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Se estivesse vivo, Freddie Mercury completaria 70 anos

O eterno vocalista do Queen deixou um legado impressionante

Paulo Cavalcanti Publicado em 05/09/2016, às 17h26 - Atualizado às 17h52

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Freddie Mercury, ex-frontman do Queen - AP
Freddie Mercury, ex-frontman do Queen - AP

Algumas pessoas nascem para serem bancárias, jornalistas ou açougueiros. Outras, para trabalhar no comércio ou na indústria. Muitas seguem o caminho da música. Mas poucas realmente podem ser consideradas astros de primeira grandeza, alguém maior do que a vida. Freddie Mercury foi um desses raros iluminados.

Se estivesse vivo, Freddie Mercury, nascido em Zanzibar (África) no dia 5 de setembro de 1946, com o nome de Farrokh Bulsara, completaria 70 anos nesta segunda, 5. É difícil imaginar o flamboyant e energético Mercury como um senhor setentão. A presença dele, morto em 1991 aos 45 anos, ainda é sentida de forma intensa pelos velhos fãs e também pelas novas gerações, que descobriram o Queen através dos álbuns clássicos e das performances icônicas gravadas em vídeo. Mercury e o som único criado pelo Queen também estão no DNA do pop moderno.

Tive a imensa sorte de ver o Queen nas apresentações da banda no Brasil. A primeira foi em maio de 1981, no estádio Morumbi, em São Paulo. Era um sábado nublado, estava no gramado (não se falava “pista" na época) e consegui ver Mercury bem de perto; lembro de assisti-lo trotando para lá para cá com aquele microfone que parecia um cetro, e usando uma camiseta com o logo do Superman. Na segunda, em janeiro de 1985, no Rock in Rio, eu fiquei mais ao fundo, espremido no meio da enorme massa. Foi caótico e estava um calor desgraçado. Mas me recordo perfeitamente da lama; do barulho dos helicópteros que sobrevoavam o imenso espaço do show; do público virando uma coisa só ao som de “Radio Ga Ga” e uma onda de gente se empurrando no encerramento “We are the Champions”. Não era para fracos. Presenciar o Queen ao vivo era uma experiência. E ter feito parte dessa experiência não tem preço.

Freddie Mercury marcou a vida de muita gente e hoje está ao lado de um clube restrito, que tem Elvis Presley, Beatles e poucos outros gigantes. Nada mal para um garoto tímido que passou os primeiros anos de vida na África e depois foi criado na Índia. Quando o jovem foi para a “Swinging London” no meio dos anos 1960, tudo mudou. Ele se formou em artes gráficas e, tendo Jimi Hendrix e Beatles como grandes influências, entrou de cabeça no rock. Eclético, Mercury também adorava os musicais da Broadway e nessa área tinha como heroína a atriz e cantora Liza Minnelli.

Para entendermos Freddie Mercury e como a persona artística dele se desenvolveu, é preciso lembrar que o Queen surgiu no apogeu do glam rock na Inglaterra, lá por volta de 1972/1973. O glam foi muito importante musicalmente, é claro, mas foi em termos de comportamento que talvez ele tenha sido o mais transformador movimento pop de todos os tempos. Foi no glam que a inversão de gêneros começou a ser notada e praticada. Visualmente, claro, o movimento foi um autêntico desbunde. As roupas e maquiagem se tornaram cada mais vez mais ousadas – os fãs se vestiam como os ídolos e vice-versa.

Alguns destes artistas moldavam o glam segundo seus interesses e características pessoais. Para David Bowie, o movimento era uma forma de manifestar as diversas facetas artísticas, que iam sempre evoluindo e se transmutando. Para Elton John, que, apesar do enorme talento, nunca foi um artista transgressor, era apenas uma maneira de manifestar um apreço pelas coisas extravagantes do showbusiness, que tanto adorava. Mas o engraçado é que o Queen e Freddie Mercury permaneciam na ambiguidade. A música era bombástica e os fãs pareciam aceitar que o visual e os trejeitos de banda também fossem convenientemente exagerados. Mas ninguém sabia exatamente "qual era a deles".

