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Aranha Negra

Após derrubar todos os adversários possíveis nas arenas sangrentas do UFC, Anderson Silva, o maior lutador do mundo na atualidade, só quer saber de se divertir com seus brinquedos

Por Pablo Miyazawa Publicado em 02/12/2010, às 12h55 - Atualizado em 29/08/2011, às 22h09

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Victor Affaro
Victor Affaro

A vida deveria ser simples quando se é o maior lutador do planeta. Anderson Silva é, atualmente, o homem a ser derrubado no mundo de siglas que envolve o Ultimate Fighting Championship (UFC), principal campeonato de Mixed Martial Arts (MMA), o estilo de técnicas mistas derivado do vale-tudo. Desde que passou a fazer parte da organização como lutador contratado, o brasileiro de 35 anos jamais perdeu uma única luta - está invicto desde 2006 e jamais se machucou com gravidade. Nunca quebrou um osso, não teve o supercílio aberto, muito menos o nariz quebrado - para citar os ferimentos mais comuns dentro desse esporte. A única cicatriz visível, do lado direito da testa, foi fruto de uma brincadeira com o irmão na adolescência. Na verdade, Anderson se orgulha de jamais ter derramado uma única gota de sangue dentro de um ringue octogonal. "Mas nos treinos eu me machuco pra caramba", ele solta, como um gracejo infantil, como se estivesse exagerando em sua história. Mas não está.

Recentemente, Anderson trincou uma costela durante uma de suas exaustivas rotinas de treinamentos, em Los Angeles. Seu médico recomendou que o atual detentor do título de campeão dos pesos médios desistisse da luta marcada para dali a três semanas. Por causa do risco de ser pego no exame antidoping, o lutador não poderia nem tomar analgésicos para conter a dor lancinante. "O médico me falou: 'Eu não quero que você lute. Se a sua costela quebrar, ela pode perfurar o pulmão e será um problema muito maior'", ele relembra. "Eu deixei as pessoas que cuidam de mim menos preocupadas. Falei: 'Eu estou bem, tranquilo. Não precisa cancelar a luta, relaxa'. E eu mal estava respirando!"

A luta em questão, a defesa do cinturão contra o norte-americano Chael Sonnen, em Oakland (Califórnia), em 7 de agosto último, pode ser considerada um marco para a história recente do UFC. E também para a trajetória de Anderson Silva, nascido em São Paulo, mas que prefere dizer que é natural de Curitiba, onde cresceu, aprendeu a lutar e constituiu família. Diante de seu mal-encarado oponente, Anderson sofreu durante mais de 20 minutos. A costela rachada incomodava mais do que ele poderia esperar. O castigo veio na forma de socos bem colocados, que abalaram a confiança e o fizeram errar golpes que normalmente seriam certeiros. A dois minutos do final do último round, Anderson reverteu a luta no chão, e, com um movimento inexplicável, imobilizou o adversário pelo pescoço, utilizando as duas pernas. O "triângulo" foi executado com perfeição. Os tapinhas quase imperceptíveis de Sonnen na brasileiro indicaram a derrota por submissão. Para quem assistiu à luta, tal virada pareceu fruto de um acaso que só ocorre com os grandes campeões. Para Anderson, invencível desde 2006, vencedor em sete defesas seguidas de título, tudo é simplesmente, em suas palavras de frases curtas, "uma coisa tão natural".

Assista abaixo ao making of das fotos com Anderson Silva:

"Chega uma hora que você está ali lutando e as coisas acontecem", ele se esforça, sem sucesso, para explicar sua arte de uma maneira não hiperbólica. "Exatamente o que eu treinei foi o que eu fiz na luta. O triângulo não foi uma coisa de sorte. Eu treinei 1.700 chutes para dar um único perfeito na luta. Treinei umas 600 cotoveladas, e acertei uma. Você treina tanta coisa para fazer com perfeição e não consegue. Quanto você está bem, não está machucado, é o seu dia e consegue botar tudo em prática... Aí entra o talento, com a técnica, com tudo o que você treinou. E tudo flui naturalmente."

"Mas às vezes", diz, "as pessoas não entendem isso".

De uma maneira não exatamente clara - e inteiramente particular -, Anderson Silva costuma dizer que entra em uma espécie de "transe" quando pisa no ringue do UFC. O termo não é exatamente esse, mas ele prefere definir de modo mais coloquial: "Fico totalmente focado no meu trabalho. Olho no meu adversário e fico focado nele". A verdade é que Anderson jura que pouco ou nada se lembra das proezas que faz durante uma luta. "Eu assisto depois e não acredito. Eu até pergunto para os meus amigos: 'Mas eu fiz isso mesmo? Você está de sacanagem!'"

