menor dúvida."

Apesar de ser desconhecido no Brasil e no mundo, o desastre ambiental provocado pela Texaco na Amazônia equatoriana é comparável aos acidentes ocorridos no Alasca com o petroleiro Exxon Valdez, em 1989, e na costa espanhola, com a embarcação Prestige, em 2002. Só que, ao em vez de ter vazado no mar, o petróleo equatoriano se derramou pela floresta, habitat não só de animais, mas também de gente. Organizações não governamentais, como a britânica Oxfam, classificam a contaminação petrolífera no Equador como a "catástrofe ambiental do século". A empresa norte-americana, porém, não abre mão de sua defesa, e tem adotado táticas para influenciar a sentença sobre a querela bilionária, que deve sair no fim de 2009, com direito a recurso para ambas as partes.

O alvo preferido da Texaco é Pablo Fajardo, acusado de estar buscando fama e riqueza ao sujar a imagem da empresa. É verdade que alguma fama o advogado tem conseguido. Devido a seu trabalho, é reconhecido por todos em Shushufindi, Lago Ágrio e Sacha, os três municípios equatorianos mais afetados pela contaminação. Permanece, no entanto, relativamente anônimo no resto do país - e isso apesar de ser um favorito da mídia internacional, que o descreve como um Davi mestiço e subdesenvolvido metido em uma luta desigual contra o Golias imperialista.

Outra estratégia da Texaco é incluir o estado equatoriano como réu no processo judicial. Segundo um informe da companhia, "os principais problemas de saúde na região não são resultado das operações petroleiras, mas sim da falta de infraestrutura para tratamento de água, saneamento básico e o acesso insuficiente da população a atendimento médico." Por isso, a empresa "rechaça firmemente a ideia de arcar com a responsabilidade de resolver os problemas da região, os quais resultam da indisposição ou incapacidade do governo e da petroleira estatal para cumprir com suas obrigações". Em várias ocasiões, Adolfo Callejas, um dos advogados da Texaco no Equador, colocou em dúvida a culpa pelos derramamentos e pela construção das piscinas de resíduos tóxicos existentes na zona: para ele, o petróleo lançado na natureza não ostenta o logotipo da empresa norte-americana e, como é impossível datá-lo, não se pode saber com exatidão quem foi o responsável pela tragédia - se a Texaco ou, mais recentemente, a Petroecuador. A companhia também alega que - sob a supervisão das autoridades equatorianas - executou um programa de recuperação ambiental no valor de US$ 40 milhões antes de deixar o país. "As obras foram inspecionadas, certificadas e aprovadas pelo governo do Equador, que liberou plena e cabalmente a Texaco de todas as queixas e obrigações futuras", afirmou Callejas. Porém, um documento emitido pelos escritórios da Texaco nos Estados Unidos para a sucursal do Equador é chave para contrapor tais alegações. No dia 17 de julho de 1972, R.C. Shields escreveu da Flórida uma carta para N.E. Crawford, em Quito, explicando os procedimentos recomendados na hora de reportar incidentes ambientais:

"Apenas eventos importantes devem ser comunicados.Um 'evento importante' é todo aquele que atrai a atenção dos meios de comunicação ou das autoridades ou que, na sua opinião, mereça ser reportado. Nenhum informe deve ser mantido na base de dados. Todos os comunicados anteriores devem ser destruídos."

É por essas que Pablo Fajardo não vê possibilidades de derrota nos tribunais. "Foram feitas 55 inspeções judiciais e em todas se demonstra que há contaminação por hidrocarbonetos, que a saúde humana foi prejudicada, que povos indígenas foram afetados, que havia intencionalidade da Texaco em poluir, que os danos foram provocados por razões econômicas e provavelmente também por racismo", ele enumera, na ponta da língua. "Seria perverso dar ganho de causa à empresa."

