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No Exílio com Roman Polanski

Por Mitchell Glazer Publicado em 11/01/2010, às 12h16

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Roman Polanski durante pausa nas filmagens de <i>O Inquilino</i>, em 1976 - EVERETT COLLECTION/KEYSTONE
Roman Polanski durante pausa nas filmagens de <i>O Inquilino</i>, em 1976 - EVERETT COLLECTION/KEYSTONE

Estou sobrevoando o canal da Mancha. A luz é do amanhecer ou do entardecer, deixando tudo muito claro, especial. Estou voando no "Gossamer Condor" - o avião propelido a força humana. É preciso pedalar, como se fosse uma bicicleta, para que ele permaneça no ar. Trata-se de uma máquina linda - a maneira como se move pelo ar, voando tão devagar, como se fosse um enorme pássaro de plástico. Mas, no meu sonho, não é assim tão bonita, porque estou preso no cockpit e estou caindo. Pedalo com todas as forças. Estou lutando pela vida. Mas a besta continuava despencando para perto do mar. Não há terra à vista e eu sei que se parar para descansar ou desacelerar, nem que seja só um pouquinho, vou de encontro ao oceano negro. Eu vou desaparecer... Ultimamente, ando tendo esse sonho com bastante frequência. Às vezes, acordo de manhã com as pernas doendo. - ROMAN POLANSKI

O garoto-raposa está à solta na cozinha e liga a máquina de café expresso. "Merda, eu sei usar esta coisa, sei mesmo. Espera um minuto. Que diabo é isso? Está faltando uma peça, duas peças. Só faltam duas peças. Sabe, aquelas coisas prateadas com furinhos... Jesus!" Jatos gêmeos de vapor de repente começam a sair da máquina. Roman Polanski se encolhe e dá início a uma busca cheia de pânico no recinto. "Sabe, eu tinha um empregado. Ele passou anos trabalhando para mim." O sotaque passional e múltiplo de Roman saltita pela cozinha. "Mas fico tanto tempo fora ultimamente que ele ficou folgado demais. Achou que era dono do lugar." Polanski abre um armário e espalha alguns pratos. "Então, eu precisei demiti-lo. Agora eu não sei onde diabos as coisas ficam." Com a testa franzida, ele ataca outro armário.

Os olhos de Polanski têm um certo ar afiado e animal, algo de lupino na estrutura óssea. É como se o pequeno Roman tivesse sido criado por um bando de raposas nos confins das florestas da Polônia central. Aos 47 anos, ele é uma contradição física. O rosto maroto de menino não combina muito bem com o torso de halterofilista. A gente fica achando que a qualquer minuto ele vai fazer a cabeça sair por um recorte e sair de dentro daquele corpo falso de madeira. Polanski deixa a cabeça pender para o lado e reflete, dá um tapa na perna. "Claro! Eu sei onde essa porcaria está." Enfia a mão dentro da lavadora de louça e, triunfante, tira dali as peças que faltam. "Está vendo? Ele realmente cuidava bem da casa. Por favor, vá para a sala e se sente."

