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Irregular e convencional, mas com produção e direção de arte ótimas, Elis estreia nesta quinta, 24

Filme sobre a vida e carreira da cantora Elis Regina tem Andreia Horta no papel principal

Paulo Cavalcanti Publicado em 24/11/2016, às 13h59 - Atualizado às 19h00

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<b>Na pele</b>
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Andreia Horta como Elis - Divulgação
<b>Na pele</b> <br> <br> Andreia Horta como Elis - Divulgação

Elis sofre com uma dos principais problemas que afligem as cinebiografias: tem uma narrativa mais televisiva do que cinematográfica. O filme lembra até um episódio alongado de Por Toda A Minha Vida, programa da Rede Globo que dramatizava a vida e carreira de nomes da nossa música popular. Quem puxar pela memória vai se lembrar que Elis Regina foi focalizada há exatamente dez anos, com Hermila Guedes vivendo a cantora gaúcha falecida em 17 de janeiro de 1982, aos 36 anos de idade.

O filme dirigido por Hugo Prata começa com Elis e o pai dela saindo do Rio Grande do Sul e chegando ao Rio de Janeiro em abril de 1964, logo no momento em que acontecia o golpe militar. Fica a impressão de que ela estava tentando a carreira ali pela primeira vez, quando na verdade já havia gravado discos sob a batuta do produtor Carlos Imperial, que tentava transformar Elis em um clone da roqueira adolescente Cely Campelo. Nada disto é retratado.

Inspirada em Nara Leão, Elis então tenta a sorte no Beco das Garrafas, meca da bossa nova. Lá, conhece os produtores Luis Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli e o dançarino e cantor norte-americano Lennie Dale; depois de brigar com Bôscoli, ruma para São Paulo, é contratada pelo empresário Marcos Lázaro e se consagra nos festivais da canção. Em seguida, a intérprete se junta a Jair Rodrigues. Ela e o sambista estrelam o programa O Fino da Bossa na TV Record, alavancando assim a nascente era da MPB. Ela se torna uma figura polêmica, sem papas na língua. Depois de ser reconhecida como a maior cantora do Brasil, ela dá uma guinada na carreira e também encanta as plateias estrangeiras. Sob a batuta do jornalista, produtor e namorado ocasional Nelson Motta, busca outros horizontes, gravando com guitarras elétricas, algo que antes ela criticava. Tudo isso é apresentado de forma linear, sem muita tensão. Mas não deixa de ser divertido ver todas estas cenas e situações refeitas. E Elis tem direção de arte e produção classe A, o que torna tudo bem digerível.

O filme começa a ganhar algum tipo de arco dramático quando Elis se envolve romanticamente com Ronaldo Bôscoli, antigo inimigo da época da bossa nova, em um caso típico dos opostos que se atraem. Mesmo sendo inquieta e dona de uma natureza vulcânica, Elis quer ser uma boa mãe e ter algo parecido com uma vida doméstica. Já Bôscoli, mulherengo, boêmio e workaholic, não está interessado em sossego e fidelidade. As brigas entre eles são épicas; o filme até recria a infame cena em que Elis jogou na orla marítima carioca a amada coleção de LPs de Frank Sinatra pertencente ao marido.

A maior polêmica do filme é a sequência que retrata os contratempos de Elis com o regime militar. Em uma coletiva de imprensa na Holanda, ela teria comentado sobre o momento político do Brasil, chamando os oficiais que tomaram o poder de "gorilas". Assim, anos depois, ela teria sofrido duras ameaças por parte de representantes do exército e, desta forma, teria sido obrigada a cantar “Madalena” em uma cerimônia militar.

