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O Fim do Tibete

Por Joshua Kurlantzick Publicado em 15/04/2008, às 20h11 - Atualizado às 20h17

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Monge caminha em Lhasa, em frente ao Palácio Potala - que já foi sede do governo tibetano - Eugene Hoshiko/AP
Monge caminha em Lhasa, em frente ao Palácio Potala - que já foi sede do governo tibetano - Eugene Hoshiko/AP

A pequena sala de concreto cheira a urina. No canto, uma jovem está deitada em um catre de metal, gemendo baixinho e vomitando sangue. Ex-monja budista, ela se recupera de uma operação no estômago feita para curar ferimentos internos causados pelas surras aplicadas por guardas chineses. Sua colega de quarto, Lhundrub Zangmo, fala em um sussurro monótono. A cabeça não está mais raspada e seus cabelos lisos caem sobre um suéter justo, onde se lê: The Coolest Boy. Embora tenha deixado o clero, Zangmo permanece profundamente religiosa. Nas paredes do ínfimo quarto, algumas fotos de divindades budistas.

Faz poucos meses desde que ela e sua amiga fugiram do Tibete a pé através do Himalaia para esse local na Índia que abriga refugiados tibetanos. As duas foram presas juntas com um grupo de outras monjas, algumas por até 16 anos. Elas foram detidas pela primeira vez em 1990, por encenarem um protesto em Lhasa [capital do Tibete], para demonstrar sua indignação com a presença contínua da China em sua terra natal. À medida que as mulheres cantavam "Liberte o Tibete", a polícia movia-se rapidamente, levando-as antes que atraíssem a atenção. Dentro da prisão, uma rotina brutal as esperava. "A polícia colocou bastões elétricos em minha vagina e pendurou-me no teto", Zangmo conta calmamente. A voz não treme, mas ela olha para o lado: "Fiquei totalmente apavorada".

A polícia acabou transferindo as mulheres para Drapchi, a mais temida prisão de Lhasa. De acordo com organizações de direitos humanos, como a International Campaign For Tibet, existem centenas de prisioneiros políticos no Tibete, a maioria budista. Um grande número morreu devido às diferentes técnicas de tortura utilizadas pelas autoridades: choque elétrico, enforcamento, 'doação' forçada de sangue... "Eles tentaram arrancar meus braços, bateram em minhas pernas com barras de metal e aplicaram choques.", relembra Phuntsog Nyidron, outra religiosa que cumpre pena em Drapchi. "Eles podiam me matar facilmente." Depois de repetidas surras, um monge chamado Lobsang Choephel enforcou-se. E a punição era mais severa para os que se recusavam a desistir da fé. "Aconteceram inúmeras demonstrações em Drapchi", conta Zangmo. Um dia, quatro monjas recusaram-se a renunciar a crença budista na frente dos guardas chineses. "Foram surradas até a morte", Zangmo encara o chão e começa a chorar, a voz falha... "Morreram juntas."

Antes que lugares como Drapchi existissem, Lhasa era capital de um reino remoto, onde uma longa linhagem de Dalai Lamas presidia uma civilização repleta de espiritualidade, perpetuada em mais de seis mil mosteiros e protegida pelas montanhas, cobertas de neve, do Himalaia. Os tibetanos construíram uma cultura mística e distinta. "Tibetanos são os únicos seres no planeta que têm a vida inteiramente dedicada ao budismo", explica Robert Thurman, o mais famoso estudioso do Tibete nos Estados Unidos. Desenvolvendo a veneração das coisas vivas, eles também preservaram o mais alto ecossistema da Terra, que contém biodiversidade na escala da Amazônia. "É um dos mais importantes meio ambientes do mundo", ressalta Thurman.

Preservados e afastados do mundo, os tibetanos criaram uma religião de rituais transcendentais e estruturas monumentais. Ainda hoje, o reluzente Palácio Potala, lar de gerações de líderes espirituais, eleva-se sobre o moderno horizonte de Lhasa. "O palácio possui a aparência e a percepção que nenhuma outra construção do planeta tem", escreve o notável ensaísta Pico Iyer, que visita o Tibete freqüentemente. Mas bem mais extraordinário é seu significado: o Potala é responsável pelo único sistema no qual os administradores são monges, encontros políticos incluem preces e a lei e a ordem estão nas mãos de um clero meditativo.

A devoção tibetana está centrada no Dalai Lama, a quem consideram um Deus vivo. Como nota Thurman, a conexão espiritual do Dalai com o seu povo é tão grande que, para seus seguidores, é como se Jesus ainda estivesse na Terra. Em um mundo moderno cheio de guerras e desejos de consumo, o atual Dalai Lama - que vive exilado em Dharamsala (Índia) desde que a China tomou o controle do Tibete (em 1959) - tornou-se um ícone mundial, inspirando milhões de pessoas no distante Ocidente. "Com o declínio qualitativo dos grandes líderes, o Dalai Lama tornou-se ainda mais importante", aponta Robert Barnett, especialista em Tibete da Universidade de Columbia. "Ele é um dos poucos líderes moralmente inspiradores que restaram."

