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Filha do Mundo

Uma das novas vozes femininas da MPB, Maria Gadú se habitua à vida de celebridade, vivendo sob a regra do desapego e sem nunca ter buscado o sucesso

Por Bruna Veloso Publicado em 29/01/2011, às 12h36

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Maria Gadú: "Ninguém chega em casa e diz 'Mãe, sou hetero'. Então por que tem que chegar e dizer 'Mãe, sou gay'?" - Bico Stupakoff
Maria Gadú: "Ninguém chega em casa e diz 'Mãe, sou hetero'. Então por que tem que chegar e dizer 'Mãe, sou gay'?" - Bico Stupakoff

Como se precisasse de proteção, Maria Gadú chega ao restaurante no qual deveríamos nos encontrar, acompanhada de sua produtora/assessora e da representante da assessoria de imprensa que lhe dá suporte. Houve uma mudança de planos: em vez do cardápio leve do discreto estabelecimento na avenida Visconde de Pirajá, em Ipanema, a cantora sugeriu uma massa com atum cru, especialidade de um restaurante próximo. Enquanto caminhamos pelas ruas do Rio de Janeiro, Maria me dá um aviso aparentemente involuntário sobre uma surpresa desagradável ocorrida após uma entrevista recente. Uma repórter, com quem havia "passado meia hora, falando sobre um monte de coisa legal", escreveu erroneamente que a cantora referia-se a si mesma no masculino. "Estudar tanto tempo pra mentir desse jeito? É muita falta de respeito", ela reclama.

CONFIRA perguntas e respostas que ficaram fora da edição impressa.

O assédio crescente e a vida corrida de alguém que emplacou, em menos de um ano, quatro músicas em produções da TV de maior audiência do país parecem não se encaixar totalmente no dia-a-dia de Maria Gadú. Ainda que a falta de costume com a fama não lhe deixe completamente à vontade, a jovem cantora de 23 anos trata a todos que a abordam com atenção - como quando três homens, empolgados por algumas doses de uísque, a elogiam por longos 15 minutos no restaurante. Entrevistas, outra parte inerente à rotina de quem atualmente roda o Brasil para shows sempre lotados, ainda parecem ser um desconforto. Enquanto Maria dá respostas quase que ensaiadas em programas televisivos e coletivas, em nosso bate-papo o mecanismo de resguardo seria outro, sem vir diretamente dela: com a indicação da garçonete, suas acompanhantes sentam- se a nosso lado, mesmo que antes tivesse sido sinalizado que durante a entrevista deveríamos ser apenas eu e Maria. Quando peço para que nós duas mudemos de mesa, enquanto a cantora atende o celular, as assessoras se entreolham, mas não criam objeções.

A verdade é que Maria Gadú não precisa ser protegida. Apesar de tímida - nos minutos iniciais da conversa, ela desvia o olhar par a seu copo de chope, para a mesa ou para qualquer outra direção que não a de meus olhos -, Maria se mostra sempre firme em suas declarações. E a liberdade com que lida com a vida, num exercício contínuo de desapego (palavra que repete diversas vezes), faz com que ela não se importe com os pormenores de sua existência - uma entrevista, por exemplo -, nem com ligações afetivas "exclusivas". É por isso que, de início, é tão difícil entender o universo familiar que a cerca, já que ela chama alguns homens diferentes de "pai" , tem cinco irmãos (sem nenhum deles ter compartilhado o ventre de sua mãe, Neusa Maria) e incontáveis amigos verdadeiros, daqueles que a maioria de nós conta nos dedos. "É uma história muito confusa, velho", ela tenta explicar. "Sou exclusiva da minha mãe, mas tenho quatro irmãos de criação e um meio-irmão por par te do meu pai biológico. Dois são da minha madrinha, e dois são do meu pai, o Marc." Marc Aygadoux é um desses pais que Maria escolheu a dedo. Mais tarde, quando lhe pergunto seu nome completo, ela responde: "Mayra Aygadoux", soletrando o sobrenome de origem francesa.

Maria (ela não gosta de Mayra, nome escolhido por Moacir, seu pai de sangue) não me diz, mas, em seu registro, carrega o sobrenome Corrêa, da família paterna. Apesar de pouco presente até os 15 anos de idade da cantora, Moacir não é motivo de rancor. "Minha mãe não me ensinou essas coisas. As pessoas têm escolhas. Gosto muito dele, é uma pessoa inteligente, incrível. Me pôs aqui no mundo, vou ficar com raiva dele por quê? Ficar cultivando mágoa faz mal pra gente", diz, sem demonstrar que seu discurso advém de uma suposta necessidade de ser politicamente correta.

