- André Pessoa

A Idade da Pedra

Antes exclusivo dos grandes centros urbanos brasileiros, o crack começa a se espalhar pelo interior dos estados. Campina Grande, na Paraíba, é uma das vítimas do imenso poder destrutivo dessa droga barata

Por Maurício Monteiro Filho Publicado em 19/08/2009, às 13h50

Um colete à prova de balas cria uma sensação confusa em quem o veste. Em vez de emanar proteção, ele parece ser a pena que assim na o atestado de óbito de quem o usa: você se sente mais alvo do que quando está de peito aberto. O colete que eu vestia já grudava no corpo, mais de 12 horas encurtando minha respiração, que já não fluía solta no banco de trás do Gol do Choque da Polícia Militar. O assento traseiro das viaturas é o lugar dos meliantes, no jargão dos oficiais que me acompanhavam naquele dia - e de todos os outros. Mas não deixava de ser inspiradora aquela personificação, enquanto percorríamos a noite da periferia da cidade. Alguns gritos e correria, um grupo reunido em torno de um carro estacionado é alvo de um enquadro. As mulheres vão para dentro das casas - não é sobre elas que pesam as suspeitas esta noite -, enquanto o dono do veículo abre o porta malas, depois de ser revistado. Nada de errado.

Em pouco mais de uma hora , os policiais, espalhados em três viaturas - o quarto carro do comboio, um veículo civil dirigido pelo soldado Emanuel, é o que nos leva -, fazem 11 abordagens como essa . Os alvos são variados, mas qualquer pequena aglomeração de pessoas, especialmente de homens jovens nos becos ou esquinas, já pode se tornar suspeita. Uma moto é abordada, o motorista e o passageiro descem, são revistados e uma onomatopéia é proferida por um dos agentes: é o sinal para desmobilizar o efetivo e voltar às viaturas. Novamente, nada tinha sido encontrado.

Cerca de cinco anos atrás, essa diligência integraria uma rotina mais amena ou p elo menos previsível. Mas, hoje, a presença de um inimigo sorrateiro e incendiário torna o mero ato de patrulhar essas áreas uma roleta russa. N esse período, o crack dominou a periferia d a cidade com u ma virulência com que nenhuma outra droga conseguiu rivalizar. A facilidade de transportar e esconder as pedras aliada a seu baixo custo e a o poder viciante forçaram a eleição do novo inimigo público número 1: o traficante de crack. É ele o objetivo supremo do policiamento ostensivo nessas ações. "Um traficante de maconha, a gente prende e ele obedece. A gora, o de crack, não", conta Emanuel. "Ele parte pra cima mesmo. Uma vez, invadimos a residência de u m traficante que também fumava. Ele pegou um pedaço de pau e apontou para nós, dizendo: 'Para, senão eu atiro!'" Quatro bairros de pois, por volta das 23h, o comandante da operação reúne as v aturas. Um chamado da central informa que houve u m assalto em u ma c idade o órgão, ao longo de todo o a no de 20 00 apenas 11,38 kg foram confiscados em todo o território nacional. Em 2008, mais de 357 k g de crack foram parar nas mãos da polícia. O s n úmeros, entretanto, estão b em a baixo do recorde do período, registrado em 2007, de 580 kg. Se comparados os valores, o volume das apreensões de 2007 é mais de 50 vezes maior que o de 2000.

Esse cenário tende a s e acirrar com o aumento do controle sobre a venda de produtos que podem ser usados no refino da cocaína. Sem essas substâncias - como éter ou acetona, por exemplo -, os traficantes ficam impedidos de colocar mais cocaína pulverizada nas ruas, mas podem continuar produzindo crack normalmente. Apesar de altamente identificado com as periferias e zonas p obres d as grandes cidades, esse s alto do crack também se deve a cidades médias do interior do país. O diagnóstico tem obrigado a PF a ampliar sua presença nessas regiões, com a inauguração de novas delegacias. A Paraíba é u m bom exemplo dessa relação. O estado de Patos tornou-se u m entroncamento importante nas rotas do tráfico pelo Nordeste. O município atingiu esse status por sua posição geográfica privilegiada no centro do estado, a curtas distâncias dos estados do Ceará, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco. O quadro reverbera nas apreensões de crack em todo o estado da Paraíba: de acordo com a PF, em 2005, o volume apreendido somando pasta base e crack foi de 1 ,6 kg. Esse número saltou para 27,3 kg em 2006, 50,7 kg em 2007 e atingiu impressionantes 111,8 kg em 20 08. Nada se compara a 2009, no entanto: apenas entre janeiro e abril deste ano, já foram apreendidos mais de 153 kg.