Mas o tempo do Tibete pode estar se esgotando. Na década passada, a China empreendeu uma guerra quieta, silenciosa, mas implacável, contra essa sociedade, como parte de uma deliberada e sofisticada campanha para despir o "Teto do Mundo" de qualquer vestígio de autonomia espiritual ou política. Beijing [Pequim, capital da China] tem substituído os monges do Tibete - o centro do poder - por seus líderes-fantoches, torturando e matando aqueles que se recusam a submeter-se às autoridades chinesas. Além disso, o governo chinês encheu o Tibete com milhares de imigrantes que ganharam o controle dos negócios locais, levando muitos nativos à pobreza e à prostituição. E enquanto os tibetanos tornam-se cada vez mais impotentes na própria terra, a China tem mantido 'desnecessárias e longas' conversações com o Dalai Lama, fazendo com que os seguidores de seu Deus-líder o acusem de estar se dobrando diante do inimigo.

Cada vez mais, os jovens tibetanos rejeitam o compromisso do Dalai Lama com a paz, engajando-se em táticas de militantes palestinos. Em uma incisiva ruptura com seu passado, rebeldes invadiram embaixadas chinesas e até mesmo cortaram gargantas de imigrantes, jogando corpos pelas ruas de cidades rurais como um aviso para todos aqueles que são vistos como colaboradores de Beijing. "Não tenho esperanças para o futuro", diz Lhasang Tsering, um dos mais famosos ativistas do Tibete. Estamos conversando em sua casa, em Dharamsala, onde ele vive desde que escapou do Tibete, há mais de duas décadas. "O tempo está se esgotando", dispara. "Todo dia, enquanto rezamos pela Paz Mundial, caminhões cheios de chineses vão chegando a Lhasa e trens - lotados de recursos tibetanos - saem de lá. Uma vez que os chineses tenham a terra para eles, talvez criem algumas reservas étnicas para os tibetanos, da mesma forma como os Estados Unidos têm reservas indígenas." Tsering coloca a cabeça entre as mãos. Olho para o lado. Quando retorno o olhar, seus ombros estão tremendo, ele não pára de soluçar. Até o próprio Dalai Lama, eternamente otimista com relação à terra natal, não consegue evitar o medo do futuro. "Este é um período crítico para o Tibete", ele me diz, em Nova York. "Não sabemos o que vai acontecer." Isso, em resumo, pode ser o fim dessa cultura meditativa. Como o Dalai Lama advertiu seu povo: "Estamos encarando nossa própria extinção".

Quando a china anexou o Tibete em 1959, barbarizou o país, soltando os soldados do líder Mao [Tse Tung] para destruir e bombardear mosteiros e matar mais de um milhão de pessoas. Milhares foram executados; muitos mais morreram de fome - forçados a sobreviver com um insosso mingau de cascas e folhas. "Seus corpos incharam", um monge idoso relembra... "Depois, à medida que as semanas passaram, eles foram morrendo". Mas a estratégia dos chineses falhou em tentar destruir a identidade cultural do Tibete. No fim dos anos 80, tibetanos cansados da opressão começaram a reagir lutando pela independência. Hu Jintao, burocrata do partido comunista chinês com penteado à Elvis Presley, impôs a lei marcial, enviando milhares de soldados para confinar o Tibete. Mas as táticas só ajudaram a trazer apoio internacional para a causa tibetana.

Em 1989, o Dalai Lama recebeu o Prêmio Nobel da Paz e o empenho de seu povo atraiu artistas ocidentais e políticos, gente tão diversa quanto o ator Richard Gere, o músico Adam Yauch (dos Beastie Boys) e o Congresso dos Estados Unidos, que condecorou o líder espiritual com uma Medalha de Ouro. Embora o governo dos Estados Unidos reconheça oficialmente o Tibete como parte da China, pressionou Beijing a frear suas violações aos direitos humanos. Gregory Craig, enviado especial à região na administração de Bill Clinton, lembra uma reunião na qual Madeleine Albright, a então Secretária de Estado, confrontou Jiang Zemin, então presidente da China, com uma lista de prisioneiros políticos tibetanos. Jiang não ficou nada satisfeito. "Ele começou um discurso de 20 minutos ou mais sobre o papel da religião na China", Craig recorda-se. Hoje, no entanto, o país adotou uma postura mais sutil em relação ao Tibete. Seu novo presidente, Hu Jintao, o oficial de topete Elvis que impôs lei marcial ao Tibete, ficou mais esperto.

Ele sabe que repressão pesada desencadeia protestos mundiais e incentiva dissidências. Ele também cobiça os bilhões de barris de petróleo recentemente descobertos na região, recursos que poderiam ajudar a abastecer a rápida industrialização de uma China carente de energia. Beijing, então, está encenando uma nova política, que chama de 'segurar com as duas mãos' - cooptando tibetanos enquanto silenciosamente elimina os que ainda exigem liberdade. Em vez de colocar soldados na rua e estourar mosteiros, Jintao começou a minar a essência da identidade tibetana: o "ser monge".

No Tibet, monges idosos conhecidos historicamente por Lamas, conduziram tanto a autoridade espiritual e secular, na essência, quanto dirigiram o Estado, enquanto delinearam princípios a serem seguidos por sua sociedade. Em Lhasa, mulheres idosas ainda caminham em círculos em volta da cidade sagrada, todas as manhãs, rezando em um coro murmurante pela saúde do Lama. Um dia, observo alguns peregrinos prostrados diante de um monge ancião. Mulheres empurram seus parentes doentes para perto do Lama, desesperadas por uma oração de cura. "Para os mais velhos, a vida está diretamente ligada aos seus líderes espirituais", diz um tibetano cuja mãe idosa passa os dias andando em volta de Lhasa, orando. "Eles seguem os monges a qualquer lugar."

