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Entrevista com Patti Smith

A cantora lembra os anos 60 e 70 em entrevista para a edição comemorativa dos 40 anos da RS EUA; confira a tradução publicada na nona edição da Rolling Stone Brasil

David Fricke Publicado em 22/09/2008, às 18h36

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Patti Smith: "O mundo está mais material. As pessoas têm cartões de crédito. As crianças têm cartões de crédito" - Mark Seliger
Patti Smith: "O mundo está mais material. As pessoas têm cartões de crédito. As crianças têm cartões de crédito" - Mark Seliger

Você e o George W. Bush nasceram em 1946 e testemunharam as mesmas transformações. Como interpreta a diferença entre os ideais dele e os seus?

Ele vem de uma família rica e de um ambiente político, o pai dele foi presidente. Meus ideais vieram dos meus pais. Meu pai lutou na Segunda Guerra Mundial, mas era um pacifista. Quando jogamos a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, ele ficou arrasado. Meus pais eram idealistas, pessoas que simplesmente nunca se deram conta de diferenças, como homossexualidade e raça, as portas deles estavam abertas para todos. Fui criada em um lar sem discriminação e cresci sem acreditar em um inimigo. Quando Bush quis entrar no Iraque, foi ponto pacífico para mim - o que ele estava fazendo era errado e imoral, e seria desastroso para os norte-americanos. Isso veio da criação que recebi da minha mãe e do meu pai.

Fica espantada com o fato de alguém que é da sua geração ter visto as coisas de forma tão diferente?

Fico mais chocada com o fato de a minha geração não ter ido às ruas - contra a ação no Iraque e a postura rendida da mídia em relação ao governo Bush. É decepcionante não somente por causa da nossa atitude, mas também pelo exemplo que demos às nossas crianças. Mas tenho fé de que as gerações futuras serão mais conscientes, especialmente com relação ao meio ambiente.

Por que sua geração perdeu boa parte da visão e da energia que a definiu nos anos 60?

Pra mim, é difícil dizer. Eu não participei da revolução. Fui da geração anos 70. Abracei os 60 musical e ideologicamente, mas não absorvi o estilo de vida - não me agradava a idéia do uso generalizado de drogas. Achava que as drogas eram algo sagrado que os índios americanos usavam em certos rituais e na busca pelo autoconhecimento - que os músicos de jazz talvez usavam para falar com Deus. As drogas não eram um brinquedinho, mas as pessoas compraram esse estilo de vida. No fim, se cansaram e pararam com tudo. As pessoas se divertiram muito, mas queriam fazer família, ganhar dinheiro. Conseguiram isso nos governos Reagan e Clinton e não quiseram mais abrir mão.

Já tomou LSD?

Tentei três vezes. A primeira foi em 1974 com o Robert Mapplethorpe [fotógrafo que fez a foto da capa de Horses, disco de estréia de Smith, de 1975]. Foi quase dez anos depois de todo mundo ter tomado. Nunca achei que precisava de LSD. Quando finalmente tomei, fui andar por Nova York. Os lixeiros estavam em greve e me lembro de pensar que havia corrupção demais no mundo. O Robert disse: "Patti, o objetivo de tomar isso é se sentir bem". Mas, ao contrário, eu me senti como o [abolicionista] John Brown. Achei que tudo o que estava à minha volta era imundície e corrupção.

Você participou dos protestos pelos direitos civis ou das manifestações antiguerra dos anos 60?

