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Especial Surfe - Boas Ondas

A surf music começou há 50 anos como um subgênero do rock, mas ao longo das décadas se transformou em um estilo de vida

Por Paulo Cavalvanti Publicado em 16/06/2011, às 10h42

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<b>VIDA NA ÁGUA</b> Kelly Slater e seu instrumento de trabalho, em Santa Barbara, Califórnia - WALTER IOOSS JR./GETTY IMAGES
<b>VIDA NA ÁGUA</b> Kelly Slater e seu instrumento de trabalho, em Santa Barbara, Califórnia - WALTER IOOSS JR./GETTY IMAGES

A cultura do surfe já era algo bem definido antes mesmo de existir uma trilha sonora para ela. George Freeth introduziu o esporte no Ocidente em 1907. Ele fazia demonstrações na praia de Redondo, na Califórnia, contratado pela Pacific Electric Railroad. Nos anos 20, o campeão olímpico Duke Kahanamoku ajudou a popularizar o esporte nos Estados Unidos. Mas a prática do surfe tinha um problema: as pranchas eram muito grandes e pesadas - somente quem tinha muita habilidade e preparo podia praticar o esporte. Mas depois da Segunda Guerra Mundial começaram a surgir pranchas mais leves e práticas fabricadas com madeira, fibra de vidro e poliuretano. Com a melhoria do design e do acabamento das pranchas, o surfe ganhava mais adeptos, especialmente entre o público jovem da Costa Oeste dos Estados Unidos. E, como muitas vezes acontece, Hollywood deu uma força. O filme Gidget (no Brasil, Maldosamente Ingênua), de 1959, projetou ao mundo uma visão idealizada das praias do sul da Califórnia. Era um paraíso na terra onde todos eram saudáveis, bonitos e eternamente à procura de romance e diversão. A América do Norte vivia uma época de otimismo e prosperidade no começo da década de 60. O presidente John F. Kennedy era idealista e tinha pinta de galã de cinema. Não era crime nenhum ser hedonista e procurar o prazer.

O surfe começava a ser visto não apenas como esporte, mas também como algo orgânico, um estilo de vida que ganhava status cultural. O cineasta Bruce Brown começou a dirigir documentários sobre o surfe como Slippery When We Wet e Barefoot Adventure. Brown, é claro, produziu The Endless Summer (1966), o mais célebre documentário de surfe de todos os tempos. Os filmes de Brown continham cenas excitantes e reais das manobras radicais dos maiores surfistas dos anos 60, como Mike Doyle e Joyce Hoffman.

As regiões de Los Angeles e Orange County possuíam 100 milhas de praia delimitadas por Malibu e Santa Monica no norte e San Clemente no sul. Quem freqüentava esse pedaço era invariavelmente bronzeado, com cabelos parafinados, usava camisas Pendleton e sandálias huarache. Quem tinha dinheiro sobrando andava de carro esporte. Mas os surfistas preferiam usar caminhonetes chamadas woodie, cuja parte traseira era grande o suficiente para acomodar as pranchas.

Adolescentes urbanos e de classe média buscavam inspiração no rockabilly e R&B para criar um som mais cru, urgente e dançante. Boa parte das bandas preferia tocar rock instrumental, já que era mais simples e ideal para dançar. The Ventures, Duane Eddy, The Fireballs, The Gamblers, Johnny and The Hurricanes, The Champs tiveram muito sucesso naquele período e anteciparam timbres, riffs e harmonias que viriam a formar o que se chamaria de surf music.

O encontro da cultura do surfe do sul da Califórnia com o rock instrumental foi explosivo. As estações de rádio promoviam bailes para aos adolescentes e eram necessárias bandas para animar os salões. Foi o ambiente propício para o jovem Richard Monsour. Ele, que mudou o nome para Dick Dale, era um aspirante ao showbusiness nascido no Massachusetts e que achou sua identidade pessoal e musical quando se mudou para a Califórnia. O talentoso Dale também era surfista e queria que sua guitarra tocasse de uma forma "molhada", reproduzindo a emoção e excitação da prática do surfe. Dale usava uma Fender Stratocaster especial, cheia de efeitos. O seu instrumento tinha reverberação, ecos e as sutis distorções que ele precisava. O guitarrista canhoto também usava timbres e escalas orientais, algo inédito no rock. Dale pediu para que o pessoal da Fender fabricasse para ele amplificadores especiais. O Fender Dual Showman e o Reverb Unit se tornaram essenciais para a criação da surf music.