A China anunciou, enfim, tolerância ao budismo. A Capital forneceu fundos para a restauração do Palácio Potala e abriu mosteiros para os turistas. Mas, do outro lado da cidade, um monge idoso vivendo em uma cabana de terra caindo aos pedaços descreve o que realmente acontece por lá. "Seguranças à paisana estão por todo o mosteiro. Não há sequer um momento em que os monges se reúnam e que não estejam sendo vigiados. Os chineses impõem campanhas patrióticas, e todo monge é obrigado a renunciar ao Dalai Lama." Como muitos dos tibetanos com quem conversei, o monge pede que seu nome não seja citado, por medo das represálias. Os agentes de segurança pública restringem o contato ou interação com estrangeiros. "Quando eu cheguei aqui, não era ilegal falarmos com visitantes", ele conta. "Agora é."

Dentro dos mosteiros, autoridades dominam a educação dos novos monges, barrando e impedindo que garotos tornem-se Lamas e estabelecendo severos limites ao número de estudantes. Comitês administrativos, compostos por oficiais chineses, controlam as atividades monásticas e (des)doutrinam os monges com a ideologia chinesa. "Os monges nunca se recuperarão", diz um Lama. "Não conseguimos ter jovens suficientes estudando nos mosteiros. O conhecimento tradicional está se desvanecendo e poderíamos até desaparecer, morrer. Em 20 anos, o que restará?" Um outro monge é bem mais direto: "Este é o fim de toda a nossa sociedade religiosa", desabafa.

Graças às novas táticas implementadas por Hu Jintao, o ataque sistemático aos monges tem recebido pouca atenção fora do Tibete. "A China foi muito esperta e prática ao criar uma fachada de liberdade social e política", conta um ativista dos direitos humanos que também pede para não ser identificado. "Eles não estão por lá rachando cabeças de monges, do jeito que faziam nos anos 80." Mas muitos tibetanos acreditam que os chineses continuam a fomentar a violência contra os que desafiam Beijing.

Na noite de 4 de fevereiro de 1997, monges no complexo central do Dalai Lama, em Dharamsala, traduziam escrituras tibetanas em uma sala decorada com cortinas douradas. Enquanto trabalhavam, seis homens armados com facas entraram, atacando os tradutores. Os assassinos cortaram a garganta de Lobsang Gyatso, um ancião e amigo próximo do Dalai Lama, esfaqueando-o de maneira tão selvagem que o sangue respingou nas paredes. Embora o complexo tenha objetos de valor inestimável, os assassinos não levaram nada. A polícia hindu jogou o assassinato nas costas de Dorje Shugden, obscuro budista tibetano da seita que se opõe ao Dalai Lama, sendo que muitos tibetanos crêem que ele receba suporte financeiro camuflado da China. "Monges que seguem Shugden ganham promoções", diz outro monge, "recebem ajuda para seus mosteiros."

No centro da campanha chinesa para 'minar' os monges tibetanos está o Panchen Lama - o líder que ocupa o segundo lugar na hierarquia, logo depois do próprio Dalai Lama. O Panchen não só possui enorme poder na sociedade tibetana, mas também ajuda a selecionar o novo Lama quando o Dalai anterior falece. O Panchen é escolhido através do processo ancestral de reencarnação, no qual a alma do monge falecido é descoberta em um jovem garoto. Essa tradição única de identificar reencarnações é essencial ao poder dos Lamas - tibetanos acreditam que, no renascimento, a própria alma do Buda segue vivendo em seus líderes.

A procura de um novo Panchen pode levar anos. Para encontrar o garoto predestinado, monges percorrem toda a paisagem irregular do Tibete, consultam oráculos, interpretam visões e sinais celestes ou recorrem às águas do lago Namtso, uma piscina azul-turquesa elevada e empoleirada no Himalaia. Os monges podem se encontrar com milhares de crianças antes de identificar uma. No último teste, entregam à escolhida objetos pessoais do Panchen falecido. Se ela for realmente sua reencarnação, reconhece os pertences como seus.

Por séculos, o Tibete seguiu essa tradição ancestral para encontrar seus líderes. Mas em 1989, o ano em que Hu Jintao impôs a lei marcial, o décimo Panchen Lama morreu de uma misteriosa doença - contraída logo após criticar em público o governo chinês. Muitos tibetanos acreditam que ele foi envenenado, mas Beijing nunca permitiu investigação sobre sua morte.

De repente, a China tem a chance de tomar o controle do budismo tibetano. Tudo que Beijing teve que fazer foi selecionar seu próprio Panchen. Depois, quando chegasse a hora, ele escolheria um boneco Dalai Lama, em dívida de gratidão com as autoridades chinesas. E o supremo líder espiritual do Tibete responderia diretamente a Beijing.

A história completa da seleção do novo Panchen Lama nunca foi contada. Mas um monge idoso que tomou parte na escolha, Arjia Rinpoche, saiu do Tibete em 1998 e agora vive exilado nos Estados Unidos. Quando o localizei no ano passado, descobri que havia escrito memórias não-publicadas, nas quais descreve o papel da China nessa escolha. Embora nenhum escritor tenha lido o manuscrito, o Arjia concordou em deixar-me folheá-lo. Foi entregue a mim por um courier, em um envelope, como um documento da inteligência dos velhos tempos. Em pilhas de páginas, Arjia conta sua história de vida. Quando o procurei, ele falou por horas, como alguém que aguardara anos para revelar-se. E voltava sempre a uma mesma data: 29 de novembro de 1995.

