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A Grande Família

A Grande Família e suas histórias extraordinárias

Cristiane Lisbôa Publicado em 22/09/2008, às 18h10

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Ilustração: Benício
Ilustração: Benício

Sonhada como uma possibilidade de questionamento da classe média durante os nublados tempos de ditadura no Brasil, a série A Grande Família aposta em uma comédia ligeira e popular, se mantém como uma das maiores audiências da nossa TV e vira um filme, cercado de desafios, números e certezas. Agora, resta saber se os fiéis espectadores irão das salas de suas casas para as salas de cinema

"Se você tem uma família, não precisa inventar outra: é só escrever sobre ela." A frase, creditada ao alemão Thomas Mann (A Montanha Mágica), foi repetida à exaustão pelo também escritor Roberto Drummond (Hilda Furacão). E, embora nenhum dos dois tenha nada a ver com o que vamos falar, é quase impossível não se lembrar deles neste exato momento. Acabo de assistir a A Grande Família - O Filme e tenho quase certeza que, mudando uma coisa e outra, seria o dia-a-dia da casa de pelo menos cinqüenta por cento daquela sala cheia de jornalistas e seus nervosos blocos de anotações. Ou dos avós do moço sentado à minha frente que chorou na cena do baile. Ou do roteirista. Da Marieta Severo, quem sabe? Da minha, certamente.

Penso nisso enquanto me dirijo à sala de entrevistas. Sento em frente ao elenco, ao roteirista e ao diretor de A Grande Família, o seriado global das noites de quinta-feira que, em 2001, estreou com o objetivo de ser apenas uma meia dúzia de episódios experimentais, baseados na série popular dos anos 70. Seis anos depois, o programa vira filme com os mesmos atores, direção e equipe que, na TV, conseguem registrar uma média de 40 pontos no Ibope com roteiros sem bundas, coxas, tórax ou loiras. É apenas uma família de classe média baixa com Lineu (Marco Nanini), o pai corretíssimo, Nenê (Marieta Severo), a mãe superprotetora, Tuco (Lúcio Mauro Filho), o filho vagabundo, Bebel (Guta Stresser), a filha muito doida, e Agostinho (Pedro Cardoso), o genro encostado. Além das participações fixas de Marilda (Andréa Beltrão), a amiga cabeleireira, Mendonça (Tonico Pereira), o colega de trabalho do patriarca, e Beiçola (Marcos Oliveira), que acumula as funções de dono da pastelaria, advogado popular e eterno apaixonado por Nenê. Todos esses personagens vivem as contradições de ser quem são - em meio a uma caracterização primorosa cheia de signos emocionais que remetem a muitas lembranças, como os pratos transparentes da Duralex, as xícaras beges com minúsculas flores cor-de-laranja para o cafezinho, as frutas de plástico em cima da mesa da sala e o figurino com pulseiras, flores e cafonices nos lugares exatos. Essa cena parece familiar para você? Para a atriz Marieta Severo, sim. "O brasileiro gosta de se ver refletido nessa família que supera os problemas do cotidiano com bom humor, afeto, solidariedade e compreensão". Assim, em uma cumplicidade promovida pelo riso, o seriado se transforma em um espelho de nós mesmos e serve para que possamos nos reconhecer ou reconhecer alguém que está muito perto, promovendo, assim, o interesse, a curiosidade e a identificação imediata. Em poucas palavras, um truque. Um trunfo. Ou ambos os casos.

Em A Grande Família, isso e tão forte que acaba influenciando todos os aspectos do projeto. A começar pela vinheta de abertura, feita com fotos pessoais dos funcionários do Departamento de Arte da Rede Globo. "A idéia era colocar o rosto dos atores em imagens de verdade [as fotos dos funcionários] para mostrar que aquela família era exatamente como a dos espectadores que a assistem. Para deixar isso bem claro e contextualizado, fizemos a abertura de maneira cronológica, começando em um álbum mais antigo, com os pais ainda pequenos, depois eles no casamento, em seguida o nascimento, a infância e a adolescência dos filhos, até finalmente chegar aos álbuns plásticos atuais, com imagens de todo mundo adulto, junto, feliz", conta Haroldinho, designer da Visorama Diversões Eletrônicas, empresa que orgulhosamente assina a animação que acompanha o indefectível "Quais, quais, quais" da trilha cantarolada pelo sambista Dudu Nobre.