O Rendezvous Ballroom foi construído em 1928 e tinha vivido seu apogeu nos anos 40, na era das big bands. O imenso local estava decadente quando Dick Dale apareceu para tocar lá. Logo o músico conseguiu quatro mil pessoas no local, boa parte delas vinda diretamente das praias. Os shows de Dale ganharam repercussão nacional e ele foi apelidado de "The King of Surf Guitar". Em 1961, Dale e seu grupo The Del Tones lançaram "Let's Go Trippin'", considerada a primeira gravação de surf music. Ele assinou com a Capitol Records, lançando inúmeros clássicos, como "Miserlou", que se tornou sua marca registrada. Dale era agora a cara da surf music e também começou a aparecer em programas de TV e a fazer shows em várias partes dos Estados Unidos. Mais importante que isso foi o som que Dale criou. O guitarrista definiu um estilo e inspirou uma multidão de jovens a entrar de cabeça nele.

Um dos fãs de Dick Dale era um jovem chamado Dennis Wilson. Surfista amador e garoto-problema, ele não tinha nenhum interesse formal em música até que apareceu de papagaio de pirata numa sessão de gravação que reunia seus irmãos Brian e Carl Wilson, o primo Mike Love e o amigo Al Jardine. Os rapazes tentavam sem êxito emplacar canções folk. Dennis então falou aos organizadores da sessão que a banda de seus irmãos tinha uma música sobre surfe. Brian e Mike ficaram espantados, mas foram para casa e escreveram "Surfin'". O disco saiu pelo pequeno selo Candix e conseguiu a proeza de entrar para a parada nacional. E a banda iniciante agora tinha um nome: The Beach Boys.

Em 1962, os Beach Boys assinaram com a Capitol Records e lançaram "Surfin Safari", que foi um grande sucesso. A clássica "Surfin' USA", lançada no ano seguinte, estabeleceu os Beach Boys como a banda número 1 dos Estados Unidos. Até então, a surf music era um fenômeno basicamente instrumental. Os Beach Boys mudaram isso. Brian Wilson era obcecado pelas harmonias do Four Freshman e as gravações de sua banda procuravam reproduzir a excelência vocal de seus mentores. As letras refletiam a dinâmica e a experiência de ser adolescente na Califórnia, usando as gírias e os jargões das ruas e das praias, especialmente as adotadas pelos surfistas.

O impacto causado pelos Beach Boys foi enorme dentro na indústria fonográfica. Por causa deles, Los Angeles tomou o lugar de Nova York como o principal foco produtor de música pop nos Estados Unidos. Novos estúdios foram criados e os melhores músicos do país, muitos deles que trabalhavam com Phil Spector, foram para a terra do sol na Costa Oeste. Dentre eles, Hal Blaine, Leon Russell, Glen Campbell, Carol Kaye, Larry Knechtel e muitos outros. Essa turma de virtuosos, batizada de The Wrecking Crew, tocou em inúmeros hits de diferentes artistas ao longo dos anos. Mas esse pessoal se uniu em Los Angeles a princípio para participar de gravações de surf music.

Ninguém usou com tanta propriedade os serviços do The Wrecking Crew como a dupla Jan and Dean. Jan Berry e Dean Torrance já gravavam desde o fim dos anos 50, tendo hits na linha do doo wop como "Baby Talk" e "Jenny Lee". Mas, depois de tocarem juntos em um show com os Beach Boys, tudo mudou. A turma de Brian Wilson era fã de Jan and Dean e deu a dica de que a surf music agora era literalmente a onda mais poderosa. Isso não era problema: Jan e Dean eram os típicos garotões dourados da Califórnia - loiros, malhados e ainda por cima surfistas. Em 1963, lançaram o LP Jan and Dean Take Linda Surfing, que tinha a participação dos Beach Boys. Brian Wilson deu para a dupla a música "Surf City", que se tornou um mega hit em 1963 e se tornou um dos hinos do movimento. Jan and Dean exploraram a surf music por mais um tempo e as técnicas de produção de Jan até influenciaram Brian Wilson. Mas, assim como os Beach Boys, Jan and Dean logo partiram para outras searas musicais.