Cedo naquela manhã, Arjia e outros monges estavam abrigados dentro do Jokhang, o templo mais sagrado de Lhasa. Lanternas tremeluzentes iluminavam seu interior e lançavam sombras nas faces afetadas dos guerreiros-divindades pintados nas paredes. Fumaça de incenso flutuava em ascendência pelo templo. As divindades ficaram guardando uma pequena urna de ouro em uma mesa coberta com seda amarela. Como é tradição no Tibete, monges vestidos com longos robes cercavam a urna. Mas em um alarmante corte no passado, a própria urna foi trazida pelos chineses - e junto aos monges estava uma delegação de oficiais de Beijing, vestidos com brilhantes ternos modernos. Os lamas entreolhavam-se nervosamente.

A cerimônia poderia determinar o destino do Tibete, mas eles não vieram aqui de forma voluntária. Na noite anterior, guardas chineses levaram os monges ao Jokhang, ao longo das ruas vazias patrulhadas por soldados armados, e ordenaram que eles se preparassem para uma cerimônia. "Se alguém interromper os procedimentos", um oficial advertiu, "este será punido sem misericórdia". Com a manhã aproximando-se, com policias chineses disfarçados pelas esquinas, os monges começaram a seleção do Panchen Lama. Todo lama idoso sabia que essa cerimônia não deveria estar acontecendo. De acordo com a tradição tibetana, a seleção já fora realizada. Desde que o Panchen anterior morreu, vários monges líderes trabalharam secretamente com o Dalai para conduzir uma busca seguindo, cegamente, as velhas tradições. Depois de anos procurando sinais, identificaram Gedhun Choekyi Nyima, um menino de uma família de pastores de Lhari, uma região centro-leste do Tibet. Em 14 de maio de 1995, o Dalai Lama reconheceu Nyima como o décimo primeiro Panchen Lama.

Beijing reagiu furiosamente. Antes que Nyima pudesse aparecer em público, forças de segurança chinesa sequestraram o garoto e o levaram a Beijing. Em seguida, oficiais convocaram monges para uma reunião de emergência no início de novembro de 1995 e ordenaram que denunciassem o Punchen do Dalai Lama. Quando os monges fizeram o que fora ordenado, frente às câmeras de TV, cada um recebeu U$ 1.250 - uma fortuna em um país em que a renda per capta anual é menos de 500 dólares. Quando Arjia Rinpoche tentou sugerir que a China aceitasse Nyima, foi avisado para jamais mencionar esse assunto novamente.

Beijing enviou dois aviões fretados aos lugares de nascimento dos garotos que queria que fossem Panchen Lama e sumiu com todos para um esconderijo. Agora, enquanto a manhã aproxima-se em Jokhang, oficiais colocaram peças de marfim marcadas com o nome de cada candidato dentro da urna dourada. Bomi Rinpoche, o lama tibetano indicado pelo governo chinês, aproximou-se da mesa. Ele esfregou as laterais da urna, pegou um dos lotes de marfim e entregou-os a Luo Gan, um alto oficial chinês. Luo, então, leu o nome: Gyaincain Norbu, filho de seis anos de um membro do partido. Surpresa - o pequenino Norbu, por acaso, aguardava na sala ao lado, vestido com robe dourado e chapéu. Luo apertou a mão de Norbu e arriscou dizer-lhe um "Ame o país e estude duramente."

Os monges forçados a participar dessa destruição de séculos de tradições só conseguiam murmurar algumas preces, baixinho. Após Norbu ser entronado, o escritório do Dalai Lama chamou a cerimônia de inválida e ilegal. Ávidos por criar a ficção de que o mais alto líder religioso do Tibete endossou seu novo Panchen, oficiais chineses pediram a Arjia Rinpoche para ser o tutor de Norbu. "Ofereceram-me uma Mercedes e uma posição privilegiada no governo", relata Arjia. Beijing também pressionou monges mais simples a mostrar respeito a Norbu. Apenas nove dias após a escolha, oficiais chineses trouxeram Norbu para outro monastério do Tibete. Alçaram o pequenino Panchen ao imenso trono e reuniram centenas de monges em frente ao garoto. "O garoto sentado ali e todos nós juntos tendo de nos prostrar diante dele", relembra Arjia, com sua voz fraca e envergonhada. "Supostamente é uma ocasião de muita felicidade, mas ninguém sorriu."

Norbu serviu a seu propósito. No primeiro grande evento internacional, uma conferência de budistas presidida na China, o menino exaltou Beijing. "A sociedade chinesa", declarou, "proporciona um ambiente favorável à crença budista." Aparecendo na frente de toda a mídia, acrescentou: "Não teríamos alcançado todos esses progressos e realizações sem a boa liderança do Partido Comunista Chinês." Monges que se recusaram a aparecer em público ao lado de Norbu foram ameaçados de expulsão dos mosteiros, um soco fatal na sociedade tibetana.

Pouco depois da conferência budista, localizei um dos poucos estrangeiros agraciados com uma audiência com Norbu, um negociante americano chamado Laurence Brahm, que tem ótimas relações tanto com os lamas tibetanos quanto com oficiais chineses. Segundo Brahm, Norbu deu eco à voz do governo chinês, conclamando "tibetanos exilados a voltarem e ajudarem o Tibete." Norbu também questionou Brahm sobre o cristianismo, talvez para entender melhor como o Ocidente reagiria aos movimentos da China no Tibete. Com o atual Dalai Lama aproximando-se de seu 72º aniversário, o Panchen está perto de ter um importante papel no futuro do budismo tibetano. Beijing já criou um comitê informal para escolher um novo Dalai Lama, com Norbu para aprovar essa escolha. "Os chineses pensam que vão escolher seu próprio Dalai Lama", diz o monge Arjia.