Não. Morava no sul de Nova Jersey, era uma área rural. Não estava a par do que acontecia no mundo. No colegial, quase todos os meus amigos eram negros. Meu mundo era tão pequeno que nem sabia que existia um movimento pelos direitos civis. Na escola, as meninas sequer aprendiam a dirigir. Os meninos aprendiam a dirigir e as meninas aprendiam a cozinhar. Eu ia mal nessas aulas, então escolhi as aulas de artes. Muitos dos garotos que eu conhecia na escola foram mortos [no Vietnã]. Meu irmão Todd teve de se alistar na marinha. Mas segui meu caminho, não me encaixava no padrão. E também, em 1968, comecei literalmente a trabalhar na campanha presidencial de Robert Kennedy - estava muito animada e orgulhosa - e, então, ele foi morto. Já tinha vivenciado o primeiro assassinato. Aquilo me deixou assustada e enojada. A Guerra do Vietnã me deprimiu demais, não acabava nunca. Eu me senti inútil como ser humano. Senti que a arte não tinha efeito - o que foi uma percepção errada. Jurei não deixar mais as ações do mundo me deprimirem a ponto de eu não conseguir produzir.

Acredita que as pessoas estão petrificadas pela tristeza e pelo medo por causa do 11 de setembro e da guerra contra o terror do mesmo jeito que você esteve com relação ao Vietnã?

Só posso dizer, em minha defesa, que eu era muito jovem. E que há mais informação hoje em dia. Eu ia pra casa e perguntava: "Papai, você pode me explicar a Guerra do Vietnã?" E ele dizia: "Não, não tenho como. Não consigo entender". Fico decepcionada porque todos nós vimos como foi horrível o episódio Vietnã e, ainda assim, nós - e nossos líderes - deixamo-nos ser tragados pela mesma coisa. Eu estava assistindo à C-Span [a TV do Congresso dos Estados Unidos] quando os democratas se curvaram e votaram a favor do Bush [autorizando a ação militar no Iraque]. Comecei a gritar: "Não, não façam isso!". Queria entrar na TV. Aquilo foi errado do ponto de vista moral e legal, em todos os pontos, e sem uma razão legítima. Nada teria me levado a uma decisão dessas.

Em 1967 você deixou South Jersey e se mudou para Nova York. O que esperava encontrar?

Vim para arrumar um emprego, um dos meus objetivos era ser monitora do Museu de Arte Moderna. Procurei estudar todas as pinturas do museu, uma por uma. A outra idéia era trabalhar em uma livraria, porque eu adorava livros. Ganhava 65 dólares por semana na Scribner's, e Robert e eu pagávamos 85 dólares por mês por um apartamento no Brooklyn, então a gente se virava.

Você mergulhou na contracultura quando chegou à cidade?

Quando vim para Nova York, o assunto do momento no Brooklyn era a mudança dos Brooklyn Dodgers para a Califórnia [em 1958]. Eles ainda reclamavam tanto daquilo no metrô que achei que o negócio tinha acabado de acontecer. Não tínhamos dinheiro. O Robert conseguiu um trabalho como lanterninha do Fillmore East por um tempo, e lá ele conseguia ver algumas bandas. Ele vinha para casa e me falava das bandas. Mas vivíamos no nível de pobreza. Nosso dinheiro dava para o aluguel, a comida e um pouco para material artístico.

Você escreveu alguns textos para a Rolling Stone em 1971, inclusive a crítica de uma coletânea da cantora alemã Lotte Lenya. Qual foi a importância da revista para você?

Lembro-me da primeira vez em que comprei a Rolling Stone. Tinha o John Lennon na capa [a primeira edição]. Quando eu vivia em Nova Jersey, só se encontravam revistas adolescentes, como a Tiger Beat. Você tinha que comprar uma revista inteira para ter uma foto do Bob Dylan. Então a Rolling Stone foi uma revelação, fui muito ligada à revista no começo. Eu não me considerava uma crítica de rock de fato. Mas, no começo dos anos 70, escrever textos sobre o rock era como uma forma promissora de fazer arte. Pedi pessoalmente ao Jann Wenner para escrever a crítica do disco da Lotte Lenya. Eu a adorava. Fiquei sabendo dela pelo Bob Dylan - um dos discos que aparecem na capa do Bringing It All Back Home (1965) é o dela. Jann foi cético, mas me deu a oportunidade. Ele não só publicou o texto como também deu em destaque, com uma foto da Lotte. Depois, ela me mandou uma mensagem - um bilhete escrito à mão. Foi emocionante.