No caso do já histórico embate com Sonnen, o público presenciou cenas inéditas relacionadas ao homem teoricamente imbatível dentro das oito grades. "Não foi incomum o que aconteceu", Anderson me corrige quando comento que jamais o havia visto em condição semelhante de fragilidade. "Enquanto ele me batia, eu estava supertranquilo. Eu tinha que esquecer a dor da costela, me concentrar nos golpes e num possível ataque contra ele. O nível de concentração, e aquela coisa de se trazer de volta o que se treinou... É uma loucura."

Observo aquele sujeito sorridente e de cabeça raspada e, por um instante, percebo a verdade irônica contida em frases de efeito como "nem tudo é o que parece ser". Anderson está sentado em uma cadeira em estado de alerta, com as mãos juntas e o corpo curvado para a frente, evidências de uma incontida timidez. Veste camiseta polo listrada, jeans, botas e usa perfume. No rosto, os óculos de aros pretos lhe dão um ar quase escolar. Apresentado daquela maneira, ele passaria facilmente batido em locais públicos, não fosse o porte físico avantajado de 100 kg distribuídos por 1,88 m de altura. A voz é aguda, quase desafinada, como de um adolescente em formação, e vem incrementada por interjeições joviais como "caraca" e "bacana". Já o sotaque é indefinível, uma mistura do acento curitibano com o típico r puxado da capital carioca - quando passa pelo Brasil, Anderson vive entre uma cidade e outra, mas diz se considerar "cidadão do mundo, como costumam falar". É possível trocar ideias com ele durante horas, pacificamente e sem sobressaltos, e ainda assim é difícil imaginá-lo desferindo cotoveladas e pontapés para ganhar a vida. Assim, de perto, o maior lutador da atualidade parece afável e inofensivo, tal como um adolescente que cresceu rápido demais.

Ele mesmo brinca com o fato de ser, na vida "real", algo oposto ao personagem que desempenha nas arenas ao redor do mundo, vestindo apenas shorts, um par de luvas acolchoadas e protetor para os dentes. À paisana, dificilmente não se encontra sorrindo e tem a mania de pegar frases do ar e cantar melodias inventadas por cima. Em rodas de conversa, parece sempre preocupado em não permitir silêncios constrangedores. Essa impressão positiva e quase imediata não é unânime no universo do MMA: Anderson tem colecionado críticas por suas atitudes questionáveis dentro do ringue e em polêmicas declarações após as lutas.

"Na situação em que me encontro, às vezes as pessoas não interpretam o que eu digo da maneira correta. 'Ah, o Anderson está prepotente, o Anderson não é humilde'", ele se explica. "Eu prefiro deixar o benefício da dúvida. Levo na esportiva, até porque a gente não ganha por oratória. A gente ganha pelo que luta."

A especialidade de Anderson é o muay thai (boxe tailandês), mas ele também acumula predicados em modalidades como o jiu-jítsu, o judô e a capoeira. Com as pernas, é considerado quase mortal. Se não é exatamente um lutador habilidoso no solo, em pé, desferindo chutes de longe e joelhadas a curta distância, é imbatível. Exageradamente modesto ou excessivamente tímido, dependendo de quem o observa, ele se esforça para disfarçar qualquer indício de soberba. Seus assessores o descrevem como "político, ético, respeitoso com a opinião alheia". A verdade é que Anderson Silva garante jamais ter certeza absoluta de que ganhará uma luta antes de ela acontecer. E, mesmo que acreditasse ser realmente imbatível, ele não diria isso a ninguém.

"Isso não existe. Um dia eu posso perder", ele despista, apesar de a maneira como solta a frase não me permitir ter certeza se está falando só por falar.

Por conta do irrepreensível currículo - ele detém o recorde de 12 vitórias consecutivas no UFC desde junho de 2006 -, a atitude de Anderson poderia ser inversa se ele assim o desejasse. No momento, entretanto o interesse de sua equipe é justamente o inverso: construir a imagem do esportista em seu país natal. Nos Estados Unidos, o brasileiro não circula por locais públicos sem ser abordado por fãs, o que exige a companhia de seguranças até em corriqueiras visitas ao shopping. "As pessoas que investem no Anderson sabem que ele dá retorno", opinou uma fonte envolvida com o estafe do atleta. No Brasil, o assédio do público e de possíveis patrocinadores já existia, ainda que em menor escala. Porém, Anderson admite que algo mudou após a épica virada contra Sonnen. "Aqui é tranquilo, mas está mudando. As pessoas estão me parando na rua."