É assim que o incidente aparece no filme. Mas segundo o biógrafo Paulo Cesar de Araújo relata no livro Eu Não Sou Cachorro Não, a história foi diferente. O autor escreveu que ela concordou em fazer parte, em abril de 1972, de um evento chamado Encontro Cívico Nacional, “regendo” um coral com outros artistas bem conhecidos, a maioria deles atores da Rede Globo, que cantaram o Hino Nacional. Segundo o empresário Marcos Lázaro, em depoimento à biógrafa Regina Echeverria, Elis teria aceitado na boa, concordando com o ótimo cachê que foi oferecido. De qualquer forma, depois da transmissão, o jornal alternativo de esquerda O Pasquim não perdoou a cantora, que foi taxada de colaboracionista do regime. O persuasivo Bôscoli correu para salvar a reputação da esposa, dizendo que ela só participou depois de ser coagida e ameaçada de prisão. Segundo o livro de Araújo, própria Elis também teria contato para Echeverria que a história toda foi romanceada e aumentada por Bôscoli. Isso realmente está relatado na biografia Furacão Elis, de Regina Echeverria.

Conforme o filme vai avançando pela década de 1970, a produção ganha uma incômoda velocidade que atrapalha uma melhor apreciação. A cantora busca resgatar a credibilidade perdida e monta o revolucionário espetáculo Falso Brilhante. Ela se casa com o pianista e arranjador César Camargo Mariano e adquire alguma estabilidade emocional. Faz as pazes com o cartunista Henfil, que depois do incidente com os militares, a ridicularizava de forma impiedosa em O Pasquim. Elis se separa de Camargo Mariano e ninguém entende muito o motivo. Ela passa o tempo divagando sobre os rumos de sua carreira e do estado da música popular brasileira. Os vícios que afligiram Elis em seus últimos anos de vida e que acabaram a matando são mencionados literalmente em um piscar de olhos. O desfecho é apressado e abrupto. Não fica claro que ela morreu devido a uma combinação letal de uísque e cocaína; parece que Elis apenas morreu de tédio e de uma vaga insatisfação existencial. Claro, não seria ético explorar a morte dela de forma sensacionalista, mas o desfecho é anticlimático e não oferece respostas. O personagem do advogado Samuel MacDowell, último namorado de Elis e que a descobriu morta, entra mudo e sai calado, e nem sequer é identificado.

Um dos fatores positivos do longa é o elenco. No papel-título, Andreia Horta dá tudo o que tem. Ela se parece razoavelmente com a cantora e fez a lição de casa direitinho, imitando as caras e bocas de Elis e a postura da cantora dentro e fora do palco. Mas o sotaque atrapalha: Andreia oscila entre a entonação paulista, gaúcha e carioca. O grande problema acontece quando ela abre a boca para dublar a voz de Elis nas canções. Não é uma questão técnica, se ela dubla bem ou mal. É que, quando ouvimos a voz da Elis de verdade, lembramos daquela mulher devastadora e de personalidade tão impactante. E Andreia não resiste à comparação com a estrela que retrata na tela grande; ela é um pardal querendo ser um gavião. Gustavo Machado anda na corda bamba; como o infiel Bôscoli, ele é o mais perto de um antagonista na história, mas ainda assim imprime ao personagem uma dose de humanidade. Lúcio Mauro Filho é divertido como o bonachão Miele. Caco Ciocler é desperdiçado na pele de César Camargo Mariano. O tempo dele em cena é curto e o máximo que faz é lamentar o comportamento cada vez mais errático da talentosa esposa.

Mesmo durando quase duas horas, Elis parece uma obra incompleta. Faltam episódios-chave como o folclórico encontro dela com Tom Jobim em Los Angeles em 1974, que gerou o álbum Elis e Tom, um divisor de águas na carreira dela. Seria interessante ver, por exemplo, como o amigo Guilherme Arantes ensinou Elis a ser uma artista pop e leve quando escreveu para ela o hit "Aprendendo a Jogar". No geral, nada é muito aprofundado na biografia. Realmente, em uma vida tão tumultuada, fugaz e momentosa como a de Elis, seria quase impossível colocar na tela todas as nuances e complexidades que marcaram a personalidade dela. Mais do que uma simples biografia amontoando fatos e datas, Elis Regina merecia um filme que fosse um estudo de caráter, detalhando as ambiguidades da vida e da carreira dela. Fica para a próxima.