Era uma apaixonada por música psicodélica? Quanto ela influenciou a música que você fez posteriormente?

Eu amava Grace Slick. Ela não estava cantando R&B ou jazz ou blues. Os vocais dela em "White Rabbit" [do Jefferson Airplane] foram, para mim, os primeiros vocais rock de uma mulher que ultrapassou a questão da diferença entre os sexos. Eu não pensava em cantar, naquela época, mas, conforme evoluí, percebi que a pedra fundamental tinha sido aquele primeiro contato com a Grace Slick. E o Johnny Winter foi um dos caras com a melhor performance que eu já vi. Ele confrontava a platéia, com uma pegada endiabrada. Ele se embrenhava no meio das pessoas, vinha cantar bem na sua cara. Causou um superimpacto em mim.

Você reconhece qualquer traço do engajamento social do rock do fim dos anos 60 na música atual que ouve?

Não acho que as pessoas naquela época tinham o objetivo de enriquecer e ficar famosas. Isso vinha com o pacote e era um: "Tá, vamos encarar". Mas aqueles artistas eram motivados para fazer a vanguarda, abrir espaço. Eles tinham palavras e música, e documentaram a época. Jimi Hendrix tinha expectativas e sonhos e deu início a uma nova linguagem universal. Meu marido, Fred [o falecido guitarrista do MC5, Fred "Sonic" Smith], me dizia que o MC5 realmente acreditava que podia mudar o mundo, não era da boca pra fora. Eles estavam inebriados pelo sentimento de que poderiam pôr fim à Guerra do Vietnã, de que conseguiriam acabar com a discriminação. E a música deles refletia isso, eles queriam começar uma porra de uma revolução.

Por que isso não é mais um princípio a ser perseguido?

O mundo está mais material. As pessoas têm cartões de crédito. As crianças têm cartões de crédito. Não temos um plano. Três mil pais perderam os filhos nesta guerra, não 50 mil. É claro que haverá centenas de milhares de pais que receberão em casa filhos que foram mutilados e afetados emocionalmente pela guerra. Não sabemos qual será o resultado disso tudo pra esses meninos que estão lá. Talvez as coisas sejam fáceis demais hoje em dia. Quando eu queria ouvir "White Rabbit", tinha de economizar dinheiro, pegar um ônibus para a Filadélfia, comprar o single, pegar outro ônibus e rezar pra que a conta de luz tivesse sido paga para eu poder ouvir o disco. Não era só encomendar pelo celular e pagar com cartão de crédito. Mas as coisas estão diferentes. Mudaram tanto desde a virada do milênio que estamos sem fôlego. Não sabemos qual será a conseqüência disso sobre nós. Vejo meus filhos falando no telefone celular e penso naquelas microondas entrando no cérebro deles. Fico aterrorizada só de pensar que eles vão ter alguma doença horrível por causa disso.

O que mudou em você, em definitivo, desde 1967?

Não me sinto tão diferente. Espero que seja uma pessoa melhor hoje, só isso - melhor no sentido de ser mais compreensiva com os sentimentos dos outros. Quando você é jovem, se preocupa basicamente com seus próprios problemas - a menos que seja a Madre Teresa. Algo que me transformou foi a mudança para Detroit, o casamento e os filhos - passar por muitos dos sacrifícios que meus pais fizeram. O Fred e eu não tínhamos muito dinheiro. Fizemos tudo sozinhos. Quando tinha fraldas para lavar ou o chão pra esfregar, eu fazia; as coisas mais braçais ficavam com o Fred. Aprendi que ser artista não me tornava uma pessoa privilegiada. Ainda assim, eu era uma artista. E era um ser humano com as mesmas preocupações e inseguranças dos outros: "Sou uma boa mãe? Estou dando a comida certa para os meus filhos? Por quanto tempo posso deixar minha filha chorar?" Mesmo achando aquilo difícil, pensava nos meus pais que tiveram quatro crianças em uma casa minúscula em South Jersey. Minha mãe passava o dia inteiro cuidando da casa. Às 4 da tarde, ia para o lugar onde trabalhava como garçonete e ficava lá até as 10 da noite. Então, voltava para casa e fazia mais algum serviço doméstico. Penso hoje em dia nesse tipo de sacrifício e percebo que era incrível.