"Vários artistas me ligam querendo falar com ele", diz Hebert Mota, agente do lutador no Brasil. "Encontram com ele na balada e depois ligam, pedindo para falar com Anderson. Mas não pode ser fácil falar com ele."

Fica evidente que há uma estratégia bem elaborada para construir o misticismo e o interesse em torno da figura de Silva. Ao longo de setembro, ele se tornou figura obrigatória na mídia. Na noite anterior ao nosso primeiro encontro, ele apresentou um prêmio do VMB da MTV ao lado do humorista Danilo Gentili. No restante da semana, fez aparições em programas de variedades, além de conceder entrevistas para sites, revistas e jornais. Tudo é parte do plano de vender o astro como a principal personalidade das artes marciais no país, algo parte semelhante ao papel de Ronaldo Nazário no futebol e Gustavo Kuerten no tênis. "Lá fora, ele é muito conhecido. No Brasil, isso logo vai mudar", garante Mota. "Existe uma pressão para Anderson perder, porque é o único invencível. A idéia é cuidar da imagem dele. A gente quer que ele seja o embaixador do UFC no Brasil."

A tarefa só aumenta em dificuldade não por causa do estilo reservado de Anderson, mas graças a um compreensível preconceito da opinião pública em relação ao MMA. Contudo, mesmo longe de ser um esporte de massa, a luta atrai fanáticos suficientes para torná-la um negócio multimilionário e global. No caso da liga UFC, a maior parte da rentabilidade vem da venda de pacotes de pay-per-view em canais a cabo. Os lutadores são contratados como funcionários e recebem dividendos relacionados à publicidade, direitos de imagem e participações em produtos de merchandising, como brinquedos, equipamentos de luta e videogames, além de pagamentos específicos para cada com bate. Pela disputa com Sonnen, Silva arrecadou US$ 200 mil de bolsa, um valor considerável, mesmo diante do fato de um "funcionário" do UFC lutar em média apenas duas vezes por ano. A organização é comandada pelo norte-americano Dana White, 41, que controla com mão de ferro os movimentos de seus pupilos e não os poupa de críticas quando contrariado. Ex-boxeador conhecido pelos arroubos raivosos, ele possui uma relação diferenciada com Silva, uma mescla equilibrada de profunda admiração e agressiva cobrança. Após a luta de Anderson com o brasileiro Demian Maia, em abril, White se declarou "constrangido" pela maneira desrespeitosa com que o campeão se portou no ringue - gritando com o adversário e dançando à sua frente. Arrependido na época, Anderson pediu desculpas. Hoje, prefere alegar que qualquer atitude que toma no calor da batalha pode ser justificada.

"Muitas vezes, você faz coisas que as pessoas não compreendem, porque nunca fizeram nem passaram por aquilo. Elas podem dar opiniões, mas estão de fora, vendo uma coisa diferente da gente, lá dentro."

"Lógico que você acaba fazendo coisas que ultrapassam os limites", ele continua, tentando sorrir. "Pode parecer que seu adversário não é nada, dependendo do que você fizer. É como ver o Neymar, o Robinho e o Pato jogando futebol. Você bota esses caras jogando contra um time qualquer e olha o que acontece."

Explico a ele, didaticamente, qual a sensação comum a quem assiste a uma luta de Anderson Silva: "É que parece que é tudo muito fácil para você".

"Exatamente. Exatamente...", ele balança a cabeça, denotando certa decepção. Na verdade, imagino, ele está mais do que satisfeito com essa condição.

Já se foi mais de um mês desde a última vez em que entrou em um ringue, e Anderson Silva se revela incomodado com seu próprio físico. "Olha a barriguinha", ele aponta para uma discreta saliência abdominal evidenciada pela camiseta justa. "Isto está horrível, cara!", ele gargalha, antes de entrar no carro alugado. O destino é a sede da Rede Globo em São Paulo, onde o lutador fará participação no programa Altas Horas. No caminho, ele se diverte com um game no iPhone e canta em voz alta a música que sai do rádio. É o nosso segundo encontro em menos de uma semana, e somente agora ele parece realmente à vontade.

Na chegada à emissora, ninguém recepciona o séquito do astro, o que proporciona minutos de andanças sem rumo. Anderson se impacienta - seria a única vez naquele longo dia -, provavelmente porque são mais de 15h e ele já sente fome. O assessor pede calma, mas Anderson responde de pronto: "Não pode ter calma. Estamos aqui esperando. A gente é convidado". Finalmente, alguém indica o acesso ao camarim. No cami nho, o apresentador Serginho Groisman cumprimenta o lutador. "Você veio num momento legal, parabéns", ele diz. Educado, Anderson agradece.