Nyima, o Panchen escolhido pelo Dalai nesse meio tempo, sumiu. Em abril do ano passado, Asma Jehangir, um enviado especial da ONU [Organização das Nações Unidas] pela liberdade da religião, expressou sua preocupação ao governo chinês com relação ao paradeiro do menino. Beijing recusou-se a apresentar Nyima, mas informou a Jehangir que "ele estava levando uma vida feliz e normal". Outros diplomatas estrangeiros receberam recusas parecidas. Em uma viagem à China, o ex-Secretário-assistente de Estado norte-americano Harold Koh, pediu uma audiência com Nyima. "Disseram que ele estava bem", Koh contou aos repórteres. Quando pediu para ver o menino, eles acrescentaram: "Isso não é necessário."

Informações sobre Nyima continuam imprecisas e seus movimentos são coordenados firmemente. Mas as histórias circulam. De acordo com tibetanos que viajaram à cidade natal de Nyima, a criança continua sob guarda em Beijing, levando uma vida triste e subterrânea de prisioneiro político. Oficiais chineses, eles acreditam, às vezes o contrabandeiam para o Tibete para que possa encontrar seus familiares, mas as visitas nunca são anunciadas, talvez por medo de que os tibetanos reúnam multidões para cultuar o Deus-menino "escolhido". Um tibetano forneceu-me o que me garantiu ser a foto de Nyima, que obteve de fontes próximas da família do garoto. O instantâneo mostra um menino com cara de lua e cabelo curto. Está sentado em uma cama simples. Ele encara a câmera com seu rosto triste e olhos arregalados.

Em uma manhã seca e clara, subo ao alto do Palácio Potala. Olhando fixamente o centro de Lhasa, vejo uma cidade em nada parecida com a de 20 anos atrás, quando vendedores tibetanos se reuniam todas as manhãs nos mercados a céu aberto para pesar pedaços de queijo e carne vermelha de Iaques [os bois do Tibete]. Peregrinos com longas capas adornadas com faixas enrolavam uma espécie de rosário de continhas em suas mãos, murmurando orações ou mantras enquanto circundavam Jokhang. Naquele tempo, nômades tibetanos, usando pele de carneiro, muitas vezes entravam a cavalo em Lhasa, conduzindo seu rebanho de Iaques.

Hoje, Lhasa cresce rapidamente. No centro moderno da capital tibetana, operários constróem novas avenidas alinhadas com bancos chineses, lojas de departamentos e até restaurantes de fast-food. Pelas vias mais importantes da cidade, circulam frotas de táxis e ônibus chineses de excursão. Nas ruas secundárias, que ganharam novos edifícios, imigrantes recentes da província chinesa de Sichuan estão amontoados em hot pots [restaurantes de prato feito] de quatro mesas, onde usam hashis para pegar verduras e pedacinhos de carne em panelões de óleo fervente polvilhados com a forte pimenta de Sichuan. Os que têm mais dinheiro dirigem-se aos novos salões de chá nos andares mais altos dos hotéis.

Com Lhasa sendo reconstruída, os tibetanos são empurrados para as periferias - em novos zoneamentos da cidade, não encontro nenhum loja de donos tibetanos. E o passo dessa mudança só tende a crescer: no último verão, a China inaugurou a primeira linha de trem para o Tibete, um passo que, espera-se, vai inundar esse território com, no mínimo, 800 mil imigrantes e turistas todo o ano. Essa impetuosa mudança não é acidental. "O governo tem uma estratégia para encorajar mais empresários chineses a se estabelecerem aqui no Tibete, de tal maneira que seja fácil controlar os tibetanos", admite um ex-oficial chinês (embora a embaixada tenha evitado comentar, muitos oficiais do governo fizeram declarações com a condição de ficarem anônimos). Beijing tornou mais fácil para imigrantes conseguirem residência no Tibete - a região que recebe mais subsídios entre todas as províncias chinesas. O dinheiro deslanchou o crescimento e criou uma prosperidade - que, em geral, só beneficia os chineses. De acordo com um antigo oficial, os burocratas do governo convencem os tibetanos rurais a desistir de sua terra, prometendo dar a todos eles propriedades na cidade. "Mas eles jamais compensam os tibetanos, de forma alguma", o oficial explica. Em vez disso, o governo entrega a terra aos empreendedores chineses, incentivando com empréstimos para ajudá-los a começar suas próprias companhias. "Os negócios tibetanos estão simplesmente sendo dominados pelo imigrante chinês", diz um proeminente nativo do Tibete.

Embora Beijing oficialmente negue o rápido influxo chinês, um alto oficial do governo admitiu recentemente à imprensa que, em breve, "os tibetanos serão minoria em Lhasa".

Ao mesmo tempo, o governo garante o apoio de oficiais da província, pagando-lhes os maiores salários de toda a China. "O governo está abrindo mais espaço para a corrupção no Tibete", diz Lukar Jam, especialista em política de desenvolvimento chinês, que vem trabalhando para o governo tibetano no exílio. "Os oficiais tibetanos aceitam as políticas de Beijing porque vêem que haverá benefícios significativos para a região." Enquanto imigrantes chineses vão tomando a cidade, a cultura tradicional do Tibete virou um show à parte.