Alguns capítulos também ilustram bem essa estrutura e, ao mostrarem situações cômicas desenvolvidas em cima de outras produções da Rede Globo, por pouco não esbarram na realidade. Como quando Tuco vai para o Big Brother Brasil e todos se mobilizam na torcida e no apoio à nova celebridade instantânea, que sai do programa pronto para entrevistas, nus artísticos e festas com cachê. E teve também o episódio que se desenrola a partir do depoimento de Nenê para os momentos finais da novela Páginas da Vida, quando ela revela que tem fantasias com outros homens. Essa cena é uma paródia ao polêmico depoimento real, conhecido por "Côncavo e Convexo", em que uma senhora de meia idade confessa que só descobriu o prazer sexual quando começou a se masturbar ao som de Roberto Carlos e que, até hoje, ela utiliza o artifício com regularidade.

Ainda tem o inegável talento dos atores e um texto que prima por um tipo de humor quase em extinção: a comédia bem pensada. Mas, se olharmos em volta do controle remoto, isso tudo não basta para que a dona de casa e o empresário possam rir das mesmas piadas ou ligar a TV no mesmo canal. Ou para um programa manter, por seis anos, 60% da audiência total no horário, o que dá mais ou menos uns 30 milhões de pessoas em frente à telinha. Para isso, é preciso coragem. "O nosso grupo é afinado e totalmente comprometido a fazer entretenimento com qualidade porque acredito que o público é capaz de reconhecê-lo", explica Maurício Farias, diretor do programa. Concorda com ele um pedaço da história da televisão brasileira que, lá atrás, provou que o povo aceita, gosta e também dá biscoito fino para as massas.

A Grande Família que vemos hoje é um remake do que, no comecinho da década de 1970, foi a primeira comédia de costumes ou sitcom (situation comedy) brasileira, um gênero ficcional importado dos Estados Unidos que consiste em uma série de televisão que tenha uma ou mais histórias de humor entrelaçando personagens e lugares comuns como grupos de amigos, locais de trabalho e núcleos em geral. No início, era baseada nas sitcoms All In the Family e Father Knows Best, duas bem-sucedidas experiências com enredos que giravam em torno de uma família. Nos primeiros seis meses, os roteiros eram assinados por Max Nunes (um dos maiores humoristas brasileiros, autor de bordões como "tem pai que é cego.") e Marcos Freire. A direção e coordenação ficaram a cargo do ator Milton Gonçalves. Não agradou nem gregos nem troianos e Daniel Filho, então diretor de produção da Vênus Platinada, resolveu aceitar a indicação dos teledramaturgos Dias Gomes e Janete Clair, chamando Oduvaldo Vianna filho, o Vianinha, jovem dramaturgo, militante do Partido Comunista Brasileiro e um dos fundadores do Teatro de Arena e do Centro Popular de Cultura da Une (CPC) - grupos de teatro que, naqueles tempos de intensas movimentações políticas e culturais, buscavam promover a revolução social através da arte. Vianinha iniciou sua participação ao lado de Lafayete Galvão, em abril de 1973. Depois, passou a trabalhar com Armando Costa e Paulo Pontes, grandes amigos, militantes do PCB e ex-companheiros do CPC.