A sala de estar bege e cinza da casa de Polanski em Paris tem toda a perfeição discreta de um apartamento- modelo: dois enormes alto-falantes brancos pendurados no teto, uma cadeira de plástico em forma de mão virada para cima e diversas pinturas surrealistas. Apenas um pôster anunciando sua produção da ópera Lulu no festival de Spoleto rompe o anonimato. Polanski ajeita a bandeja de café em uma mesa de centro de vidro escuro e espera até que eu experimente. "Deu certo? Não acredito", ele diz, deliciado. "Por favor, diga. Porque se você não gostar..." Eu digo que está tudo bem e ele folheia, despreocupado, um roteiro intitulado Piratas. "Já faz cinco anos que eu estou esperando para fazer este desgraçado deste filme, Piratas. Dá para acreditar? Compreenda, não estou esperando porque sou masoquista. Nesse negócio, nem sempre a gente tem sorte suficiente para fazer o que quer." Ele dá de ombros. "Dizem que eu sou louco porque estou construindo um navio pirata enorme; bom, na verdade, é um set flutuante. Talvez eu seja louco. Mas, vou dizer, vai ser fantástico, uma história de aventura de verdade. O herói é um bucaneiro de uma perna astuto, implacável, jovial e poderoso, e seu braço-direito é um rapaz francês." Polanski esfrega a boca com o indicador, em um gesto diabólico cômico. Ele larga o roteiro e seus olhos de raposa parecem queimar de tão acesos. "Então, você assistiu a Tess - Uma Lição de Vida em Nova York?", ele começa, em tom casual. "Como você diria que foi recebido?" Ele então se apressa em completar: "Eu sei que as críticas são muito boas, e isso é maravilhoso. Mas as pessoas... O público gostou?" No último ano, Polanski tem andado preocupadíssimo. Ao custo de US$ 11 milhões, Tess é o filme francês mais caro da história. As apostas chegam a doer de tão altas. Tess é mais do que apenas um filme; transformou- se em provação. Algumas críticas afirmam que o filme lírico na verdade é a reparação de Polanski - uma desculpa elaborada com muita beleza para a imprensa e o público norte-americano por ter fugido da lei em 1978. Em fevereiro daquele ano, Polanski se declarou culpado da incriminação moral por ter mantido relação sexual ilegal com uma menina de 13 anos. Ele ficou preso por 42 dias no Instituto para Homens da Califórnia, em Chino, e passou por testes psicológicos. Daí, Polanski fugiu para Paris. Ele continua foragido: não pode colocar os pés nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Canadá e em nenhum outro país que tenha acordos de extradição com os EUA. Ele está, de fato, isolado de seu mundo e luta por sua vida profissional. Mas será que Tess é mesmo uma reparação? "Isso é insanidade completa", Roman diz. "Há anos eu tenho interesse em fazer este filme. A minha mulher, Sharon [Tate, assassinada pela gangue de Charles Manson em 1969] me deu um exemplar de Tess [publicado por Thomas Hardy em 1891]. Ela é que ia fazer o papel de Tess. E eu adorei desde a primeira vez que li. Não estou implorando por perdão com ele. Sempre foi uma história de amor linda e trágica. Todo mundo se interessa por amor, e eu tentei fazer um filme romântico, até sentimental." A demora de meses para encontrar uma distribuidora nos EUA para Tess provavelmente se deveu mais à preocupação com o desempenho de bilheteria do que a situação de foragido de Polanski. Se ele tivesse feito um filme como Praia Sangrenta, talvez tivesse conseguido fazer acordo mais rápido. Roman precisa provar que o risco multimilionário vale a pena, que ele mais uma vez é capaz de fazer dinheiro para os estúdios. E as palavras que voltam dos EUA são como uma lufada de oxigênio puro. O pequeno canalha conseguiu: dois prêmios Globo de Ouro, por Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz Nova do Ano (Nastassia Kinski), prêmio de Melhor Diretor da Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles; e seis indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. Mas o mais importante é que as pessoas fazem fila às 11h da manhã em um dia frio de muito vento em Nova York para assistir ao filme dele. "A gente fica torcendo tanto para as pessoas gostarem; nada substitui a alegria de ver uma fila que dá a volta no quarteirão", diz Roman. "Mas, quando odeia, odeiam. Quando você realmente acredita em uma coisa que fracassa, dá uma sensação horrível. Eu tenho pena de uma pessoa como [Michael] Cimimo. Eu não me surpreenderia se ele se enforcasse."

