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Em meio a condições degradantes, Acre é porta de entrada para haitianos e senegaleses

Imigrantes buscam no Brasil um lugar seguro para recomeçar a vida

MARCIO PIMENTA E MARCELA MILANO Publicado em 26/10/2015, às 15h42 - Atualizado às 15h52

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Em meio a condições degradantes, o Acre é a porta de entrada para haitianos e senegaleses que buscam um lugar seguro para recomeçar - Marcio Pimenta
Em meio a condições degradantes, o Acre é a porta de entrada para haitianos e senegaleses que buscam um lugar seguro para recomeçar - Marcio Pimenta

“Estamos na lista! estamos na lista!”, vibra a haitiana Virginie Oscar, de 28 anos, junto aos dois filhos dela, Steeve Jean, de 6 anos, e Viergeline Jean, de 8, enquanto contorce de alegria o corpo frágil e castigado. É final de julho e ela está bem distante de seu país natal, mais especificamente na cidade de Rio Branco, no Acre. A lista que a faz comemorar foi expedida pelo governo brasileiro – ter o nome nesse pedaço de papel significa que o país está garantindo a ela e aos filhos passagens de ônibus do Acre até Santa Catarina, uma distância de quase 4.000 km. Significa, também, que ela reencontrará o marido haitiano, Henrique, que chegou ao Brasil em meados de 2012. Ele fez parte da primeira leva significativa de haitianos que começaram a buscar aqui um lugar para viver após o grande terremoto que atingiu o país deles em 2010.

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Em uma catástrofe da qual o Haiti ainda não se recuperou completamente, cerca de 200 mil pessoas morreram. Os prejuízos causados pelo evento foram equivalentes a 120% do PIB local. Essa situação fortaleceu as ações de cooperação com o Brasil, que já ocorriam desde 2004, quando nossos militares assumiram a liderança da Missão de Paz da ONU no Haiti, a Minustah (em francês, uma das línguas oficiais da ilha, Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti).

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Segundo o Itamaraty, já foram concedidos mais de 16 mil vistos permanentes em caráter humanitário na embaixada da capital haitiana, Porto Príncipe. O valor atual fixado para a emissão do documento é de US$ 200, pago em depósito bancário diretamente na conta da embaixada. No entanto, a lentidão na emissão de vistos, em um país em que a população se vê desesperada por oportunidades, alimenta um mercado em que terceiros, se passando por figuras influentes no meio diplomático, usam de artimanhas para iludir os que buscam uma saída. O desespero escurece a razão. Criando a fantasia de uma vida próspera em um lugar receptivo, falsos pastores e outros trapaceiros se utilizam da fé como arma na hora de escolher suas vítimas. E, assim, muitos haitianos entram no Brasil de maneira irregular.

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Todas as precauções antes da viagem são realizadas através desse “facilitador”, que convence os imigrantes a desembolsar tudo o que têm com passagens e guias que os deixarão na terra prometida. Os coiotes – como são chamados –, garantindo aos viajantes que o Brasil os acolherá com hospedagem e alimentação dignas e gratuitas, nutrem um esquema de tráfico de pessoas. Da partida até a fronteira com o Brasil, além das passagens, violência física e psicológica fazem parte do pacote. A rota dos haitianos que resolvem emigrar de maneira ilegal se inicia, em geral, com a travessia de ônibus para a República Dominicana. Depois, segue-se de avião para o Panamá e em seguida para Quito, no Equador. Lá, é feito um novo pagamento aos responsáveis pela travessia no Peru, que dará acesso a Assis Brasil, no estado do Acre. É uma rota perigosa e bastante lucrativa para os coiotes. Estima-se que mais de 40 mil pessoas já tenham percorrido o trajeto, gerando mais de US$ 60 milhões em faturamento. Cada viajante paga de US$ 500 a US$ 5 mil no itinerário entre Haiti e Brasil.

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O caminho é penoso e desgastante. Após atravessar a fronteira e chegar ao território brasileiro, cerca de 100 km separam os haitianos do posto da Polícia Federal, que fica na cidade de Epitaciolândia. É lá que devem ser solicitados os primeiros documentos do visto humanitário. O choque é gritante: o Brasil rico e de paisagens dos cartões-postais dá lugar a uma selva quente, úmida e sem infraestrutura adequada.