De acordo com a historiadora Maria Aparecida Ruiz, a obra do contestador dramaturgo encontrou um ponto de continuidade nos roteiros que ele escreveu para a série (e que hoje são objetos de pesquisa, teses e livros, e só podem ser manuseados com luvas). "Logo no primeiro capítulo [do trio de roteiristas], chamado 'A Mudança', exibido em cinco de abril de 1973, Vianinha, Armando e Paulo mostram a proletarização do grupo através da mudança de um apartamento na Tijuca para o conjunto habitacional Jardim Bela Vista, no Realengo, periferia do Rio de Janeiro, bem ao lado de uma pedreira que fazia tremer a casa toda a cada explosão. Com o cenário vazio, a entrada dos personagens em cena enfatizava a reação que cada um tinha frente à transferência para o novo espaço. A partir do modo como enfrentavam a diminuição do poder aquisitivo, os telespectadores tinham a chance de observar as características que os tornariam cada vez mais cúmplices da sociedade [da época] e, por isso mesmo, cada vez mais reais", conta Maria Aparecida em sua tese de doutorado que vai se transformar em livro ainda este ano. "As situações giravam basicamente em torno da falta de dinheiro do pai, da dona de casa fazendo mágica para os custos da família caberem no orçamento e dos conflitos entre três irmãos: um estudante, intelectual, outro hippie, tentando viver as viagens da época sem perder o apoio dos pais, e a filha que não trabalha e acaba se casando com um homem que vive de pequenos golpes ou empregos meteóricos. Tudo muito típico. Ou, nas palavras do próprio Vianinha, 'uma ironia às dificuldades do povo e uma democratização do fracasso, não no sentido de derrota, mas de solidariedade com os não vitoriosos que enfrentam e vencem todas as situações apresentadas'." Longe de ser ingênua, essa declaração só vinha confirmar os reais propósitos da sitcom. Para ele, ainda era possível concentrar na classe média as expectativas de uma revolução real. Sendo o próprio dramaturgo um elemento dessa classe, ele conhecia seus anseios, sua divisão interna e sua linguagem. O que o levava a crer que, se antes do golpe de 1964, houve uma importante aproximação da classe média com as forças da esquerda, seu engajamento na compreensão do momento político não seria impossível. E por que não tentar falar com esse público através da arte que estava bem ali, ao alcance de todos, em um cenário novo e totalmente propício para tal discussão?

Devidamente inserida no contexto, a família livrou-se dos padrões norte-americanos e finalmente encontrou sua fórmula exata: a convivência humanizada e bem-humorada entre os personagens e a constante exposição de conflitos. Desse modo, entrou em sintonia com os problemas da década: altos sonhos de consumo, baixos rendimentos, desemprego e repressão. Sim, em meio a uma censura brutal, o programa conseguia tratar de questões polêmicas, como feminismo, tratamento de idosos e a contracultura. As críticas ao regime político eram feitas com dribles de mestre, utilizando muito barulho e focando algumas cenas em tombos ou outros momentos que beiravam o ridículo para, com risadas, desviar a atenção dos censores. Vianinha queria que "A Grande Família fosse a autogozação das dificuldades das famílias brasileiras." E repetia que a missão do seu texto era "fazer com que ela enfrentasse seus problemas de maneira menos dolorosa, menos desgastante, sem entrechoques."

Um exemplo claro dessas artimanhas anticensura foi um episódio intitulado "O Recadão". Os personagens não conseguiam se comunicar e passaram a deixar recados uns aos outros. Esses recados eram mal interpretados e as pessoas da casa passaram a censurá-los. Aprovado o roteiro, "O Recadão" foi ao ar. Muitos outros não tiveram a mesma sorte, pois o programa tinha muitos problemas com a censura. Principalmente as falas de Júnior (Osmar Prado), que tinha uma postura considerada politizada demais mesmo que escondida atrás da imagem de um estudante de medicina. Estranhamente, ele é o único personagem que não aparece na versão atual. Segundo informações do Dicionário da TV Globo - Programas de Dramaturgia & Entretenimento, isso aconteceu porque no remake "foi retirado esse viés político", o que obviamente deixa o personagem de fora. A historiadora Maria Aparecida contesta: "Desejo enfatizar que Júnior não representava apenas o sintoma de uma discordância política. Também servia de apoio ao temperamento responsável de Lineu e apontava para algo de suma importância na obra de Vianinha: o conflito de gerações. Havia entre eles uma relação de cumplicidade e admiração e, ao mesmo tempo, distância e discordância. Júnior trazia para o clã familiar esclarecimentos e informações que ultrapassavam a repressão política existente no Brasil naquele momento. Dramaturgicamente, os personagens de A Grande Família complementavam-se. Incrível é pensar que, em um momento de censura política como aquele, ele se manteve até o final da produção e, hoje, vivendo em uma democracia, é exatamente esse o personagem que desaparece...", escreve ela no trecho de uma carta enviada a Jorge Zahar Editor (que publicou o Dicionário) e à Rede Globo de Televisão, onde solicita que a correção seja feita. Nestes tempos de mensalões, CPIs e outras vexatórias mumunhas políticas, é de se pensar mesmo se não faz falta um discurso um pouco mais forte passado através da graça e das falas de um tipo que levante a bandeira de que algo está definitivamente fora da ordem mundial.