A onda do glam passou e Mercury começou a se sentir mais à vontade para ser quem ele realmente era. No final dos anos 1970, o artista adotou o visual "butch" e tosou as longas madeixas (Mercury tinha cabelo ondulado e odiava ter que alisá-lo). As unhas pintadas de preto, os trajes de balé e as roupas kitsch que pareciam ter sido compradas em brechó ficaram para trás. Ele também começou a usar um bigodão. Apareceu bombado, usando roupa de couro, camisetas cavadas e vestimentas de atleta, com o tecido colado ao corpo musculoso. Mercury estava mais bonito, vistoso e viril do que nunca. No palco, as perfomances se tornaram mais ousadas e sexualizadas.

Uma corrente de pensamento afirma que o Queen começou a perder espaço nos Estados Unidos por causa do novo e provocador visual de Mercury. Talvez tenha sido um pouco verdade, especialmente no sul do país, em pontos mais conservadores. Mas a verdade é que o Queen tornou-se, de forma geral, ainda mais popular e visível a partir deste período. Antes, eles pertenciam exclusivamente ao universo do rock. Agora, eram pop e falavam a todo mundo. O álbum The Game, lançado em junho de 1980, foi um fenômeno de vendas e de execução nas rádios, trazendo algumas das faixas mais populares da banda, como “Crazy Little Thing Called Love” (com Mercury homenageando o ídolo Elvis Presley), a balada “Save Me” e o funk “Another One Bites the Dust”.

Assim, na virada da década de 1970 e 1980, o Queen havia se tornado a maior banda do mundo. O Led Zeppelin tinha acabado depois da morte do baterista John Bonham; os Rolling Stones se desgastavam com os problemas legais de Keith Richards, cuja saúde também estava abalada pelo uso de drogas. O The Who não havia se recuperado da morte do baterista Keith Moon, em 1978, e contava os minutos para se separar. Mas o Queen chegou a esse status não apenas pelo fato da concorrência estar caindo pelas tabelas. Eles eram mesmo os campeões. A banda tinha o mais avançado e potente sistema de som e de luzes. Possuía uma seleção de hits imbatíveis para tocar por duas horas. O guitarrista Brian May, o baterista Roger Taylor e o baixista John Deacon se encontravam na plenitude musical. Com sua voz inconfundível, potente e de alcance ilimitado, Mercury era o showman mais espetacular do universo do rock. Ele não cantava para a plateia – ele trazia a plateia para dentro do palco. Tudo era pomposo na atuação de Mercury. Ao final de cada performance, enquanto “God Save The Queen”, o hino britânico, era executado nos alto-falantes, o cantor era envolvido em um manto e “coroado” pelos roadies enquanto se despedia do enorme público. Nesta época, o Queen, que já era algo imenso no Japão e na Austrália, também abriu as portas para os espetáculos enormes de rock na América Latina, realizando concertos épicos em estádios do Brasil e da Argentina.

No palco, Mercury podia ser teatral, mas tinha que manter o foco em shows grandiosos e mega produzidos que eram assistidos por milhares de fãs amontoados em estádio nos quatro cantos do mundo. Alguns críticos que não gostavam do tom épico da banda afirmavam que os shows do Queen em espaços abertos se assemelhavam aos comícios nazistas em Nuremberg realizados na década de 1930. Pela forma como conseguia dominar multidões, Mercury era comparado a um ditador discursando. Então aconteceu o Live Aid. O segmento do Queen no Estádio de Wembley, dentro do célebre festival beneficente realizado em 13 de julho de 1985, durou cerca de 25 minutos e deixou o mundo todo de boca aberta. A participação do Queen é apontada como a maior performance de uma banda de rock de todos os tempos. Mercury, May, Taylor e Deacon conseguiram roubar o show de gente como David Bowie, Paul McCartney, U2, Mick Jagger, Beach Boys, Tina Turner, Phil Collins, The Who e Led Zeppelin, entre outros.

Mercury era, em geral, uma pessoa reservada. Muita coisa sobre a vida íntima dele só foi revelada depois da morte do cantor. A sexualidade dele poderia um segredo aberto, mas a imprensa e os fãs o respeitavam. Mercury também nunca foi moralista. Ele disse certa vez em um clube noturno ao radialista Paul Gambaccini: “Querido, minha atitude é ‘foda-se’. Faço tudo com todos.” Apesar de preferir manter relações sexuais com pessoas do mesmo gênero, Mercury também apreciava a companhia feminina e ocasionalmente mantinha caso com elas. Nos anos 1970, ele se relacionou romanticamente com Mary Austin (ele escreveu “Love of My Life” para ela). Na década de 1980, o cantor se envolveu com a atriz austríaca Barbara Valentin.