Desde os 10 anos, Maria deixou de lado o Corrêa. O Aygadoux, que mais tarde daria origem ao Gadú, ela adotou depois de conhecer Marc. Nascido em Toulouse, na França, o músico teve contato com Maria ainda criança, quando produziu um projeto musical do qual ela fez parte, na Igreja Messiânica (a qual hoje ela não frequenta mais). Sem dizer para ninguém, Maria passou a assinar as provas da escola com o sobrenome emprestado (diga-se: Marc nunca teve nenhum tipo de relacionamento amoroso com a mãe da cantora). "A Neusa me telefonou dizendo: 'Olha, Marc, estou com um problema sério'. A Mayra estava assinando as provas com meu sobrenome havia um ano e meio", relembra Marc. "Fiquei em prantos. Fui buscá-la na escola e perguntei se podia chamá-la de filha. Ela respondeu, menininha, com 10 ou 11 anos: 'É tudo que eu mais quero, pai' ." Para quem ouve essa narrativa, a história é no mínimo surpreendente:

quantas pessoas selecionam o pai de acordo com a preferência, sem nem mesmo comunicá-lo? Chega a ser um exercício de lógica tentar entender a estrutura familiar de Maria. Ela explica tudo de forma displicente, como se, sim, fosse realmente natural optar por um sobrenome ainda criança e ser adotada por escolha própria.

A convivência com Marc fez Maria se desenvolver como artista. Em São Paulo, ela se dividia entre as casas da mãe e do francês, onde passava horas no estúdio que o músico mantinha em sua residência. Mas o interesse dela pela música vem de muito antes. "Com uns 6 anos, eu tocava num piano pra criança. Vi um piano de cauda pela primeira vez num shopping, e nem pensei, saí tocando", diz a cantora paulistana, que apesar de não ter uma boa memória cronológica ("Se você me perguntar onde toquei na semana passada, eu não vou saber responder"), consegue se lembrar do episódio distante. "Quando terminei, tinha um monte de gente em volta batendo palma. Eu comecei a chorar." Sem o conhecimento da mãe e da avó, Dona Cila, Maria havia "tirado de ouvido" "Für Elise", de Beethoven, um dos números clássicos mais populares de que se tem notícia - a música tocada pelos caminhões de entrega de botijões de gás em São Paulo.

Vestida com uma calça jeans justa, camiseta babylook do White Stripes e boné, Maria Gadú come com pressa o macarrão que pediu em Ipanema. Depois, diz estar passando mal por ter engolido a massa com tanta rapidez. Ela explica a fome, dizendo que acaba de se mudar para seu primeiro apartamento, na Lagoa Rodrigo de Freitas. "Entrega não tem hora, fui almoçar na minha mãe e o cara ligou: 'Tô chegando com a mesa'. Tive que sair correndo." A essa altura, Maria parece mais à vontade - a ponto de pegar um fio de espaguete com a mão, erguê-lo acima da altura da cabeça e leválo à boca. "Nojento isso que eu fiz, desculpa. É que eu gosto de comer com a mão. É ridículo."

Com o mantra "a gente tem que ter desapego de tudo pra poder conseguir tudo", a mãe de Maria, Neusa, sem querer explica a filosofia que hoje parece reger o coreto da filha. A primeira viagem internacional da artista, "com 14 ou 15 anos", pode ser tomada como a interpretação extrema do conceito de liberdade. "Matei aula e fui pro Paraguai", Maria conta, sentada na posição de lótus, esforçando-se para lembrar do tipo de detalhe que não costuma guardar, como se memórias como essas não fossem verdadeiramente importantes. "Foi a primeira vez que menti pra minha mãe. Falei que ia estudar na casa de alguém e fui passar dois dias lá, eu e um amigo. A gente comprou um videocassete e um discman, desse tamanhão", gesticula, sorrindo.

Anos mais tarde, em 2007, outra viagem marcaria a carreira de Maria Gadú. Foi nessa época, pouco depois da morte da avó, que ela viajou para a Europa com Doga, seu percussionista até hoje. "Eu fui pra esfriar a cabeça. Estava numa depressão mortífera", conta. "Minha avó entrou num processo de morte durante um ano. Descobriu um câncer, desenvolveu a metástase e foi definhando. E eu definhei junto. Virei um vegetal, tinha uns dez quilos a menos", ela diz, relembrando a avó, sua "deusa de ébano, a melhor alma do mundo". "É impossível [falar dela sem sofrer]. Mas aquela dor de apego não tenho mais. Dá saudade, às vezes choro, porque a pessoa não existe mais neste lugar físico. Claro que a gente bate altos papos, eu converso com ela horrores, faço piada."

Pouco tempo antes de a avó morrer, ela compôs "Dona Cila" em sua homenagem, uma das oito faixas autorais de seu primeiro disco, homônimo, lançado em 2009. Maria, que pela primeira vez havia pensado em desistir de compor e cantar, ligou para a mãe dizendo que tinha, enfim, entendido que a avó "tinha que ir embora" - e cantou, ao telefone, os versos da canção. A avó também teve seu papel na paixão de Maria pela música: apesar de ser cantora lírica - Cila perdeu a voz ao usar um produto químico em uma limpeza, trabalhando como empregada doméstica -, ela, filha e neta, que moraram juntas durante 13 anos, sempre ouviram de tudo, o que hoje faz com que Maria diga que suas influências vão de "Chico [Buarque] a Backstreet Boys".