Em março de 1975, o programa passa a ser transmitido em cores, o que poderia representar uma etapa de, quem sabe, experimentações também visuais. Mas a morte de Vianinha e, em seguida a de Paulo Pontes, ambos vítimas de câncer, afeta definitivamente a produção e, apesar dos protestos de telespectadores e de profissionais como o crítico Artur da Távola, do jornal O Globo, A Grande Família saiu da grade de programação da emissora. Em 1987, a Rede Globo exibiu um especial de fim de ano com o elenco original da série, a exceção de Agostinho, agora interpretado por Nuno Leal Maia. Mas o que era doce acabou naquela mesma noite. No especial, Pedro Cardoso vive um estudante de teatro por quem Bebel se apaixona após se separar de Agostinho, personagem vivido por ele hoje, vinte e seis anos depois.

Aliás, voltando ao filme, é importante lembrar que estou neste exato momento sentada em frente a todo o elenco, ao roteirista e ao diretor. A imprensa está sendo recebida em uma sala de cinema que, no lugar da tela, tem uma mesa comprida onde pessoas absolutamente diferentes estão dando risadas, cochichando, fazendo piadas internas e pedindo ajuda uns aos outros na hora de responder a algumas perguntas. Pedro Cardoso e Lúcio Mauro Filho não estão, mas a ausência de ambos é logo explicada e lamentada pela família, ops, elenco. "Eles estão trabalhando em outros projetos e justo hoje não puderam vir. Chato, né?". Guel Arraes, que tirou da cartola o programa e o filme (além de acumular as funções de diretor de núcleo da TV Globo, produtor associado da Globo Filmes e roteirista e diretor) também não pôde vir. Tudo bem. Isso acontece nas melhores famílias e as entrevistas serão feitas em outro momento.

A estréia do longa, em São Paulo, foi uma comédia à parte. Atores reunidos, convidados, o Paulo Autran, e alguns fotógrafos que conseguiram encenar os barracos que estamos acostumados a ver nas quintas-feiras à noite. Todos queriam um pedaço da Grande Família, inédito, nem que, para isso, fosse preciso se esconder atrás das poltronas retráteis. O clima esquentou na sala 6 de um shopping da cidade, reservada para elenco e familiares, e os pedidos de silêncio (tradicionais "shiiiiiiii") não foram atendidos diante da discussão que começava a acontecer. As risadas não conseguiram conter os inoportunos flashes dos paparazzi. Família de celebridades dá nisso, né?

Paulo Betti e Dira Paes, que fazem especialíssimas participações colocando em risco a sólida relação de Lineu e Nenê, são questionados sobre a dificuldade de trabalhar com um grupo já tão entrosado. "Ninguém queria me deixar comer a Nenê", Paulo responde, às gargalhadas. "Pô, chega agora e quer sentar na janela? Ela é nossa mãe", completa Guta Stresser. Mas é Maurício Farias, o diretor, quem resume a situação dos convidados: "É muito difícil para um ator chegar em um núcleo que está trabalhando há seis anos e impor um personagem. Somente grandes profissionais são capazes de uma composição que sintonize com o que já estava sendo feito. E eles conseguiram." Dira Paes, que nem acreditava na possibilidade de ser chamada para um trabalho como este, já que vive a personagem Solineuza no semanal A Diarista, acompanha as palmas. E sorri. "Este convite inesperado me fez perceber que, justamente pela proximidade entre os dois seriados, poderia me distanciar do meu personagem na TV e fazer A Grande Família no cinema".