Já é noite, perto das 21h. No posto da Polícia Federal (fechado, e que só voltaria a abrir na manhã seguinte, às 8h), um grupo de cinco haitianos acaba de chegar: três homens e duas mulheres, uma delas grávida de quatro meses. Todos vieram sozinhos, sem nenhum parente, em busca de melhores condições para as famílias que deixaram no Haiti. Entre eles está Michel Pierle, de 45 anos, o único que fala um pouco de espanhol; os demais se comunicam em francês ou crioulo haitiano. Pierle mostra sua caderneta de poupança, toda preenchida à mão, com saques equivalentes a US$ 2,2 mil, valor que usou para financiar sua viagem de oito dias. A rua do local onde a PF está instalada é bem iluminada, cercada por residências e bares. Mas Pierle não tem mais nem um dólar, sequer para comer. Junto aos outros, passa a noite na calçada.

Pela manhã, pode-se ver o quão degradantes são as condições oferecidas aos recém- chegados. Pouquíssimos agentes para atendimento, ambiente sujo e abafado, totalmente diferente do escritório moderno e organizado da quadra ao lado, onde são recebidos os brasileiros que desejam atravessar a fronteira. E ainda há um longo caminho adiante: são mais 340 km até Rio Branco, onde se encontra a Chácara Aliança, abrigo de acolhimento ao imigrante. É bastante comum ver pessoas chegando à propriedade em condições precárias de saúde. As mulheres sofrem ainda mais. Lovely Nicolas Nelson, de 28 anos, desembarcou há uma semana no Brasil. Ela está grávida de cinco meses e seu marido a espera no Rio de Janeiro. No dia em que tentou sair do Acre, teve uma pequena complicação na gravidez e precisou ser internada na única maternidade pública da cidade. Ela está bem agora, mas nem todos têm a mesma sorte, como mostram os registros de casos de morte de haitianos após a travessia.

Eddy joseph, de 33 anos, é outro imigrante que escolheu a rota clandestina. Ele conta que estava em Quito no dia da visita do papa Francisco ao Equador. Acreditou que aquela era uma benção. A viagem dele até o Brasil durou três dias e, durante a jornada, ladrões levaram grande parte dos seus pertences. “Quando criança, eu sonhava em vir para cá por causa do futebol. Mas agora sou velho, venho mesmo em busca de trabalho. Deixei minha mulher e minha filha. Espero logo ter dinheiro para trazê-las.”

A princípio, o tom é de esperança, mas ele não demora a mudar de semblante: “Até agora, tem sido bem diferente do que eu imaginava”. Joseph está se referindo ao local onde os haitianos estão instalados. A Chácara Aliança, uma antiga casa com pintura em tons pastel e um chafariz no centro do salão principal, era usada pela elite da cidade de Rio Branco para a realização de festas e casamentos. Hoje, se transformou no centro de referência para esses imigrantes. O local é coordenado por membros da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh) e pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Seds) do estado do Acre. Segundo Antônio Crispim, coordenador do abrigo, já passaram pelo local, desde 2010, mais de 40 mil pessoas, sendo que 35 mil eram de nacionalidade haitiana. Além do Haiti, há também muitas pessoas oriundas do Senegal e em menor número de outros países da África e América Central. Somente de janeiro a maio de 2015, mais de 7.200 pessoas, de oito nacionalidades diferentes, se instalaram na Chácara. A média de permanência é de 15 dias, mas esse período pode se estender – um haitiano chegou a ficar no local por um ano, após passar por uma cirurgia na perna.

Naquele dia, 267 imigrantes aguardavam uma passagem para outros estados. A escolha do destino é feita por eles mesmos, quando são questionados se já têm algum familiar ou amigo residindo no Brasil. Mulheres e crianças têm preferência de embarque; para os homens, vale a ordem de chegada. Cada novo rosto que entra na Chácara recebe um colchão, já muito desgastado, e três refeições diárias. E, então, deve aguardar que seu nome surja em uma próxima lista.