Diante do arroz, feijão, carne e batata palha no bandejão da emissora ("salada não"), Anderson mastiga em silêncio. E só voltaria a falar com o prato limpo e quando provocado a respeito de seus hobbies. Começa dizendo que gosta de jogar futebol (quando adolescente, tentou seguir carreira no esporte), ficar com os filhos, ir ao cinema e jogar games de guerra no Playstation 3. "Eu adoro. Me tranco no quarto, ligo o sistema de som, boto o fone de ouvido, apago todas as luzes, boto o Call of Duty. Meu, eu piro." O videogame, ele me confessou dias antes, também o inspira a criar novos golpes para executar sobre adversários de carne e osso. "Eu tiro golpes do [game] Tekken. Vejo os movimentos dos personagens e penso: 'Cara, vou fazer isso'. Também pego coisas dos filmes do Jackie Chan."

Na residência onde passa a maior parte do período de treinamento, em Redondo Beach (Los Angeles), Anderson reserva um cômodo para uma substanciosa coleção de brinquedos. Tudo começou em uma viagem para o Japão, onde encontrou uma loja subterrânea que descreve como "o mundo dos brinquedos. Todos que eu sempre quis ter na minha vida". Empolgado, vai citando de modo quase enciclopédico os itens que adquiriu e conserva longe do alcance dos próprios filhos. "Galaxy Rangers, Comandos em Ação, Ultraman, Liga da Justiça... Todos que você pode imaginar, eu tenho. Fica tudo trancado. Minha mulher fica chocada: 'Joga isso fora, dá pra criança carente, nem seus filhos brincam com isso'." Seu brinquedo favorito da vez não cabe em um único quarto: um Camaro amarelo, que foi enviado para uma oficina para se assemelhar ao personagem Bumblebee, do filme Transformers. "Quando você liga, faz o barulho do Transformers. Muito alto, você não ta entendendo", diz, mostrando fotos do carro no iPhone.

Quadrinhos também estão entre seus temas favoritos. Afinal de contas, o apelido "The Spider" não surgiu por acaso. "Gibis? Cara, eu tenho todos os gibis do Homem-Aranha!", ele enche a boca para detalhar mais uma coleção intocada por outras mãos que não a sua. Ele revela que conserva uma edição rara dos quadrinhos do herói dentro de uma caixa acrílica transparente. A explicação pela preferência ele traz na ponta da língua. "O Batman é milionário. O Super-Homem veio de outro planeta, coloca um colante vermelho e sai voando. O Homem-Aranha, não! Ele tem contas pra pagar."

A paixão pelo universo dos seres míticos pode ter sido o principal impulso para o garoto Anderson se enveredar pelas artes marciais. Aos 4, foi levado pela mãe para Curitiba e entregue aos cuidados dos tios maternos, a quem passou a chamar de "pais de criação". Após alguns anos, passou um período frequentando aulas de sapateado e balé. "Eu tinha que ir, mas não gostava, minha tia obrigava. Mas foi legal, aprendi a dançar. Eu sempre fui muito ágil, então ficou tudo muito fácil."

O contato com a luta também veio na mesma época. "Eu tinha 8 anos, estava passeando e vi a galera treinando tae kwon do em uma academia", ele recorda, e aproveita para enumerar mais inspirações televisivas. "Sempre gostei de ver Bruce Lee, Besouro Verde e aquele desenho, Sawamu. Tinha os Gigantes do Ringue. E, toda vez que ia brincar, queria ser o herói." Anderson ainda não havia descoberto os poderes que o fazem imbatível diante de um oponente desarmado, mas a vontade de ser especial já se encontrava em seu inconsciente. "Eu ia para a escola com a roupa do Homem-Aranha por baixo do uniforme. Na hora do recreio, eu tirava e ficava brincando de super-herói." Já adolescente, o hiperativo Anderson descarregava as tensões dando pancadas em um saco de areia pendurado em uma amoreira, nos fundos de casa.

Mesmo com a resistência familiar (o tio que o criou foi policial militar), Anderson se dedicou a aprender o máximo possível de diferentes modalidades. Passou pelo tae kwon do, sipalki, hapkidô e boxe tailandês. A dedicação o levou a se tornar professor já aos 19 anos. "Você vê os alunos te admirarem e muda sua postura. Tinha algumas brincadeiras que eu não podia fazer mais. Alguns já me olhavam como se eu fosse um ídolo." O salto para competir no vale-tudo foi natural, apesar de inesperado para ele próprio. Se ainda hoje Anderson custa a crer ter alcançado o que conseguiu, ele também filosofa cada vez mais sobre o fardo de ser um modelo a ser seguido para fãs e outros lutadores.