Em um sábado à noite, visito um clube na parte alta de Lhasa. O lugar está entulhado de executivos, alguns pagando o equivalente a cinqüenta dólares cada - uma fortuna na região - para ter camarotes privados, com ótima visão de palco. Às 23 horas, tibetanos vestidos em peles fake de carneiro, sobem ao palco. A mídia chinesa em geral descreve o Tibete com uma terra selvagem e os artistas fazem o melhor possível para reforçar o estereótipo, estufando seus peitos nus e batendo em tambores enquanto cantam e sacodem seus negros cabelos compridos - uma dança tradicional 'incrementada' para a multidão. Máquinas de fumaça e luzes iluminam seus corpos contorcidos, enquanto caixas de som imensas tocam canções tibetanas tradicionais, reescritas com letras em chinês com batida... de hip-hop. Quando os homens terminam, vocalistas femininas dançam na borda do palco, requebrando os quadris e despejando doses generosas de álcool na garganta de alguns clientes mais sortudos. Turistas chineses e homens de negócio bebem mais ainda e penduram tradicionais lenços brancos no pescoço dos cantores favoritos. Perto de meia-noite, os membros da platéia mais bêbados já subiram ao palco para tentar entoar canções junto com os artistas e fingir que rezam como tibetanos devotos.

Fora do clube, a política chinesa foi bem-sucedida em empobrecer o tibetano. Com suas terras roubadas e sem condição de competir com os chineses, eles agora sofrem com a maior taxa de pobreza da China, além dos altos índices de desnutrição e mortalidade infantil. Jovens não conseguem empregos e muitos tornam-se moradores de rua. Em uma planície cheia de ervas, no arredor de Lhasa, à sombra de um dos mosteiros mais importantes da cidade, encontro um agrupamento de cabanas cercado de pilhas de lixo. Monges com túnicas em trapos cobertos de sujeira vão de cabana em cabana, implorando por uma moeda. Mulheres circulam entre o campo, tentando atrair homens para um programa. A prostituição floresce em Lhasa. Estimativas nos dizem que existem perto de 10 mil trabalhadoras do sexo na capital tibetana, em uma população menor que 500 mil pessoas.

No dia seguinte, perambulo pelo centro da cidade. Às quatro da manhã, prostitutas espalham-se pelas ruas. Ao longo de uma viela estreita ao lado de um dos mais sagrados templos do budismo tibetano, jovens usam botas altas cobrindo o joelho, sutiãs wonderbra e tanta sombra nos olhos que parecem um clone maléfico de Courtney Love de ressaca. As garotas, não mais do que adolescentes, exibem-se nas janelas dos bordéis. À medida que homens tibetanos e chineses passam por ali, elas correm para fora tentando arrastá-los. Dentro de um bordel - uma cabana de concreto e metal com grandes vitrines expondo o salão principal como se fosse um aquário - uma garota de uns 14 anos toma minha mão e me leva para os fundos. Surras estão visíveis em sua barriga exposta sob o top. Não há nada nas paredes e o piso de concreto está cru, a não ser por pequenas lajotas deterioradas de linóleo. A garota aponta para a cama e me oferece sexo por US$ 10. Quando me solto, ela esconde seus pequenos seios e baixa o preço: US$ 5.

No maior bulevar perto dos bordéis, homens chineses e tibetanos saracoteiam por um labirinto de sex shops vendendo vibradores, seios infláveis e outros brinquedos sexuais. Alguns compram remédios de ervas, alguns que funcionam como o Viagra. Outros passeiam pelas pequenas lojas de conveniência, vendendo pacotes com seis latas de cerveja. Atrás das lojas, bebedores mais exagerados já desmoronaram no chão, as faces vermelhas, roupas manchadas de comida e fezes. Crianças tibetanas dão sonoras risadas bem ao lado dos corpos bêbados estendidos por ali. Em uma outra viela bem atrás das lojas, mais prostitutas discutem o preço com clientes. Uma garota com formas de adolescente me oferece sexo oral por meros US$ 5. Quando me afasto, reduz o preço - US$ 3, quase implorando para eu ficar. Quando sigo em frente, ela chega a guinchar com um grito doloroso e agudo.

Desde que fugiu para a índia em 1959, o Dalai Lama permaneceu a única figura capaz de evitar que seu povo sucumbisse em desespero. Para os tibetanos, o fato de ele estar vivo oferece a minguada esperança de que essa cultura não será esquecida pelo mundo. Seus escritos são contrabandeados para o Tibete e os discursos transmitidos por estações como Radio Free Asia, uma transmissora livre criada pelos Estados Unidos. Quase todo tibetano com quem conversei diz que seu maior desejo é que o Dalai Lama retorne à sua terra natal. Como demonstração definitiva de seu amor pelo Dalai, seu povo freqüentemente louva seu nome em público, mesmo sabendo que isso pode resultar em castigo cruel. "Sei que poderia ir para a prisão", diz o ex-monge que gritou bênçãos e louvores para o Dalai Lama na frente da polícia chinesa e, por isso, pagou com anos de espancamentos. "Nós jamais o esqueceremos."