"Eu me lembro de quando estava filmando O Bebê de Rosemary nos estúdios da Paramount. Era um filme sem nenhum astro. Não era considerado a empreitada número um do estúdio. Mia Farrow era mais conhecida por causa da televisão. John Cassavettes era desconhecido. E daí tinha eu, o polaco. Eu estava atrasado com a produção, e tinha reuniões e brigas diárias; o pessoal de Nova York mandava telex todo dia para o [executivo da Paramount] Bob Evans: 'O Bebê de Rosemary está ultrapassando o orçamento e está atrasado'. As pessoas do negócio diziam: 'Roman, as cenas estão adoráveis, mas ande mais rápido'. Eu simplesmente não conseguia fazer com que elas entendessem que só estavam gostando por causa da maneira como eu estava fazendo. Não dá para ter as duas coisas. E ninguém do lado da produção e nenhum estúdio jamais consegue entender isso. Eu estava em estado catastrófico quando o fim do filme foi chegando, e eu me lembro de estar caminhando pelo terreno da Paramount quando encontrei Otto Preminger: 'Qual é o seu problema?', ele perguntou. 'Bom', eu respondi, 'estou estourando o orçamento e estou atrasado'. Ele disse: 'Então, com o que você está preocupado? O que vão poder fazer com você? Onde já se viu demitir um diretor por ter estourado o orçamento?' Mas, durante a produção de um filme, a gente sempre tem que fazer escolhas."

Enquanto ele reflete sobre esses horrores, a porta de entrada bate. "Roman", uma voz de garota cantarola. "Você está aí?" Atrás da voz vem uma mulher escultural. "Ah, Sabina", Roman diz. O cabelo castanho-claro dela está bem preso para trás, exibindo um rosto espetacular, intocado por excessos. Sabina é estonteante. "Desculpe", ela diz em um inglês suave, com sotaque imperceptível. "Eu não sabia que você estava ocupado." Roman dá um beijo nela. Fico olhando para os rastros da espuminha do meu expresso. Polanski pega as sacolas de compra dela, pede licença e os dois somem em um canto. Nuvens refletidas se movem lentamente pela mesinha de centro. Polanski não demora a voltar. Escolhe uma pera em uma fruteira e dá uma mordida suculenta. "É engraçado", ele diz, pensativo. "Passei anos sem conseguir comer isto porque, desde a primeira mordida, eu já ficava com uma tremenda dor de estômago. Era coisa da minha infância. Durante a guerra, quando eu estava no país, não tinha nada para comer. Nós passávamos muita fome." Ele examina a pera. "Tinha muita fruta, então a gente se empanturrava. Como nós éramos crianças impacientes, não esperávamos as peras verdes amadurecerem. Eu praticamente desenvolvi um tipo de alergia."

A verdade e o mito a respeito de Polanski se juntam em uma narrativa espantosa, à la Jerzy Kosinski: aos 6 anos, ele se esgueirava pelos esgotos de Cracóvia com gangues de crianças judias para roubar comida para a família, depois de ter testemunhado a mãe ser levada, perante seus olhos, para morrer em Auschwitz; aos 7, foi escondido por várias pessoas não judias (mediante pagamento) e finalmente foi enviado para uma fazenda polonesa para viver com uma família de camponeses. As histórias ficam ainda mais sombrias: espancamentos quase mortais (ele tem uma placa de metal na cabeça), fome, fugas noturnas pela paisagem frígida do interior da Polônia. E tudo isso antes de completar 12 anos de idade. Polanski termina a pera. "Aquele tempo foi difícil por duas razões", ele diz com frieza. "Uma delas é simples: todos nós vivíamos famintos. É mais fácil de suportar para uma criança do que para uma mãe que vê o filho com fome." A voz dele fica mais grave. "A outra razão, que foi muito difícil, foi os meus pais estarem longe. Eu era tão pequeno, e sentia uma falta terrível deles. Isso é instintivo para uma criança. Não há como compensar. Não existe maneira de superar." Ele faz uma pausa. "Eu simplesmente ansiava para voltar a vê-los." Até hoje, essas emoções anuviam o rosto de Polanski. É possível assistir a elas como um filme triste. Ele limpa a garganta. "O resto era lindo, porque foi o meu primeiro encontro com a natureza. Não tem nada a ver com O Pássaro Pintado de Kosinski. Eram camponeses católicos muito simples mesmo. O vilarejo polonês era parecido com o vilarejo inglês de Tess. Muito primitivo. Nada de eletricidade. As crianças com quem eu morava nunca tinham ouvido falar de eletricidade." Ele bate palmas com essa lembrança. "De verdade, elas não acreditavam em mim quando eu falava que bastava ligar um interruptor! Achavam que era necessário acender, de algum modo. Eu sempre quis usar essas coisas todas." Ele olha através da janela e aponta para os telhados cinzentos. "Aqueles pores-do-sol de Tess, claro que eu já vi aquilo antes. A cena em que colhem nabos, eu fiz aquilo. Preciso dizer que essas coisas são desprezíveis."