O ano de 1963 marcou o apogeu da surf music. As paradas eram dominadas por bandas como The Chantays ("Pipeline"), The Surfaris ("Wipe Out"), The Pyramids ("Penetration") e The Challengers ("K-39"), além dos já consagrados Beach Boys e Jan and Dean. Em Hollywood, Frank Avalon e Annette Funicello estreavam filmes que eram uma enorme propaganda para o estilo de vida praieiro da Califórnia. Dick Dale inclusive apareceu no primeiro deles, A Praia dos Amores. O resto dos Estados Unidos também se deixou levar pela mania. Bandas como The Astronauts (Colorado), The Rivieras (Indiana) e The Trashmen (Minnesota) vinham de locais onde o surf não era praticado. Em Los Angeles, havia a chamada "máfia da surf music". Eram músicos e produtores que tocavam em bandas intercambiáveis - a equipe que participava das gravações não mudava, mas os nomes, sim. Terry Melcher e Bruce Johnston formavam a dupla Bruce and Terry e também foram responsáveis pelo grupo "fantasma" The Rip Chords. Johnson, é claro, mais tarde se tornou um dos Beach Boys. Steve Barri e P.F. Sloan também eram prolíficos hitmakers por trás de grupos de estúdio, sendo que o mais famoso deles foi o Fantastic Baggys, do hit "Tell Them I'm Surfin'''. Também na Califórnia, o selo Del-Fi possuía um vasto cast de nomes da surf music e lançou The Lively Ones, The Centurions e The Bobby Fuller Four. Antes de se tornar conhecido, Frank Zappa fez várias gravações de surf music pelo selo.

Quando os Beatles invadiram os Estados Unidos em 1964, obviamente a surf music sofreu em popularidade. O estilo ainda produzia hits como "I Live for the Sun" (do Sunrays, banda produzida por Murray Wilson, pai de três dos Beach Boys) e a nostálgica "New York Is a Lonely Town" (The Trade Winds). Mas o mercado pedia uma nova adaptação. A surf music então deu vez à chamada hot rod music, cujo som era similar à surf music e tocado pelos mesmos artistas. Só que agora o tema eram carros e autoestradas. Os Beach Boys também entraram nessa. Mas, aos poucos, influenciados pelos Beatles, Byrds e Rolling Stones, muitos praticantes de surf music deixaram o cabelo crescer e foram tocar coisas diferentes como folk rock e garage rock. Quando lançaram o sofisticado e introspectivo Pet Sounds em 1966, os Beach Boys já não eram nem de longe uma banda de surf music.

Em 1967, o rock tinha mudado e a surf music original era coisa do passado. Surfistas eram considerados caretas e a contracultura que orbitava as praias estava mais interessada em drogas, misticismo oriental ou então em uma vida mais natural. A trilha sonora agora era a música psicodélica. O Monterey Pop Festival foi simbólico. O evento, que aconteceu em junho de 1967, foi a maior manifestação da contracultura até então. Os Beach Boys tinham sido convidados para participar, mas deram para trás na última hora, decepcionando o público e os organizadores. Uma das grandes estrelas de Monterey foi um guitarrista chamado Jimi Hendrix, que era canhoto como Dick Dale. Hendrix tinha acabado de gravar uma música chamada "Third Stone from the Sun", cuja letra dizia: "E vocês nunca mais vão ouvir surf music novamente". Até hoje isso gera polêmica. Alguns acharam que Hendrix anunciava o fim da era da surf music original, o que de certa forma era verdade. Já Dick Dale diz que a frase na verdade é uma citação a ele, já que o pioneiro enfrentava problemas de saúde e Hendrix no caso lamentava que ele eventualmente não pudesse tocar mais.

Depois do fiasco de Monterey, os Beach Boys voltaram à surf music em 1968 com a retrô "Do It Again". A partir dos anos 70, eles não se importaram em embarcar numa viagem nostálgica sem volta, ficando marcados como embaixadores do sol e das praias da Califórnia.