A pergunta inevitável "será que eles são mesmo uma família?" nem mesmo precisou ser feita. Alguém pede uma foto. Os atores e a equipe fixa do programa que migrou para o filme se dão as mãos. Não é uma simples pose. Eles são amigos, se respeitam, se admiram e interpretam com veracidade um núcleo inventado, cientes da responsabilidade histórica que carregam em cada cena, apesar de, hoje, a primeira versão não ser exatamente um modelo. "No começo foi. Tínhamos como base o programa do Vianinha. Aos poucos, assumimos a responsabilidade de transformar aquela estrutura inicial em um seriado independente e contemporâneo", explica o roteirista Cláudio Paiva. Mais ou menos como as gerações fazem com as tradições. Tudo segue existindo, aquilo corre no sangue, mas muda-se aqui e ali para que seja crível. Provando que Thomas Mann e Roberto Drummond estavam certos. Quando a família já existe, basta escrever sobre ela. Mesmo que se mude alguma coisa. Ou que demore alguns anos (o filme está sendo aguardado desde 2004, quando o projeto foi anunciado ao grande público) e chegue com orçamento de cinco milhões de reais e a expectativa de ultrapassar um milhão de expectadores.

Mas será que precisava mesmo ter esperado tanto? Apesar de pressões, pedidos e comunidades de Orkut berrando "Cadê o filme da Grande Família?", a demora é mais do que justificada. Além da preocupação com a qualidade, a equipe não queria apenas filmar um episódio longo e nem poderia se distanciar totalmente daquele universo suburbano, facilmente reconhecido e querido. Era preciso justificar a existência do longa-metragem e convencer os fãs a pagar um ingresso para assistir aos mesmos atores, à mesma rua e ao mesmo salão de cabeleireiro que eles têm "de graça" sentados no sofá da sala.

"Quando recebemos a proposta, imediatamente me perguntei: 'Por que fazer um filme? Vaidade? Uma boa história?' Se fosse assim, bastaria ter um excelente programa, caprichar mais, brincar com a linguagem, a estrutura. A única coisa que nos tiraria deste trilho estável que hoje é A Grande Família seria a escolha de uma idéia específica e apropriada apenas para o cinema, algo que não poderia ser contado na TV em vinte e cinco, trinta minutos", explica Cláudio Paiva, que divide o roteiro com Guel Arraes e os diálogos com Adriana Falcão. Embora pareça um pouco contraditório, já que o longa se ambienta e existe através do programa, durante os 104 minutos que dura a película, eles conseguiram. O que se vê no escurinho do cinema tem - como nem poderia deixar de ser - ligação direta com o humor e as minúcias de toda quinta-feira, mas, ao mesmo tempo, é outra coisa. O clima está lá, os personagens também. O figurino, as xícaras, os pratos, o boteco. Mas a linearidade exata apenas manda lembranças quando se percebe que A Grande Família do cinema se apresenta em três atos, onde as cenas são espelhos que se repetem em outro contexto, outra emoção, outro tom. Os diálogos e as situações são quase iguais, mudando apenas quem diz, como é dito e em que momento se fala. "Este roteiro propõe estados de espírito que oferecem aos atores a possibilidade de entender os personagens em cada tipo de sentimento, da euforia ao desespero", explica Marco Nanini. Andréa Beltrão reforça: "No começo, foi muito difícil e confuso entender que sentimentos deveriam nortear cada ato. Depois, virou uma brincadeira matemática". Marieta Severo credita a ousadia do roteiro à possibilidade de os atores entrarem no universo da sétima arte "que é um exercício de sutileza, entrega, de construção aos pouquinhos."