"Eu cresci praticamente sozinho", ele rumina. "Eu não me beneficiei de uma boa educação, que os meus pais poderiam ter me dado se não tivesse havido guerra. Mas talvez eles tenham me dado o primeiro estágio. Eu venho de histórico burguês e mimado, e talvez os seis anos da minha vida antes de os nazistas aparecerem tenham criado um tipo de homem especial que gosta de fazer as coisas direito. Quando eu começo a fazer uma coisa, tem que ser do jeito certo desde o princípio. Como por exemplo escrever uma carta. Eu escrevo muito poucas cartas, porque demoro muito. Eu rasgo e escrevo tudo de novo - às vezes, dez vezes, até eu ficar satisfeito mesmo. Essa é a diferença entre talento e genialidade. O talento é algo com que se nasce, algo que vem naturalmente, com facilidade. Quando você pega esse talento e o trabalha e trabalha, levando-o o mais longe possível, isso é que é genialidade." Agora já estamos no fim da tarde e o apartamento é devorado por sombras. "Aqueles anos de infância foram tão estranhos", ele termina por dizer. "Foram as minhas primeiras experiências de ameaça de perigo real, quando eu fugi do gueto... muitas situações assim. Elas estão em mim. Eu sempre senti que sair de alguma coisa é o momento mais valioso da vida." Ele acende a luz e completa, em tom suave: "Aliás, eu gosto de passar de carro em túneis só para poder sair deles".

Em seu Mercedes prateado cortamos o trânsito como um gato lépido. Polanski guia o sedã grande na direção do restaurante que ele diz ser o melhor de frutos do mar de Paris. Depois da terceira música de Nana Mouskouri, Sabina está resmungando: "Mas tem tanta merda no rádio daqui". Polanski sintoniza o noticiário da BBC. O locutor descreve os preparativos para a posse de Ronald Reagan. "É bom ele ter se tornado presidente", Roman diz. "Ele é mais forte do que Carter. Ele compreende o velho ditado: 'Os russos não querem guerra, eles querem o mundo'." Polanski muda de estação e a voz alegre de Eleanor Roosevelt anuncia: "Por favor, lembrem-se, na próxima quinta-feira teremos como convidadas cinco crianças com talidomida, acompanhadas pelos pais... Porque, como a maioria de vocês sabe, a próxima semana é a Semana Nacional dos Inválidos". Polanski aumenta o volume. "Os últimos estudos mostram que existem 500 milhões de inválidos mentais e físicos no mundo hoje." Roman olha no espelho retrovisor com um sorriso que se espalha por seu rosto. "A gente se sente bem com isto, hein?", ele diz.

No restaurante, o garçom cambaleia com o peso do nosso primeiro prato. Trata-se de uma pirâmide enorme de moluscos, uma maravilha arquitetônica erguida, com incrementos de frutos do mar, a partir de uma fundação de minúsculos caracóis marinhos até uma lagosta cor de escarlate de quase dois quilos. "Sim, sim, isto é fantástico!", Polanski exulta. Sabina dá risadinhas e examina o prato intimidador. "Onde você está, Roman?" Ele já se perdeu nos mariscos. "Aqui, Sabina, experimente isto aqui. Ai, meu Deus! Olhe só as ostras. Pronto, use esta faquinha. Parece açúcar. Sim, experimente este molho, o negócio vermelho. Mmmm, maravilhoso pra caramba, mesmo. Não acredito, os mexilhões estão melhores do que na Normandia." Ele sobrevoa o prato em frenesi, descrevendo, experimentando, ensinando. A animação dele transforma a refeição em um acontecimento. Sabina se afasta da mesa e dá risada. "Olhe só para você, Roman, parece um menininho." Polanski é pego debruçado por cima dos frutos do mar, com as mãos posicionadas no ar, o prato lotado de conchas vazias e no rosto um ar deliciado de olhos esbugalhados. Quando ele apresenta toda essa energia de uma vez só, as discussões se tornam mais profundas, a inteligência se aguça. Bem-vindo ao centro do universo. E é por isso que, quando ele de repente recua, é a mesma coisa que abrir a janela a nove mil metros de altitude. Junto com essa alegria infantil, vem também a capacidade de concentração de uma criança. Em um minuto, ele fala sem parar de um Ano Novo passado em um barco em um rio da Tailândia; em seguida, desaparece. Os olhos dele miram a gente sem enxergar nada. A conversa tropeça, mas, da mesma maneira abrupta, ele volta com um estalo e propõe um brinde ou contar mais uma história. A energia dele é quase como a maré cheia e, durante suas ausências, os amigos fazem fila na praia, à espera da próxima onda.

