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Jerry Lewis refez a história da comédia

Do humor ingênuo a momentos mais complexos, o comediante deixou um legado incomparável para o gênero

Paulo Cavalcanti Publicado em 20/08/2017, às 20h07 - Atualizado às 22h58

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Jerry Lewis - Associated Press
Jerry Lewis - Associated Press

Jerry Lewis tinha um enorme talento como ator, comediante e diretor. Mas, em meio a todas essas qualidades, algo tinha destaque: ele vinha da tradição do “clown”, do palhaço. Era o cara que, de repente, escorregava no chão, recebia tortas na cara e se atrapalhava com coisas simples. O humor físico e visual era o que, nos primórdios, fazia a graça de Lewis, que morreu neste domingo, 20, aos 91 anos.

Lewis passou por todos os estágios do entretenimento. Começou no teatro de variedades e deu as caras no começo da televisão, no final da década de 1940. No começo da carreira, ele fazia dupla com o cantor e ator Dean Martin. Do palco para o cinema, a transição de Lewis & Martin foi bem-sucedida. A fórmula era simples: Martin cantava e encantava, conquistando as mulheres com suas baladas com forte sabor napolitano. Lewis era o homem-criança, quase assexuado. Fazia caretas, falava bobagens e aprontava uma balbúrdia danada onde quer que pisasse. Martin e Lewis deixaram grandes comédias como Artistas e Modelos, O Meninão, O Rei do Circo, A Barbada do Biruta e muitas outras.

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A dupla, no auge, acabou se separando. Na verdade, foi Dean Martin quem quis sair. Ele achava que estava preso a uma fórmula e queria se dedicar mais à carreira de cantor. E quando passou a fazer parte do Rat Pack, de Frank Sinatra, Martin se tornou muito mais do que um artista bem sucedido: ele virou um ícone, um símbolo do que era ser cool. Martin não precisava mais de Lewis. Sem o parceiro, Jerry Lewis teve que se reinventar. E isso não ocorreu de um dia para o outro.

Algo que o impulsionou nesse processo foi o fato de que não era apenas um performer, mas também um criador. Começou a dirigir os próprios filmes, demonstrando muita inventividade por trás das câmeras. Ele inventava as próprias gags e maluquices visuais. O Mensageiro Trapalhão (1960) é bem típico desta faceta do artista: não tem enredo e é praticamente um filme mudo. A ação é conduzida pela engenhosidade visual de Lewis. No começo dos anos 1960, a imagem cinematográfica dele, do sujeito ingênuo e meio bobão, ainda perdurava. Isso também mudou, e Lewis passou a fazer comédias mais cínicas, adultas e incômodas.

Essas novas facetas estilísticas convergiram em 1963 na obra-prima dele, O Professor Aloprado. No longa, Lewis é Julius Kelp, um professor feioso, nerd, tímido e sem vida social. Um dia, Kelp inventa uma fórmula e vira o arrogante e galanteador Buddy Love, um cantor de night club que trata as pessoas como lixo. Na época, muitos acharam, erroneamente, que Buddy Love seria uma caricatura de Dean Martin. Assim, Lewis estaria se vingando do companheiro que o deixou para trás. Na verdade, Love era o Lewis da vida real: difícil, genioso e antissocial.

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O Jerry Lewis “cínico” seguiu até o começo final nos 1960 em filmes como O Fofoqueiro, De Caniço e Samburá, Qual o Caminho Para a Guerra, O Golpe das Arábias e outros. Na década de 1970, quis fazer o filme que, aos olhos dele na época, o consagraria de vez como cineasta. Mas o que veio foi o malfadado e amaldiçoado The Day The Clown Cried. O filme sobre o Holocausto só trouxe má sorte a Lewis. O longa nunca foi concluído, fez Lewis perder muito dinheiro e, mais tarde, entrar em uma espiral descendente de drogas e bebida. Lewis se cansou do show business. Foi sumindo e se apagando; por pouco não cometeu suicídio. “Lá estava eu, em um hotel em Londres, sozinho, com uma arma carregada apontada para garganta”, chegou a dizer.

Em 1982, realizou seu maior trabalho na tela grande: em O Rei da Comédia, dirigido por Martin Scorsese, Lewis vive Jerry Langford, um famoso apresentador de talk show que na frente das câmeras é o rei da noite, sempre engraçado e cheio de tiradas. Fora dos holofotes, porém, é um cara solitário, amargo e desagradável. Lanford é idolatrado pelo aspirante a comediante Rupert Pupkin (Robert De Niro) e a relação entre eles se revela tóxica. Jerry Langford, na verdade, é um retrato disfarçado do Jerry Lewis de carne e osso. O Rei da Comédia é o filme definitivo sobre desconforto, insatisfação e relações que nascem erradas. É sobre os bastidores do show business, mas pode se encaixar em qualquer local e situação. E o resultado nunca é bonito.

Os nostálgicos que cresceram vendo os filmes de Lewis na Sessão da Tarde da Rede Globo devem agora se lembrar do lado ingênuo e lúdico da obra dele. Mas, nestas últimas décadas, pelo menos no que se refere a sua imagem pública, Lewis virou o Jerry Langford de O Rei da Comédia, sempre na defensiva, raramente demonstrando ser um cara agradável ou simpático. Lewis sempre se ressentiu pelo fato de a crítica do país dele nunca o ter levado a sério como autor e criador. Agora a obra e a complexa vida pessoal do artista deverão serão devidamente reavaliadas.