Nos anos 70, a surf music original tinha ficado para trás. Mas a cultura do surfe continuava muito viva. Os praticantes do esporte não ouviam mais as guitarras de Dick Dale ou as harmonias vocais dos Beach Boys. Estavam mais interessados em sons mais contemporâneos. O reggae, por exemplo, foi um estilo que começou a ser adotado pelos surfistas, seduzidos pelo jeito zen e cuca fresca e as boas vibrações da música da Jamaica. E a surf music ironicamente também influenciou o punk. Os Ramones eram grandes fãs do som clássico dos anos 60 e as versões que fizeram para "Surfin' Bird", do Trashmen, e "California Sun", do The Rivieras, eram uma justa homenagem ao estilo.

Já não existia mais "música de surf" e sim "música para surfista". Assim, qualquer som que era abraçado pela tribo surfista era também chamado de surf music. O esporte sempre foi muito forte na Austrália. A música vinda de lá nos anos 80 ultrapassou as barreiras locais, teve sucesso mundial e começou a ser chamada de surf music. As duas bandas de maior sucesso foram Spy vs Spy e o Midnight Oil. O som deles não tinha nada a ver com as guitarras reverberantes da surf music clássica dos anos 60. A fórmula sonora das bandas, que por sinal tinham o mesmo empresário, juntava ska, punk, pub rock e som alternativo. As letras tratavam de assuntos como racismo, questões políticas e também falavam de ecologia e destruição do meio ambiente. O Midnight Oil, que estourou em 1987 com álbum Diesel and Dust (que trouxe o hit "Beds Are Burning") ficou famoso por seu ativismo, chegando a fazer shows para levantar fundos para o Greenpeace.

O rock alternativo do final dos anos 80 e começo dos 90 também bebeu discretamente da surf music. Os Pixies, por sinal, eram fãs - não foi por coincidência que um dos seus principais discos se chamou Surfer Rosa. Mas o som da surf music clássica dos anos 60 nunca foi embora. Jon and The Nightriders, The Surf Raiders, The Bel-Air Bandits e Jeffrey Foskett foram alguns dos revivalistas que a partir dos anos 70 e 80 foram muito importantes em resgatar a essência dos anos 60. The Bel-Air Bandits se tornou a banda de apoio de Jan and Dean e Foskett foi acompanhar os Beach Boys e depois Brian Wilson, com quem está até hoje. Grupos mais recentes como Man or Astro-man?, Los Straitjackets e The Mummies procuram resgatar a sonoridade dos pioneiros, mas com um ar kitsch e irônico. Em 1993, a trilha sonora do filme Pulp Fiction - Tempo de Violência resgatou vários clássicos da época de ouro da surf music. O diretor Quentin Tarantino usou "Miserlou", de Dick Dale & The Del-Tones, na abertura do filme. Apesar de o filme não falar de surfe, as canções deram a atmosfera à trama. O CD da trilha sonora ganhou disco de ouro e despertou novamente o interesse pelo gênero. Várias bandas dos anos 60 se reformaram e selos como Rhino e Sundazed lançaram em CD gravações há muito tempo fora de catálogo.

Com o passar do tempo, a definição mudou novamente. A surf music - ou, no caso, música para surfistas e simpatizantes - agora é definida por baladas pop/ folk semiacústicas, relaxantes e de baixas calorias praticadas por gente como Jack Johnson, seu discípulo Donavon Frankenreiter, Jason Mraz e Colbie Caillat. A música desses novatos não fala necessariamente da prática do surfe, mas exalta o mar, a natureza, a defesa do meio ambiente e as "coisas boas da vida".

Jack Johnson é um caso interessante. Ele nasceu no Havaí, onde surgiu o surfe. Começou a praticar o esporte com 5 anos de idade e tinha uma carreira promissora pela frente, até que um acidente o tirou de circulação e o afastou das pranchas. Depois, Johnson foi estudar na Califórnia, onde começou a se interessar por música. Ele também milita em organizações que procuram defender o meio ambiente. Johnson, assim, faz uma ponte entre os dois mundos onde a cultura do surfe fincou bandeira. A identificação de um baladeiro cuca fresca como ele com o que é chamado de surf music é a prova de que nestes 50 anos o estilo mudou radicalmente.