"Sabina, por favor, experimente um desses caracóis do mar." Ele acena com uma conchinha minúscula. "Eu juro que você vai adorar. Você adora marisco, não é? Bom, eles são piores." Ela recua, sorridente. "Você precisa pelo menos experimentar." Roman percebe a lascívia do momento, exagera, brinca com sua imagem. "Vamos lá, Sabininha, não vai fazer mal." A voz dele está encharcada de maldade de desenho animado. Ela cobre o rosto. "Só coma este caramujozinho. Pode confiar em mim." Ela finalmente cede. Roman observa enquanto ela mastiga. "Você tem que dizer 'Mmmm'", ele instrui. "Qualquer comida fica melhor quando se faz esse barulho. É como fazer amor. Você não pode só fechar os dentes em silêncio... assim, perde metade do prazer. Você sabia que os caramujos têm o maior pau do mundo animal? Quando eles trepam, é igual a uma luta de espadas. De verdade." A reação de susto dela faz Roman sorrir. "As pessoas dizem para mim: 'Roman, você é tão fraco, tão pequeno, não tão bonito, como está sempre com mulheres lindas?' Bom, talvez eu simplesmente adore isso e elas percebem e gostam. As pessoas inventam todo tipo de razões e de coisas a meu respeito. Fico surpreso, na verdade. Essas histórias, além de serem imprecisas, são cheias de mentiras, de invenções. Esse mito de Polanski foi criado em detrimento do meu desejo, só para ganhar um troco, por nenhum outro motivo."

A conversa se volta para o encontro, naquela noite, entre o papa e Lech Walesa, da União da Solidariedade polonesa. Seria transmitido ao vivo em Paris. "Se eu tivesse sugerido a você, dez ou quinze anos atrás, que haveria um papa da Polônia, você iria me dizer que era um bom roteiro surrealista. Ou, se eu dissesse que haveria uma guerra entre dois países comunistas como a China e o Vietnã, você diria a mesma coisa. Um amigo meu acaba de voltar de Londres e disse que há um clube no Soho que é um campo de concentração. Imagine, as pessoas pagam para ser torturadas por homens e mulheres vestindo uniformes da SS." Ele bate na mesa. "Meu Deus, nem eu jamais poderia ter pensado em uma coisa dessas! A vida anda tão absurda e irracional que é necessário voltar ao básico sobre a natureza e o espírito humano. Mas as emoções humanas não mudam. Amor continua sendo amor, medo continua sendo medo, inveja ainda é inveja... e morte é morte. Não dá para impressionar ninguém hoje em dia, nem mesmo mostrando as coisas mais imaginativas no âmbito do surreal ou do absurdo. Nós vivemos essas coisas."