Não muito longe de Shushufindi, se encontra uma área de um milhão de hectares conhecida como Parque Nacional de Yasuní. Bem ali o governo equatoriano recentemente encontrou novas jazidas de petróleo: estima-se que 20% de todas as reservas do país estão escondidas debaixo da mata virgem. São mais de 850 milhões de barris que poderiam dar sobrevida ao negócio petroleiro no Equador. Para explorar o Yasuní, no entanto, será necessário derrubar parte da floresta. Isso significaria atentar contra um dos patrimônios mundiais da biosfera, título que a Unesco concedeu ao lugar porque nele sobrevivem pelo menos 165 espécies de mamíferos, 110 de anfíbios, 72 de répteis, 630 de aves, 1.130 de árvores e dois grupos indígenas em isolamento voluntário, os tagaeris e os taromenanis.

Para preservar um dos rincões intocados do país, e certamente com o mau exemplo da Texaco na cabeça, o presidente Rafael Correa resolveu inovar. Comprometeu-se a não escavar um poço petrolífero sequer no Yasuní caso receba da comunidade internacional uma compensação financeira de pelo menos US$ 300 milhões anuais durante dez anos. "Será um sacrifício compartilhado entre o Equador e o mundo", disse Correa. Só que não tem nada a ver com filantropia.

Todas as emissões de CO2 que seriam evitadas ao deixar o combustível embaixo da terra poderiam ser negociadas no mercado de carbono estabelecido pelo Protocolo de Kyoto ou em algum outro mecanismo parecido que ainda precisa ser inventado. O Equador venderia, portanto, "direitos de contaminação" aos governos europeus, que por sua vez leiloariam essas quotas a empresas que não cumpram com as metas de redução de emissões estabelecidas pelos acordos internacionais. Assim, os países desenvolvidos podem manter seu ritmo de produção industrial e o Equador receberá o dinheiro que receberia caso derrubasse a floresta para extrair petróleo.

Uma das apostas dos defensores do Yasuní é capacitar as comunidades indígenas e ribeirinhas para trabalhar com o ecoturismo. É assim que o governo pretende combater o desmatamento e outras atividades predatórias que pouco a pouco degradam as reservas naturais do país. É exatamente essa ideia que suscita a desconfiança de uma das mais importantes ecologistas do Equador. Esperanza Martínez, da ONG Acción Ecológica, elogia a decisão do governo de manter a floresta de pé, mas não acredita que a iniciativa represente uma ruptura com o modelo de desenvolvimento adotado pelo país e que vem sendo o responsável pela silenciosa degradação ambiental.

"Como ainda não temos um modelo alternativo a seguir, o que nos resta é frear o avanço do desenvolvimento atual até que apareça uma alternativa. Nesse sentido, a preservação do Yasuní é uma conquista impressionante", ela diz. "O parque deve ser conservado, mas isso não significa necessariamente uma mudança de modelo econômico para o país. Um Equador pós-petroleiro não é um Equador de mineração ou de represas."

Não é exagero dizer que o equador passa por um dos momentos mais importantes de sua história. Tem um (já não tão) novo presidente, uma nova constituição e um caminho bastante incerto pela frente. Rafael Correa tem 46 anos e nunca foi ligado à política. Antes de integrar o Movimento Pátria Altiva e Soberana, partido que hoje lidera, era um professor de economia na maior e mais cara universidade particular de Quito. Nasceu no meio de uma família de classe média, teve uma educação religiosa, fez mestrado na Bélgica e doutorado nos Estados Unidos. Nem de longe ostenta o histórico de lutas sociais do boliviano Evo Morales ou de Luiz Inácio Lula da Silva. Tanto que mais de uma vez Hugo Chávez usou o termo "Chicago Boy" para se referir à sua trajetória pessoal. Contudo, quando foi eleito pela primeira vez, em 2006, Rafael Correa tinha um sorriso no rosto e um projeto nas mãos: romper com as tradições políticas equatorianas.