Você acredita que a gente esqueceu a importância do sacrifício?

Pode ser. Meus pais tiveram de se sacrificar por causa da Segunda Guerra Mundial. Daí, veio o Vietnã, e as pessoas começaram a ver os filhos e filhas sendo sacrificados. Os jovens tiveram de sacrificar certas coisas para enfrentar o governo. E, nos anos 60, ninguém tinha dinheiro. As pessoas vão dizer: "Ah, mas você morava no Chelsea Hotel com um monte de gente famosa". Eles não eram tão famosos na época. O [escritor beat] William Burroughs não tinha nada de grana. O [poeta e escritor] Jim Carroll nunca teve dinheiro. E o [ator e escritor] Sam Shepard tinha um pouquinho de dinheiro. Todo mundo tinha de se virar - mas a gente se virava de um jeito bacana. Odiei os cartões de crédito quando eles apareceram. Deveríamos ter nos manifestado contra os cartões. Meus amigos recebiam cartões pelo correio e compravam um monte de coisas. Eu dizia: "O que você tá fazendo? Você não tem dinheiro pra comprar isso". E eles falavam: "O que vão fazer comigo? Me prender?" Isso alterou a nossa sociedade de um jeito muito ruim.

Qual foi a contribuição definitiva da sua geração para o mundo?

O movimento das mulheres continua forte, é ativo e vigilante. Ninguém vai mexer nas conquistas que as mulheres vêm fazendo desde a década de 1960. Haveria um grito universal. O legado cultural dos anos 60 ficou para sempre com a gente. Tivemos o Jimi Hendrix, a Janis Joplin, o Jefferson Airplane, o Jim Morrison - foi uma época especial, mais ou menos como uma era dos deuses gregos. Eu gosto de ter heróis. Mas também adoro o que os jovens estão fazendo hoje. Não faço parte disso, mas vejo as coisas acontecerem, e fico maravilhada.

O que deixa você maravilhada?

Eles fazem a própria música nos próprios computadores e compartilham isso uns com os outros. Conseguem showzinhos porcaria em lugares porcaria e vão ver uns aos outros. Minha filha Jesse passou por uma dessas bandas e eu adorava as músicas deles - não porque era a minha filha, não. Gostava mesmo das canções. Os jovens sabem melhor como estruturar uma música, como construí-la sonoramente. Mas o rock é mais do que música. É uma consciência. Ele se misturou às nossas ideologias - o movimento pelos direitos civis, o Vietnã. A música dos anos 60 era consoante com o que estava acontecendo no mundo. E essa música vai continuar sendo - consciente ou inconscientemente - um modelo para o ativismo. Se você quiser saber como um músico reage ao que acontece a ele, eu digo "Ohio" [de Neil Young]. Alguma coisa terrível e errada acontecia, uma canção era escrita imediatamente e chegava às pessoas. Aquela música nos avisava de algo que estava acontecendo e isso nos unia. Ainda é possível. Talvez a coisa seja feita de outra forma. Talvez a garotada do MySpace arrume um hino que os faça sair às ruas. Não sei o que eles vão fazer, porque não sou eles. Não sou a líder deles. Mas estou de olho, e acredito nessas pessoas. Ainda assim, é difícil trabalhar hoje em dia, só na esperança. Sempre rezo e agradeço a Deus pelas pessoas que não estão somente cientes, mas que estão agindo mundo afora.

Tradução: CAROLINA REQUENA