De fato, os primeiros filmes de Polanski pendiam para Beckett e Ionesco. Ele era conhecido por obras absurdas como Dois Homens e Um Guarda-Roupa e pela insanidade estilizada de A Armadilha do Destino e Repulsa ao Sexo. Apenas os recentes Chinatown e Tess revelam uma mudança para o cinema tradicional. "Sabe, eu fiz faculdade de cinema. Eu me tornei 'sofisticado'. Eu sentia necessidade de ser intelectual, de ser original. Uma vez que você se estabelece como diretor, não precisa mais disso. A última coisa de que eu preciso é atrair pessoas para o meu estilo ou para a minha notoriedade. O que eu preciso agora é fazer filmes que emocionem as pessoas. A emoção é essencial na arte, de uma maneira ou de outra. Acho que hoje, de algum modo, é mais adequado recorrer à literatura do século 19 ou à literatura da primeira metade do nosso século, literatura que trate mais de sentimentos e de sensações do que de estilo. Tess foi obviamente feito com isso em mente. E Piratas também. O que me atrai nisso é a aventura - a alegria de que eu me lembro de sentir no cinema quando era criança, a alegria que se dissipou. Algumas coisas não existem mais. Alguns sentimentos de que eu me lembro... Você chorava ou ficava com medo. Hoje, o realismo e a violência ou as grandes coisas técnicas podem ser demonstrados... mas não os sentimentos. De algum modo, a emoção deixou de existir."

Ele se recosta e pede um charuto para o garçom. Depois de cortá-lo e acendê-lo com cuidado, ele prossegue. "O negócio é a execução. Love Story, Uma História de Amor, por exemplo, é descuidado e piegas, mas poderia ter sido feito com seriedade. Os diretores teriam perdido uma certa categoria de gente que vai ao cinema, mas certamente teria conquistado outra. Depende do denominador comum que se tem em mente. Se você quiser apelar ao mais baixo, nem precisa fazer Love Story. É só fazer Garganta Profunda, é só chamar umas putas e uns viciados." Ele exala uma nuvem de fumaça cubana. "As pessoas realmente têm grandes paixões em um plano mais elevado. Acho que, depois da Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma grande mudança na literatura e na arte. As pessoas se tornaram bem céticas e ficaram com medo de ser chamadas de românticas ou de sentimentais. Chamar alguém de sentimental hoje é quase um insulto. 'Quem, eu? De jeito nenhum! Eu sou durão.' É aquela síndrome do macho - não só com os homens, mas com as mulheres também. Existem certas coisas que, se fossem escritas hoje, fariam as pessoas darem risada. Em Tess, eu estava tentando mostrar que as coisas que nos emocionam ou nos tocam não precisam ser vagabundas nem risíveis."

Este é Roman Polanski falando. O mestre do macabro, o homem que deu à luz o filho do demônio, que arregaçou a narina de Jack Nicholson e que, vestido de mulher, jogou-se de uma janela do 4º andar não uma, mas duas vezes. E, no entanto, essa mudança, principalmente depois de assistir a Tess, parece a evolução natural de um diretor brilhante - que entende sua arte completamente. "A coisa mais importante que é preciso ter em mente", ele diz, "é que hoje somos muito mais exigentes em relação ao realismo, à autenticidade. É necessário combinar tanto emoção quanto técnica. Acho que, quanto mais fantástica for a sua história, mais realista você precisa ser na sua descrição". A voz dele se ergue, a paixão jorra. "Quando eu era criança, eu vivia pelos filmes. Eu amava o cinema. E é por isso que estou onde estou. Eu assisti a As Aventuras de Robin Hood 20 vezes. Meu Deus, que alegria eu sentia naquele cinema escuro quando ele estava lá com a corda no pescoço, os amigos escondidos no mercado. E, meu Deus, as flechas voam e a música cria um clima." Ele começa a entoar a melodia triunfante de Korngold. "E Robin Hood pula em cima do cavalo e cavalga para a liberdade! Jesus, aquilo era fantástico!"

Os grevistas poloneses, de braços entrelaçados, estão marchando na frente de uma fábrica. "Deve ser emocionante para essa gente", Polanski diz com os olhos grudados na tela da TV. "Eu vivi uma coisa parecida com isso. Foi a euforia dos primeiros meses depois da guerra - os reencontros. É o sentimento mais comovente, mais unificador." O centro de Varsóvia pisca na tela. "Eu me lembro que, às vezes, a gente escutava alguém gritar: 'Mãe! Mãe!', e daí a gente via duas pessoas correndo pela rua, encontrando-se no meio e se abraçando. Era fabuloso. Esse é o período mais feliz na vida de uma nação. Todo mundo está tão enjoado da miséria e da violência que as pessoas... ficam melhores." Sabina chega usando um jeans justíssimo e suéter de cashmere idem. Ela joga as mãos para cima da cabeça e faz um passo de pista de dança. "Vamos lá, chega de trabalhar. Agora vamos sair para agitar." Roman sorri e repete baixinho: "Agora vamos sair para agitar".