"Na última vez em que estive em Curitiba, parei o carro, peguei o ônibus e fiz o mesmo percurso que fazia quando era garoto", ele conta, o olhar levemente perdido. "Você tem que saber de onde você saiu, onde está e para onde vai. E lembrar que você é referência, e que tem que saber usar isso da forma correta, porque tem pessoas que estão te observando e seguindo." As pressões de ser o maior do mundo, ele admite, também podem ter origem no ambiente familiar - mas no sentido inverso. "Toda a minha família sofre quando eu luto, né? Minha esposa principalmente. Ela já pediu várias vezes para eu parar." Anderson conheceu Dayane quando tinha 17 anos (ela, 14). O relacionamento gerou cinco filhos, três meninos e duas meninas, que moram com a mãe em Curitiba. O plano para o futuro é que todos se mudem com Anderson para os Estados Unidos. Ele saca mais uma vez o iPhone e mostra um vídeo de Kalil, 10 anos, dançando habilmente ao som de uma batida de hip-hop. É magro e esguio, mas não tanto quanto Anderson era quando tinha a mesma idade. "Magro? Eu era bem pior que isso", desdenha.

No camarim global, Anderson silva espera impaciente a hora de entrar no ar. Vaidoso, trocou de roupa duas vezes antes de se decidir por uma camiseta de mangas compridas de tricô e calças pretas, além de um vistoso relógio de ponteiros. Ao seu lado, a mala está impecavelmente organizada. Enquanto conversa com o canto do olho, brinca distraidamente com algum game em seu celular. Em resposta às minhas insistentes perguntas sobre seu repertório de golpes, ele se levanta e retira um notebook da mochila: "Vou te mostrar uma coisa que nunca ninguém viu". São vídeos de treinamentos em Los Angeles, nos quais Anderson exibe exaustivamente os golpes que executou na luta contra Sonnen. "Olha aqui, eu praticando o triângulo", ele aponta e repete uma dezena de vezes o trecho que mostra o movimento que o manteve por mais alguns meses com o título. Em um dos vídeos, reconheço o compatriota Lyoto Machida, ex-campeão dos meio-pesados do UFC e um dos lutadores contra quem Anderson se recusa a lutar. "O Dana White chegou a oferecer muito dinheiro para mim e para o Lyoto, só para a gente se enfrentar", conta Anderson. "Eu falei para ele pegar de volta, porque nem por todo dinheiro eu enfrentaria meu irmão." A mesma regra se estende para outros brasileiros, como Junior "Cigano" e os gêmeos Rodrigo "Minotauro" e Rogério "Minotouro": todos treinam juntos como parte da Black House, misto de equipe de luta e academia formado por mais de duas dezenas de lutadores, em sua maioria brasileiros e que jamais se enfrentam entre si. "Eles têm uma ética, não há dinheiro que os corrompa", me revela uma fonte próxima a Anderson. "Eles têm muita índole e caráter. Eliminar a fama de marrento e mau caráter é o objetivo de quem pratica o esporte."

A próxima luta pela defesa do título deverá ser em 2011, contra o veterano Vitor Belfort, mas Anderson nega que tenha sido informado oficialmente a respeito. Sonnen, que chegou a ser cotado para uma revanche, foi recentemente afastado por cair no exame antidoping após a polêmica luta em Oakland. Mas o campeão não quer falar mais sobre o assunto. Na verdade, tudo o que ele parece desejar neste instante é tirar férias, esperar a costela cicatrizar e esquecer por algumas semanas que é o lutador que o mundo deseja ver estirado na lona.

"É claro que eu posso perder a próxima luta. Pode acontecer", ele repete seu mantra. Mas nem uma derrota e a perda do cinturão seriam fatores determinantes para encerrar a carreira de Anderson Silva. Talvez ele pare quando achar que já fez o que poderia pelo esporte. Ou quando parar de se divertir em um ringue. Ou quando achar que seu corpo já não responde da mesma forma. Seja qual for o motivo, a decisão será apenas e somente de Anderson Silva. Afinal, nas palavras dele mesmo, "é horrível você fazer o que não gosta".

"Ninguém nunca vai me parar. Só eu mesmo vou me parar", ele me encara. E desta vez, parece falar sério.