Há sinais de avaria por toda parte. Olhamos em volta: um gato ronda como se caçasse ratos, e não é difícil imaginar que sua busca seria recompensada. Não há banheiros em condições de uso. O esgoto corre a céu aberto e os banhos são nas áreas comuns. O local é alugado pelo Acre para abrigar os imigrantes e, por ser de propriedade privada, não pode receber verba pública para a realização de obras de melhoria de infraestrutura. Uma responsabilidade que deveria ser do governo federal acaba direcionada a um estado já bastante carente de recursos.

Além disso, os portões, abertos permanentemente, dão vista a outras violências aos que vivem ali. Os funcionários do local dizem já ter presenciado traficantes da região tentando conquistar novos clientes entre os imigrantes que têm algum dinheiro.

As horas passam arrastadas. Enquanto aguardam um contato de algum familiar ou o nome na lista, as pessoas dormem, rezam, jogam futebol. Um senegalês repousa em um dos corredores da casa, em um sono tão profundo que uma mosca entra e sai de sua boca aberta sem ser incomodada.

Ao mesmo tempo, é realizada uma cerimônia em homenagem ao deus Bamba, em um culto de origem senegalesa. É um momento de extrema importância para eles – só fomos convidados a participar porque falamos francês. Nenhum funcionário do abrigo domina o idioma. Quem ajuda na comunicação é uma freira da Congregação das Irmãs Scalabrinianas que atua como intérprete. Os senegaleses aproveitam nossa presença para registrar suas queixas. Dizem que o país é muito quente e úmido, que não há higiene no abrigo; os insetos invadem os quartos dia e noite.

Mas, então, por que o Brasil? “Preferíamos ir para a Europa, mas a travessia pelo mar é muito perigosa”, afirma o falante Modou Diagne, de 27 anos, vindo do Senegal. “Os coiotes nos vendem a ideia de que o Brasil está com as fronteiras abertas e que ao chegarmos um bom quarto de hotel com televisão estará nos esperando”, conta ele, resignado e aparentemente já arrependido. A rota dos senegaleses inclui uma escala em Madri e depois um voo direto para Quito, no Equador, onde se juntam aos haitianos e aos coiotes que os esperam. Algumas das pessoas que estão no culto venderam tudo o que tinham, deixando a família para trás na esperança de ganhar bastante dinheiro e, depois, reunir todos novamente no Brasil.

Passamos pela fronteira com o Peru sem ser incomodados. Todos os dias, dezenas de haitianos fazem o mesmo. Sempre perseguindo um lugar seguro. Virginie Oscar e seus dois filhos estão agora a caminho do que acreditam ser o deles, em Florianópolis. “A vontade de começar uma nova vida é maior que a de ficar no Haiti”, diz. Ao cruzar o portão da Chácara Aliança em direção ao ônibus, ela solta um leve desabafo: “C’est fini” [acabou, em francês]. Na verdade, Virginie, é só o começo.

REALIDADE ALTERNATIVA - Um imigrante deixa o abrigo para, por algumas horas, trabalhar como modelo

Chegadas inesperadas à Chácara Aliança são bastante comuns, de pastores evangélicos a traficantes de drogas. Mas o Gol prateado trazendo dois homens muito bem vestidos, de calça jeans, camisa e sapato, causou mais curiosidade que o habitual. Um dos rapazes se apresentou: era Nonato Viana, produtor de moda contratado pelo Sebrae para organizar um desfile de confecções locais que estariam na ExpoAcre, uma das maiores feiras de negócios da Amazônia. Viana estava em busca de um imigrante para representar a diversidade cultural de Rio Branco. O escolhido foi Lahens Gachette, haitiano de 28 anos que havia chegado ao Brasil tinha pouco tempo. Na mesma noite, Gachette se reuniu aos modelos contratados. Apesar de bastante tímido, ele conseguiu se comunicar por meio de gestos e sorrisos e foi bem acolhido. Usava um par de sandálias surradas, que foi deixado de lado assim que outro modelo, que calçava o mesmo número, emprestou os tênis que usava para que Gachette subisse ao palco. A realidade dura do abrigo ficou, por algumas horas, distante, perdida entre os gritos das mulheres na plateia. Todas as roupas com as quais ele desfilou lhe foram doadas pelas lojas.