Tudo começou em 1996. Então governava o país Abdalá Bucaram, um descendente de libaneses que ostentava orgulhosamente um bigode à la Adolf Hitler. Seu mandato durou pouco mais de seis meses, tempo suficiente para cometer bizarrices memoráveis e se atolar em denúncias de corrupção. A queda de Bucaram jogou o Equador num vaivêm presidencial. O último a cair foi Lucio Gutiérrez, que não aguentou a pressão dos manifestantes e entregou os pontos em meados de 2005. Correa, pelo menos por enquanto conseguiu colocar um freio no processo. Também conseguiu aprovar uma nova constituição que reconhece uma série de direitos inéditos na América Latina. Um deles é a plurinacionalidade. Desde sua fundação, em 1830, e antes, o Equador é um estado que abriga uma série de nacionalidades. Como tais, possuem línguas, economias, formas de justiça, religiões, tradições e culturas diferentes. Pelo menos no papel, hoje, o país reconhece a validade e a riqueza de cada uma delas. O novo texto constitucional também declara o meio ambiente como um ente jurídico cuja sobrevivência - ou seja, a conservação - goza de garantias legais: "A Natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a ser respeitada integralmente em sua existência, preservação e regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos", diz o artigo 71. Porém, é óbvio que nenhuma árvore ou jacaré fará manifestações caso o governo desrespeite seus direitos. Por isso, a constituição joga para os homens a responsabilidade de zelar pelos ecossistemas e exigir do governo o cumprimento da lei. Os direitos da natureza são, em boa medida, o reconhecimento de que nem o sistema capitalista atual nem a suposta boa vontade do ser humano foram suficientes para impedir a destruição do planeta. Pelo contrário, mais exato seria dizer que foram os responsáveis pela devastação crescente. Texaco e Shushufindi estão aí para provar isso.

O Equador não é um país desenvolvido, porque os índices de analfabetismo são altos e os serviços básicos estão longe de boa parte da população, porque ainda há muito racismo contra índios e negros, porque a sociedade equatoriana é extremamente desigual e a delinquência só faz crescer. O dinheiro que se tira da terra - seja das fazendas ou dos poços de petróleo - chega para poucos. Shushufindi, mais uma vez, serve de (mau) exemplo. Daí os reclamos por uma mudança estrutural, que, se depender do presidente Correa, não virá antes dos próximos 20 anos. Uma nova lei de mineração acaba de ser aprovada, e com ela se esperam cenários desoladores para algumas regiões que deveriam ser protegidas por sua biodiversidade. "A riqueza mineral neste país é imensa, supera os US$ 200 bilhões. Vamos deixar tudo isso intocado em nome de que não se derrube uma árvore ou um pássaro?", perguntou-se o presidente em uma de suas defesas à mineração. "Destruir a selva pode ser imoral, mas ainda mais imoral é renunciar aos recursos que podem tirar o país do subdesenvolvimento, que podem eliminar a miséria e a pobreza de nossa pátria."

A insistência de Correa provocou baixas importantes em seu governo. O movimento indígena foi um dos que tiraram o apoio ao presidente. Velhos aliados, como o economista Alberto Acosta, ex-ministro de Energia e Minas, se tornaram seus principais críticos. Mesmo assim, o presidente está convicto de que seu socialismo do século 21 é o caminho para o futuro. E, quando tive a oportunidade de questionar seu esquerdismo, durante uma entrevista coletiva concedida um dia após sua reeleição, ele não hesitou em defender-se com exemplos do passado.

"Se apoiar a mineração é ser de direita, então Che Guevara era de direita e Fidel Castro é de direita, porque um dos principais produtos de exportação de Cuba é o zinco, que, ademais, é explorado em minas a céu aberto. A China também seria um país capitalista, já que tem muitas minas. A União Soviética tinha mineração..."

Então me lembro de Melânia, seus 40 e poucos anos, seus cinco abortos e sua casa de madeira, de cuja janela se pode contemplar um poço de petróleo e uma torre de incineração perpétua de gás. Lembro que ao lado cultiva, com a ajuda das três filhas que conseguiram nascer, uma roça de cacau, milho e mandioca, e que algumas galinhas e porcos perambulam pela chácara sem se importarem muito com nada. Lembro que tudo um dia foi uma piscina de petróleo, e que tudo foi soterrado sem tratamento algum. E me lembro da resposta que ela, sem graça, deu à última pergunta de nossa entrevista. "Tem mais algo que você queira falar, Melânia?" "Não...", ri. "Não tenho que falar nada." Foi como se a palavra tivesse perdido poder em meio à desesperança dos discursos vazios.