Na pista, um sujeito loiro dança (e faz flexões) na frente de cinco moças bonitas de legging e botas à la Beatles. As mulheres não estão de fato dançando; espiam o homem que bebe champanhe no piso acima do delas. Polanski pede mais uma garrafa para sua mesa. "Paris é fantástica", ele se maravilha. "Há discotecas novas abrindo toda noite. Tantas tentações, distrações. Dá para fazer qualquer coisa, conseguir qualquer coisa, ser qualquer coisa. Mas, realmente, há um preço a pagar." Uma mulher chega por trás de Polanski e o abraça pelo pescoço. A música engole a conversa deles. A mulher tem rosto cansado e pálido, marcado pela maquiagem negra pesada nos olhos. Quando ela se afasta, Polanski se inclina para a frente. "Aquela era Penelope Tree... Está lembrado dela? Há um preço a pagar, hein?"

Um homem grisalho observa Polanski do bar. Mechas de cabelo branco estão coladas à cabeça dele e os olhos desaparecem na pele de alguém que bebe muito. A mão do homem repousa sobre o ombro de uma menina de 9 ou 10 anos com um vestido colorido de festa. Ela olha torpe para a pista de dança, perdida nas luzes. Sem nenhuma firmeza, ele a guia até a nossa mesa. Polanski ergue os olhos, de repente ciente de sua presença. "Roman", o homem diz bem alto, com um sorriso emplastrado no rosto. "Esta aqui é a minha filha." Ele empurra a menina para a frente. Os olhos de Polanski assumem ar morto e perigoso; seu rosto perde a expressão. O momento feio se estende por tempo demais. Finalmente, até o bêbado sente a brisa fria e desaparece com a filha no meio da multidão. Roman fica rígido por um tempo, então se vira para observar as belas holografias humanas na pista de dança. Sabina, com as mãos para cima, rodopia toda alegre no meio da multidão. "Quando eu era garoto, se as coisas ficavam excessivas, quando eu não conseguia deter os meus pensamentos, eu costumava me deitar em uma colina e ficar observando a lua e as estrelas. E a minha mente se esvaziava. Eu conseguia descansar. Agora que estou mais velho, isso já não funciona. Demora mais. Às vezes, quando eu preciso parar de pensar, venho aqui." Polanski se escondeu em uma névoa de fumaça de charuto; seu sorriso de Gato de Alice flutua sereno. Todo mundo está ficando muito... filosófico. "Sabe", ele diz, "eu decidi que fazer a barba, chinelos confortáveis e uma boa cagada são os verdadeiros prazeres da idade madura. É nisso que a vida vai dar, é por isso que vou lutar quando ficar velho - a satisfação de um bom movimento intestinal". Ele solta uma risada ruidosa. Às vezes, o amanhecer não traz nada de esperançoso. Nem de longe. Enquanto há escuridão, há movimento. A gente fica protegido das coisas do dia. Agora, o apartamento de Polanski mal segura a luz da manhã. Roman apoia os pés em uma mesa de centro e bebe um conhaque. Fecha os olhos e os esfrega para que a massagem leve a dor embora.

"Com toda essa conversa sobre o meu passado", diz ele, "eu percebi que, quando era criança, aquelas coisas terríveis me pareciam naturais. Eu as estava vivendo." Os olhos dele se abrem lentamente. "Mas às vezes, ultimamente, eu acordo no meio da noite. Sou obrigado a acordar por estar revivendo aquelas coisas. Eu meio que recuo e olho para elas como se fosse um observador de fora. Sabe, acho que a minha vida tem sido extraordinária, e mal vale a pena, para falar a verdade