Vítimas da guerra, refugiados sírios têm entrada facilitada no Brasil

Por Lucas Borges

Anas Obeid, Ali Alkadam, Tarik Balbke e Nour Koeder são mais quatro imigrantes na América do Sul. Diferentemente de estrangeiros que entregam tudo o que têm a intermediários para entrar de maneira irregular em território brasileiro, esses quatro jovens na faixa dos 20 anos são convidados do país. Anas, Ali, Tarik e Nour – que chegaram ao Brasil em diferentes datas, entre três meses e dois anos atrás – fazem parte de um grupo de mais de 4 milhões de refugiados sírios espalhados pelo mundo, uma diáspora iniciada em 2011.

Inspirados pela Primavera Árabe, em 2010, manifestantes saíram às ruas das cidades de Damasco e Aleppo protestando contra o presidente da Síria, Bashar Al-Assad, por melhores condições sociais e liberdade. A revolta foi duramente reprimida pelo líder em batalhas que se estendem até hoje, levando o território a uma situação catastrófica. Agora, além da guerra civil, grupos extremistas como o Estado Islâmico duelam entre si e contra o poder oficial, tornando o ambiente ainda mais apocalíptico. Fora os deslocados internacionalmente, outros 7,6 milhões fogem do caos dentro da própria Síria. Para se ter uma ideia, até 2011, a população total do país era de pouco mais de 20 milhões de habitantes.

O governo brasileiro facilitou, a partir de uma resolução de 2013, a obtenção de vistos especiais para cidadãos sírios, em particular nas embaixadas de países vizinhos como Turquia, Jordânia e Líbano. A resolução teria chegado ao fim em setembro, mas foi prorrogada até 2017.

“Há dois tipos principais de migração: a socioeconômica e a forçada, que chamamos de refúgio”, diferencia Beto Vasconcelos, presidente do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão vinculado ao Ministério da Justiça. “A migração forçada tem regimes legais próprios. Ela é caracterizada quando há perseguição por raça, religião, nacionalidade, grupo social ou orientação política e quando há grave violação dos direitos, o que normalmente ocorre quando há conflito armado ou guerra.”

Mais de 2 mil sírios atravessaram os 10 mil quilômetros até a nossa fronteira nos últimos anos, repetindo o caminho feito na primeira metade do século 20 pela hoje estabelecida colônia sírio-libanesa no Brasil. O número ainda é bem menor que o dos 39 mil haitianos que entraram no país entre 2010 e 2014. Principal ponto de fuga das vítimas da terra de Bashar Al-Assad, a Turquia recebeu quase 2 milhões de pessoas vindas do país vizinho.

No total, cerca de 8 mil refugiados de guerra de diversos países estão abrigados no Brasil atualmente e mais 12 mil já solicitaram a entrada legal no país. No mundo inteiro, segundo a ONU, 60 milhões de pessoas estão deslocadas devido a conflitos armados.

Anas, Ali, Tarik e Nour passaram todos por nações árabes vizinhas antes de chegarem ao Brasil, incentivados pela facilidade da obtenção do visto. Reunidos em 12 de setembro para um evento organizado pelo Movimento Terra Livre em uma ocupação que abriga 51 imigrantes do Oriente Médio na Liberdade, tradicional bairro de descendentes de japoneses em São Paulo, eles não se cansam de agradecer à receptividade brasileira. Nenhum deles se conhecia antes de chegar ao país. O encontro foi facilitado pelas redes sociais, por meio das quais promovem atividades conjuntas.

Diferentemente de Anas, jornalista na Síria e hoje cozinheiro em um restaurante de comida árabe, Tarik, antes estudante e hoje confeiteiro em uma doceria típica, e Ali, que continua sendo vendedor de roupas, Nour é o único desempregado. Formado em moda em seu país de origem, ele é menos otimista que os três amigos. “O Brasil está passando por uma situação muito difícil, muito ruim”, diz. “Estou sem trabalho há um mês. Vou continuar aqui porque onde minha família mora, na Jordânia, não dão nem documento.” Além do aumento da estrutura do Conare, afirma o presidente da entidade, o governo tem atuado com estados, municípios e ONGs por meio de ações de acolhimento e concessão de documentação geral e carteira de trabalho. “Algumas associações garantem assistência social, psicológica e jurídica e promovem cursos de português. E o refugiado tem acesso ao sistema público de saúde e de educação”, explica Vasconcelos.