Audacioso? Você ainda não viu nada. Contrariando tudo o que se espera de um longa-metragem vindo de um seriado popular, o enredo é sobre a morte e o amor (necessariamente nessa ordem). Lineu Silva é o eixo que move todas as cenas. Ele desconfia que vai morrer e então, sem avisar, começa a experimentar maneiras de estruturar a família de modo que ninguém sinta sua ausência. E é esta morte - imaginada ou não - que faz com que o patriarca passe a se questionar sobre as escolhas feitas nos últimos quarenta anos, quando começou a namorar Nenê em um baile de subúrbio e, em seguida, assumiu todas as responsabilidades de um pai que não pode se dar o luxo de uma loucura. A maneira como ele reage provoca inversões dramáticas importantes. Assim, Nenê acredita que o marido não a ama mais e aceita os conselhos de Marilda de ir ao tal baile com um ex-namorado bonitão (Paulo Betti). O próprio Lineu cogita a hipótese de encontros furtivos na sala do café e motelzinho às escondidas com Dona Marina (Dira Paes), uma funcionária da repartição. E Agostinho (Pedro Cardoso) se torna um ombro forte que faz qualquer coisa para que a família não acabe.

Seja morte ou amor. O que faz com que, diferente do seriado, que é quase romântico, o filme seja um pouco mais sombrio? Como bem notou Lúcio Mauro Filho: "Nós lemos o texto várias vezes e não nos demos conta de que iríamos fazer tantas cenas noturnas. A série é solar, cheia de cafés-da-manhã. E aí começamos a filmar e filmar, e percebemos que as cenas traziam elementos muito diferentes do que estávamos acostumados, como lidar com a morte e a noite. Ao mesmo tempo em que o humor e a leveza estavam lá, em algum lugar". Mais uma sacada do roteiro que "demorou uma enormidade para ser feito" e consegue ser complexo e minucioso a ponto de fazer com que os atores que vivem essas vidas há seis anos tenham descoberto lados desconhecidos nos personagens. Até Nanini, que às vezes diz que o seu Lineu "já anda sozinho", gostou de ter que, novamente, discutir, pesquisar e entender o raciocínio do pai de família quando tocado por determinado tipo de emoção. Em decorrência disso, o trabalho de preparação de atores foi intenso. "Ensaiamos por grupos e de acordo com cada pequeno trecho do roteiro", conta Maurício Farias, que mesmo sabendo onde estava pisando, foi à exaustão em cada detalhe. "Doze horas antes de começarmos a filmar, Guel, Cláudio, o elenco e eu ainda estávamos reunidos no set de filmagem lendo as cenas que precisavam de ajustes."

Ponto para os roteiristas. Eles conseguiram que cada ator ficasse sob o fio da navalha do drama e da comédia. Exatamente ao mesmo tempo. Coisa que, afinal, era de se esperar vindo de quem vem. Guel Arraes (que também assina a produção) foi responsável por seriados históricos como TV Pirata e Armação Ilimitada, e também levou ao ar as séries Cena Aberta, Sexo Frágil, Brasil Total e o quadro "Retrato Falado", do Fantástico. Cláudio Paiva, que era cartunista de O Pasquim, entrou direto na TV Pirata, logo após o sucesso de um insano jornal ficcional chamado O Planeta Diário, em que tinha como companheiros Hubert e Reinaldo, atuais cassetas. Na Globo, assinou a redação final do programa Sai de Baixo e adaptou Comédia da Vida Privada, de Luís Fernando Veríssimo, até chegar a A Grande Família. E Adriana Falcão foi colaboradora costumeira nos diálogos da Comédia da Vida Privada, Brasil Legal e da própria A Grande Família.