Ao voltar dos "mais ou menos quatro meses" que passou na Europa, tendo Verona, na Itália, como ponto fixo, a cantora passou poucos dias em São Paulo, indo em seguida para o Rio de Janeiro. Foi durante uma visita a dois amigos de infância, os irmãos Rafael Almeida, o garoto pianista da novela Páginas da Vida, e Tânia Mara, esposa do diretor Jayme Monjardim, que a vida de Maria começou realmente a mudar. Os dois eram vizinhos do pai postiço Marc, e foi o reencontro que marcou a passagem da cantora, que tocava na noite paulistana desde os 13 anos de idade, para o mainstream. Jayme a chamou para interpretar uma cantora na minissérie Maysa - foi quando Léo Ganem, diretor-geral da Som Livre, ouviu a música de Maria Gadú pela primeira vez. Ele explica por que hoje ela é uma das cerejas de seu catálogo, ao caminhar para 120 mil cópias de discos vendidos: "É tanto uma das melhores artistas em números de vendas [do selo Slap] quanto em aceitação na Globo, que é outra meta nesse selo. Aceitação significa criar música que entre como conteúdo novo para nossa empresa-mãe". A voz macia, a interpretação intensa e a inegável capacidade como compositora fazem Maria Gadú ser aceita quase como unanimidade no meio artístico, recebendo elogios, já muito alardeados, de gente como Caetano Veloso, João Donato e Milton Nascimento. Ao mesmo tempo, ela é dona de "Shimbalaiê", que escreveu aos 10 anos de idade, um exemplo de seu potencial de alcance: dias após a entrevista, durante a sessão de fotos para a Rolling Stone Brasil, um grupo de crianças pediria autógrafos à cantora cantando a faixa em coro.

À primeira vista, Maria Gadú pode parecer séria, como quem usa certa marra para esconder a timidez. Mas a cantora é a síntese da mistura de uma postura firme com um jeito meigo (não delicado), por mais que as duas coisas pareçam antagônicas. Se ela se esquiva dos boatos sobre supostos relacionamentos amorosos, não tem o menor pudor em falar sobre sua sexualidade - mesmo que responda, com uma sinceridade genuína na voz, de forma não categórica. "Não sei", ela diz ao ser questionada sobre ser ou não gay. "Não consigo crivar nenhum tipo de avaliação sobre mim em nenhum aspecto. Também não gosto de levantar nenhuma bandeira, porque é tão comum gostar de pessoas - e tem que ficar mais comum ainda. Ninguém chega em casa e fala: 'Mãe, sou hetero'. Então por que tem que chegar e dizer: 'Mãe, sou gay'?", decreta. "Não afirmo não por não querer afirmar, mas pra não precisar afirmar nem pra ninguém, nem pra mim mesma."

Dúvidas surgiram apenas aos 15 anos, quando ficou pela primeira vez com uma menina. "Contei pra todo mundo: 'Gente, o que eu faço?' Mas sempre tratei com muita naturalidade." É ao jeito decidido e sem grandes questionamentos de lidar com o assunto que Maria credita o fato de não sofrer preconceito. "Acho que quem comete preconceito também sabe que vai ferir o outro. A hora que você vê que não vai adiantar nada, que você vai só pagar um mico e não vai interferir na postura do outro...", ela diz, dando de ombros entre goles de chope.

Em tudo, Maria Gadú mistura a porção garota/moleca à firmeza de quem já sabe do seu lugar. É quase com alguma raiva, balançando a cabeça e olhando fixo,que ela fala sobre o que mais odeia. "Má educação. Tenho paúra. Não tenho paciência com falta de respeito. Fico comprando briga na rua, minha mãe acha que vou morrer de tiro. Fico puta, o Rio alagando e, no dia seguinte, nego jogando coisa na rua. Sou bem encrenqueira com essas coisas. É isso que me tira do sério: sou calma, pra arrumar uma briga comigo...", indica agora uma porção "justiceira", como define a mãe.

Na calçada, enquanto fumamos, o jornalista Alex Lerner passa e conversa com Maria, dizendo que "a Carol" está no restaurante ao lado. Ela depois sairia por alguns minutos para visitar rapidamente a amiga, Carolina Dieckmann, no estabelecimento. As duas foram madrinhas de casamento de Dado Dolabella. Apesar de não ter buscado o sucesso (ela nem mesmo tinha planos de gravar um disco), Maria já cria vínculos nos círculos de celebridades. Vivendo sem amarras, um dia de cada vez, ela agora desponta como uma promessa da música brasileira - chegando a esse tão instável "topo" sem ter exatamente passado por uma escalada. É o desapego, "já que é preciso ter desapego de tudo pra conseguir tudo". Nessa linha, há apenas uma contradição: mesmo sendo tão desprendida, Maria - aqui, a porção menina, fã - ainda não conseguiu conversar com Marisa Monte, seu grande ídolo. "Eu ia a todos os shows, mas ficava muito emocionada e desmaiava. Fui ao Prêmio Multishow e o [produtor Rodrigo] Vidal chegou me dizendo que ela queria falar comigo. Eu: 'Não vou, não vou'. E não fui. Morro de medo."