No entanto, mesmo um Deus precisa morrer. Enfrentando a própria mortalidade, o Dalai Lama adotou uma aproximação que chama de "O Caminho do Meio". Em vez de exigir independência para o Tibete, como fez durante décadas, afirma que a terra é parte da China e pede apenas maior autonomia política e cultural. A China responde com calma e propõe iniciar outro diálogo sobre o futuro do Tibete. Lodi Gyari, tibetano e diplomata em Washington (que lidera os negociadores do Dalai), insiste que essas conversações são essenciais para a China. "Os tibetanos ficarão furiosos", adverte, "se seu líder morrer no exílio sem pisar no Tibete novamente". A única pessoa que pode "provê-los com essa legitimidade é o Dalai", diz Gyari. Mas muitos afirmam, em particular, que a China está apenas usando as negociações para cooptar o Dalai Lama e dar uma resposta direta à crítica internacional. Apesar de cinco rodadas de conversações, os chineses não ofereceram nada de concreto e fonte próxima dos dirigentes políticos de Beijing me diz que a China acredita que não há necessidade de fazer trato. "A visão entre os líderes da China é aquela de que o Dalai Lama ainda é um traidor", declara um estudante com laços fortes com Beijing. Até um oficial aposentado do exército americano preocupa-se com o fato de "os chineses estarem engajados no diálogo apenas para satisfazer os Estados Unidos. Na realidade, eles não têm desejo algum de fazer mais do que isso". A estratégia chinesa parece ter dado certo: Quando Hu Jintao foi aos Estados Unidos no ano passado, o Dalai Lama calmamente pediu aos tibetanos para não protestarem. "O governo Chinês foi bem sucedido em convencer o Dalai Lama a exercer algum controle sobre os exilados do Tibete", falou Tenzin Dorjee, líder estudantil do Free Tibet, importante grupo ativista de Nova York. Alguns tibetanos furiosos vão mais longe ainda, acusando o Deus-líder de inadvertidamente estar se vendendo. "Há raiva, frustração e desapontamento entre os seguidores do Dalai", diz Lhadon Tethong, cabeça do grupo de estudantes. "Não apoiamos essa linha de conciliação."

No passado, essa oposição direta ao Dalai Lama seria relegada ao ostracismo. Mas hoje em dia, tais sentimentos podem ser ouvidos por toda a comunidade de exilados em Dharamsala.

Um dia, no meio de uma chuva torrencial, tomo um chá com Tenzin Tsundue, jovem tibetano cujo ralo cavanhaque e olhar intenso davam-lhe uma impressionante semelhança com Che Guevara.

Após o Dalai Lama, Tsundue tornou-se a figura mais importante na comunidade de exilados. Negando-se a aceitar qualquer coisa menos do que a independência completa, Tsundue e seus colaboradores abandonaram a tática de aproximação pacífica do Dalai e, ao contrário, buscaram inspiração nos palestinos e em outras organizações militantes. "Os mais jovens me dizem que não querem juntar-se a protestos pacíficos", comenta. "Eles sentem que a paz não está conseguindo absolutamente nada."

Em universidades e mosteiros tibetanos, ativistas me dizem que células subterrâneas formaram-se para organizar resistência à regra chinesa. No Tibete rural, motoristas de caminhão chineses foram emboscados e mortos. "Na era da CNN e da internet", diz um associado do Dalai Lama, "jovens do Tibete sabem dos homens-bomba do Afeganistão e Iraque, e não é preciso muita ingenuidade para que um grupo de tibetanos adote essas táticas. É como um barril de pólvora. Eles vão se tornar mais agressivos", concorda Sonam Wangdu, um dos ativistas e escritores tibetanos mais respeitados da nação. "Eles estão vendo outros países, como Timor Leste, que foram capazes de conquistar sua independência. Eles atacarão, sem dúvida."

Na Índia, ativistas tibetanos invadiram embaixadas chinesas e enfrentaram guardas. Durante recente encontro entre Índia e China, um tibetano tentou imolar-se perto de um hotel de luxo em Bombaim onde Hu Jintao se hospedara. Muitos anos atrás, outro tibetano, Thupten Ngodup, ateou fogo em si e queimou até a morte. O Dalai Lama mostrou-se muito frustrado por sua mensagem de não-violência não estar alcançando os tibetanos, mas, mesmo assim, Ngodup virou mártir entre as jovens facções de tibetanos. "Auto-imolação é muito inspiradora para gente do Tibete", diz Kalsang Phuntsok, chefe do Tibetan Youth Congress, de Dharamsala. Ngodup mostrou às pessoas mais jovens que elas poderiam sacrificar-se pelo seu povo.

Com sua cabeleira cerrada, inglês afetado e terno impecável, Phuntsok parece uma versão em quadrinhos do legítimo mod inglês dos anos 60. Mas o grupo que dirige é a maior organização de exilados existente, com cerca de 15 mil membros. "É minha responsabilidade dizer a essas pessoas qual será o cenário quando o Dalai Lama não estiver mais aqui", ele me conta, batendo o punho fechado na palma da mão. Pergunto sobre o "Caminho do Meio", ele responde com um sorriso rabugento: "Estamos anulando tudo aquilo que conquistamos em 45 anos", afirma. "Estamos admitindo, em nível internacional, que nós, o povo tibetano e o Dalai Lama, estamos felizes na China. Precisamos educar os tibetanos para atacar a China. Esse, sim, é o único caminho. Se você se dispõe a morrer, não existe medo."