A idéia de ter um enredo que lidasse com a morte surgiu da necessidade dos dois roteiristas em falar neste assunto, afinal, segundo Guel Arraes, ele e Cláudio já estão na meia idade... Rogério Cardoso, que interpretava Seu Floriano, o avô da família, morreu no terceiro ano da sitcom. O acontecimento mexeu muito com os atores e a equipe que, durante o velório, em uma confusa mistura de ficção com realidade, recebiam os cumprimentos como se fossem a família real do ator. "Perdemos com ele alguma ingenuidade que tínhamos. Nós, tão acostumados ao humor, lidamos com a realidade. Todos estavam se vendo ali, eu me vi: um dia serei eu, no caixão! E isso está no filme em forma de comédia. A depressão e os questionamentos de Lineu têm início no velório de um colega, exatamente como começaram os meus", recorda Paiva. E o filme apresenta isso com profundidade, claro, mas oscilando entre a delicadeza e o escracho. Até porque, em mais um contraponto à vida real, mesmo em situações-limite ou em momentos de dor, sempre existe a graça e os dias de sol. No caso, muito apoiado nas personagens femininas. A tríade Nenê, Marilda e Bebel, que representam respectivamente mãe, amiga e filha, acabam, no cinema, sendo eixos de ligação entre as cenas. Sutilmente, elas dão o tom do drama ou da comédia enquanto tentam entender o que, afinal, está acontecendo com os homens. A Bebel de Guta Stresser, por exemplo, tem seu maior problema resolvido: já pode engravidar. E pira. Como bem define a atriz: "Ela está bem doida. Ser mãe era o maior sonho da Bebel. Por isso, mantenho a personagem permanentemente na alegria eufórica da possibilidade de ter esse sonho realizado". Até o seu figurino acompanha essa doidice, começando justinho, colado ao corpo e, a partir do momento em que ela descobre que o marido "não é mais oco", passa a ser largo e solto como se já estivesse ligeiramente grávida. Já Marilda faz o que quer, como sempre, e incentiva as outras, tão presas à submissão do peso do anel na mão esquerda, a fazerem o mesmo: "Ela é a mulher mais livre do seriado e do filme. Isso, às vezes, gera conflitos, mas acaba fazendo um contraponto interessante. Talvez porque o ideal de felicidade dela seja ter casa própria, independência, vodka importada e muitos maços de cigarros longos. E cílios postiços em cima e embaixo, parecendo um farol de fusca", ri Andréa. Nenê continua firme nos vestidinhos ajustados ao corpo e conjuntos calça capri e blusa no mesmo tecido. Desse jeito, ela mexe com os corações, provoca ciúmes, tem apaixonados nada secretos e acaba se metendo em confusões amorosas habilmente exploradas. A atriz credita isso à intensa feminilidade da personagem: "A Nenê tem o melhor do feminino. Compreende o outro, harmoniza e vê as coisas sob todos os pontos de vista, sempre usando os olhos do afeto". Há quem diga que talvez seja o charme de Marieta Severo que inspira os roteiristas nessas situações. Como estamos falando de uma família, é melhor não duvidar de nada.

Pedro cardoso, que vive o quase amoral Agostinho, ganhou uma possibilidade de inserir seu personagem em outro contexto, sem perder nem um milímetro da capacidade de fazer rir. "Existem inversões: no filme, Agostinho apóia o Lineu; na série, é sempre o contrário. Mas como o assunto do filme é realmente uma novidade, essas relações ganham outra densidade", acrescenta. O ator defende que a fórmula para a tela grande funciona exatamente por causa desse aprofundamento dos personagens. "Tanto o programa quanto o filme de A Grande Família são uma resposta adequada entre a mesmice e a novidade. E isso é uma habilidade de roteiro desgraçada! Temos a mesma estrutura dramática, mas vamos mudando os aspectos da neurose familiar", analisa. Não sem razão. Mendonça (Tonico Pereira) é responsável por algumas das mais frouxas gargalhadas que o longa-metragem provoca. Correndo atrás da felicidade de "Lineuzinho", ele dá provas de amizade e canalhice (na mesma medida).