É verdade que o hedonismo de Mercury foi extremo e ele também abusou da sorte, especialmente depois que deixou Londres e foi morar em locais mais permissivos como Nova York e Berlim. Ele se tornou um cidadão do mundo e aproveitou ao máximo a fama e a fortuna. As histórias das extravagâncias sexuais de Mercury nesta época foram reveladas por testemunhas e participantes fofoqueiros anos mais tarde. Estes casos fizeram a alegria dos tabloides e dos biógrafos sensacionalistas. O cantor também se entregou às drogas e a bebida como se não houvesse um dia seguinte. Mas os detalhes sobre essa fase não são relevantes aqui. O fato é que um dia, em 1987, aconteceu o que Mercury mais temia: ele foi diagnosticado como HIV positivo.

Compreensivelmente, Mercury se retraiu. Ele abandonou a cena noturna de Munique e voltou para Londres. O cantor se instalou em uma mansão em Kensington. A ex-namorada Mary Austin agora atuava como secretária pessoal do cantor e tinha encontrado a casa para ele. Mercury negava que estava doente e seguia trabalhando até onde a saúde permitia. Ele não conseguia mais se apresentar o vivo, mas continuava gravando com o Queen e participando dos clipes. Mas o visual cada vez mais emaciado e frágil do vocalista não deixava dúvidas que algo ruim estava acontecendo. Em casa, Mercury contava com o apoio de Jim Hutton, o namorado mais constante, e de amigos como o baterista Dave Clark, da banda dos anos 1960 The Dave Clark Five.

Freddie Mercury morreu no dia 24 de novembro de 1991, aos 45 anos. Foi Dave Clark, que estava fazendo uma vigília na residência, quem descobriu o amigo já sem vida. A causa da morte foi broncopneumonia causada pelo HIV. De forma premonitória, um dia antes, Jim Beach, empresário do Queen, leu para a imprensa uma declaração autorizada por Mercury:

"Devido a enormes especulações na imprensa durante os dois últimos dois anos, eu gostaria de confirmar que meu teste de HIV deu positivo e eu tenho aids. Eu considerava correto manter em particular esta informação para proteger a privacidade de todos ao meu redor. Mas chegou a hora dos meus amigos e dos fãs ao redor do mundo conhecerem a verdade. Eu espero que todos se juntem a mim, a meus médicos e a todas as pessoas do mundo na luta contra esta terrível doença. Minha privacidade sempre foi muito especial e eu sou conhecido por não conceder entrevistas. Por favor, entendam que esta política continuará."

O velório de Mercury, ocorrido no dia 27, contou com a presença da família dele, dos integrantes de Queen e de amigos como Elton John, Dave Clark e outros. Mercury foi cremado no cemitério Kental Green. As cinzas ficaram com Mary Austin, que as enterrou em um local desconhecido. A fiel Mary acabou herdando boa parte fortuna do cantor, incluindo a mansão onde ele morava e os direitos autorais das canções que ele havia escrito. Outra parte foi para a família. Alguns amigos, como o assistente pessoal Peter Freestone, o motorista Terry Giddings e o ex e confidente Jim Hutton também receberam compensações financeiras.

Em 1985, a morte do antigo galã de cinema Rock Hudson havia chocado o mundo – afinal, a aids ainda era uma doença misteriosa e incompreendida. Inocentemente, ninguém esperava que ela também pudesse atingir celebridades. Em 1991, o mundo já estava um pouco mais acostumado com o mal, mas a morte de Freddie Mercury marcou dias de mal estar. Ele não só tinha milhões de fãs redor do mundo, como também era adorado por toda a classe artística. Mas no final, houve um consenso. Não houve drama e choro em excesso. Todos preferiam se recordar Freddie Mercury com alegria. Era uma retribuição à música espetacular que ele havia deixado. Mercury não era afeito a dramalhões não gostaria disso logo após a sua morte. As músicas do Queen invadiram novamente as rádios e “o show continuava”, como ele havia cantado um pouco antes.