Tibetanos "linha-dura" estão considerando possíveis alvos, incluindo a Olimpíada de 2008 em Beijing e a nova linha de trem para Lhasa. "A ferrovia foi construída, e ficará lá", lembra Tsundue. "A menos que você a bombardeie." No entanto, a violência poderia ser favorável à China, possibilitando a Beijing denegrir os ativistas tibetanos, rotulando-os de fanáticos, violentos. "Se eles apelarem para violência", explica Robert Thurman, "toda sua legitimidade terá se acabado". Tirando vantagem da histeria que cerca a guerra ao terror, a China já reclamou que ativistas tibetanos são terroristas e está promovendo alguns exercícios antiterrorismo no Tibete. O Panchen Lama consagrado pela China é tão desprezado no Tibete que viaja cercado de guarda pesada, com medo de ser assassinado pelas próprias pessoas que o veneram.

Declarada a reencarnação do mestre anterior com apenas dois anos, o atual Dalai Lama teve que assumir a responsabilidade sobre seu povo com uma idade tenra. Normalmente, o regente governa o Tibete enquanto o jovem Dalai Lama cresce até tornar-se adulto, mas com as tropas chinesas aproximando-se da sua terra, o Dalai assumiu o poder como cabeça de estado em 1950, quando ainda era um adolescente. "Não podia recusar minhas responsabilidades. Tive de colocá-las em meus ombros e deixar a minha infância para trás."

Carregar uma nação nas costas nunca se torna fácil. Há pouco tempo, em uma manhã em Nova York, esperei pelo Dalai Lama em um quarto pequeno sobre uma sala de conferência onde ele estaria escalado para falar. No dia anterior, ele voara para a Califórnia e voltou, convidado de Maria Shriver (mulher de Arnold Schwarzenegger), para outra aparição. Agora, move-se rapidamente pelo quarto, flanqueado por um pequeno exército de guarda-costas. Senta na minha frente, a uma mesa pequena, com a cabeça abaixada. Os amigos dizem que o Dalai não consegue esconder os sentimentos e, hoje, sua aparente e ilimitada energia e entusiasmo foram substituídos por fadiga e melancolia. Grupos como Students for a Free Tibet protestam sobre a decisão dele de abandonar a independência. "Definitivamente há mais críticas de nossa própria gente e dos que nos apóiam", conta. "E mais e mais críticas a respeito do 'Caminho do Meio'". E começa a assumir as ameaças que pesam sobre o Tibete. "A atitude dos oficiais chineses", admite, "não é encorajadora ou animadora."

A nova ferrovia para Lhasa trouxe desenvolvimento excessivo que impõe "conseqüências para o ecossistema". Tento interrompê-lo, mas ele continua a falar, preso em uma rede de preocupações. E então, a "pressão demográfica também está crescendo e as conseqüências ecológicas são muito sérias". E, à medida que se aproxima o fim de seu discurso, o rosto do Dalai Lama, de repente, se ilumina. "Ainda há esperança no futuro", insiste. "Essa não é uma questão sobre meu retorno ao Tibete, mas sim, a questão desse século", completa. "O problema do Tibete não será ignorado nem esquecido."

Quando terminamos a entrevista, menciono o fato de ter voltado recentemente do Tibete, uma terra que o líder espiritual não pôde visitar por quase meio século. Ele sorri alegremente. E grita: "Oh!". De novo: "Oh!", ansioso por notícias sobre a recém inaugurada ferrovia de Lhasa. "Você viu alguma cidade nova pelo caminho?", pergunta. "Ouvi dizer que há muitas cidades chinesas novas". Quando tento descrever o que vi, os assistentes do Dalai Lama começam a ficar mais nervosos; notáveis aguardam na sala ao lado para uma sessão de fotos. Mas o líder tibetano ignora todas as súplicas, disparando perguntas: "Você notou algum impacto ambiental?", questiona, ansioso. Os ajudantes começam a olhar repetidamente para os relógios, mas ele parece querer mais, desesperado por qualquer notícia da terra natal. O Dalai Lama agarra minhas mãos. "Obrigado", ele fala, encarando-me diretamente nos olhos. E dirige-se para a sala ao lado.

O futuro do Tibete repousa nesse homem idoso. Em uma era de terror, sua constante e imperturbável mensagem de paz, face a toda a destruição, provou ser inspiração para milhões de pessoas, bem além de sua própria cidade natal. "Ele trouxe alguma coisa indelével a esse mundo", escreve o ensaísta Pico Iyer. "Mostrou que a justiça e a paz têm um poder muito peculiar. Mostrou também que globalização pode ser uma maneira de levar a sério a idéia de que todos nós somos vizinhos um dos outros".

Mas, apesar das grandes realizações do Dalai, nenhum líder novo emergiu, ninguém que possa assumir seu lugar, e a violência no Tibete não tem outra alternativa que não a de crescer, uma vez que o Dalai se vá. "Quando ele fizer sua passagem, vai ser uma tremenda bagunça", admite Randy Schriver, um antigo oficial reformado do Departamento de Estado dos Estados Unidos. E pior: isso será tipo vinte anos antes de o próximo Dalai Lama, uma vez encontrado, identificado e escolhido, tornar-se adulto o suficiente para liderar seu povo. Por esse tempo, dado o rápido influxo de chineses e as próximas gerações crescendo em meio à desilusão da paz, o "Teto do Mundo" pode já não ser mais reconhecido como território tibetano. "Nesse exato momento, os tibetanos não têm mais nada a perder", diz um bem-sucedido homem de negócios em Lhasa, dando eco às preocupações daqueles que temem que uma das culturas mais antigas do mundo esteja realmente chegando ao fim. "É como você ter uma arma apontada para sua nuca... E uma vala cavada, bem à sua frente".

Tradução: Caio Nehring