Outra peça fundamental para o cinema é a boa e velha trilha sonora. Atuando quase como uma coadjuvante, compondo cenas e ditando tons, ela tem direção musical de um fã da Família: Branco Mello, compositor e vocalista dos Titãs. A trilha é um mergulho na fase mais doce e romântica dos anos 60, aproveitando que tudo acontece em um baile há quarenta anos. Branco, que não sabe dançar de rosto colado, conta que, quando foi chamado para fazer a trilha, partiu do zero. "Eu voltei a escutar músicas que não ouvia há muito tempo. E contei com a colaboração de especialistas: Charles Gavin e Marcelo Fróes para a pesquisa. Nisso, acabei conhecendo grupos que jamais tinha ouvido falar, como os Brazilian Bitles, que faziam cover do quarteto inglês, mas também compunham e tocavam músicas próprias, como as duas que acabaram entrando: 'Eu e Você', do Vitor Trucco e do Fabio Block, e 'Como é Bom Saber', do Steban."

Deste modo, a trilha tem desde pérolas como "Gatinha Manhosa", na gravação original de 1966 com Erasmo Carlos acompanhado de Renato e Seus Blue Caps, até "Esqueça" e "Outra Vez", do rei Roberto Carlos. Mas a música favorita de Branco é "Meu Nome é Ninguém", de Haroldo Barbosa e Luis Reis, na voz de Miltinho, o cantor preferido dos apaixonados. As cenas do baile contam com a participação de Lafayette e Os Tremendões. Não por acaso. Branco considera Lafayette (conhecido na Jovem Guarda pelos solos no órgão Hammond que marcaram presença nos mais importantes shows e discos) um músico fundamental da época. Os Tremendões que o acompanham são músicos de outras bandas, loucos pelos anos 60 e que fazem shows trazendo no repertório toda a atmosfera dos bailes. É só escolher o vestido. E não esquecer o paletó.

Os cenários também receberam atenção especial. As cenas não poderiam ser rodadas em estúdio ou apenas no Projac, sob o risco de não apresentarem nenhuma diferença facilmente visível a um telespectador costumeiro. Ao mesmo tempo, também não poderiam ser reais demais, pois a história tem outro pano de fundo. Então, voltou-se às origens. Foram procuradas locações em bairros do subúrbio carioca, como Marechal Hermes, Penha e Marechal Deodoro. E os ambientes como o salão de cabeleireiro, a pastelaria e o escritório de Lineu, foram delineados com mais detalhes e acrescidos de ruas, postes, fachada. Até por uma questão prática. "Esta é uma co-produção, mas sem dinheiro incentivado. Uma parceria Globo Filmes e Europa Filmes em que aproveitamos a estrutura da televisão", esclarece Guel Arraes. Pelo motivo que for, as idéias foram habilidosas e acrescentaram coisas à cidade cenográfica que servem para o filme, mas que, segundo Arraes, vão continuar lá. O que significa que, além de sequer existir a possibilidade de o programa acabar agora que virou sétima arte (como aconteceu com Os Normais), ainda existe a chance de que os acontecimentos do cinema ganhem seqüência durante a nova temporada da TV. "Começamos a fazer episódios que tinham seqüência de dois ou três programas apenas no terceiro ano. No começo, achamos que não havia continuidade no imaginário do espectador. Só aos poucos percebemos que ela existe sim. Talvez por isso, as pessoas encarem A Grande Família - O Filme como um episódio muito especial e que, portanto, merece ter desdobramentos mil. Mas ainda não sabemos de nada", comenta Maurício Farias. "Que o nenê [da Bebel] seja um boneco!", berra Nanini. E que as gargalhadas gerais de elenco, equipe e jornalistas representem um sinal de sorte, vida longa e sucesso para as melhores histórias da família, sejam elas contadas em tela grande ou pequena.

Cristiane Lisbôa é autora dos livros Deles e Quase o Resto (Editora FinaFlor, 2004) e Papel Manteiga para Embrulhar Segredos (Editora Memória Visual, 2006)