Uma cidade paraibana que tem voltado suas atenções ao crack em especial é Campina Grande. "O que acontece aqui é uma amostra do que está ocorrendo em todo Brasil", afirma Severiano Pedro. Até março, Pedro era delegado titular da 2ª Delegacia Regional de Polícia Civil de Campina Grande, mas deixou o cargo para ocupar uma nova função, ainda não de terminada. A primeira apreensão de crack registrada em Campina Grande é bastante simbólica da infraestrutura criminal disponível na cidade: ocorreu em 2002, dentro do presídio do Serrotão. Desde então, os números próxima. É lá que vai terminar a madrugada do Choque. "Segunda-feira é um dia parado", diz o tenente Jordani, justificando a falta de apreensões ou prisões da noite. É só na volta para o centro da cidade, já livre do peso do colete, que me lembro de que não estávamos nas periferias da zona metropolitana de nenhuma grande capital, onde o crack já é um velho conhecido. De volta ao centro, percebo que é s ó o c lima de guerra e medo - materializado em grandes edifícios cercados de aparatos de segurança fique faz essa cidade parecer maior. Não estou em São Paulo ou em Porto Alegre, mas em Campina Grande, interior do estado da Paraíba. A ascensão da presença do crack entre as drogas apreendidas no Brasil pode ser classificada como meteórica. Ele é uma variação mais jovem e potente da cocaína. As pedras são resultado da adição de bicarbonato de sódio e água à chamada pasta base - mesma matéria-prima da cocaína em pó e da merla. Em geral, essa mistura é feita com o que r esta do refino da cocaína em pó. Isso resulta numa diminuição drástica do preço das pedras em relação ao pó, por se tratar de u m produto menos nobre e que gera efeito mais forte mesmo com uma concentração menor do princípio ativo da coca. Por todos esses motivos, o crack nasceu pronto para se infiltrar nas classes de menor poder aquisitivo e nas periferias de todo o país. Mas até algum tempo atrás o próprio esquema empresarial do tráfico impedia uma penetração maior das pedras nos pontos-de-venda das grandes metrópoles. O raciocínio é simples: com o poder destrutivo das pedras, em pouco tempo seus consumidores mais ávidos começam a morrer. Sem ter quem compre a mercadoria, o comércio das drogas também morre. A aversão das facções cariocas à entrada do crack nos morros e n as favelas do Rio de Janeiro tornou-se u m célebre exemplo desse pensamento. Pouco a pouco essas barreiras estão cedendo e apreensões frequentes de pedras já vêm sendo registradas na capital carioca. O mesmo ocorre nas regiões metropolitanas de todo o país. Isso se reflete nos dados da Polícia Federal (PF). Segundo vive u ma séria crise fina segurança pública e o tema esteve n as primeiras declarações do novo governador, José Maranhão, que assumiu o cargo em fevereiro, após a cassação de Cássio Cunha Lima e de seu vice. Em março, em visita a órgãos de segurança pública paraibanos, Maranhão classificou a situação como caótica e a estrutura como sucateada.

Uma expressão da situação está na fiscalização das estradas paraibanas, mais especificamente de uma iniciativa datada de 1 988, chamada Operação Manzuá. Manzuá é o nome dado a uma armadilha artesanal comumente usada por pescadores, na qual a presa entra, mas não consegue sair. Na prática, a ação dos órgãos de segurança paraibanos n as rodovias é idêntica: os veículos entram no estado livremente, mas todos - ou ao menos deveria funcionar assim - são abordados nas estradas que levam para fora da Paraíba. Há postos da Manzuá por toda a parte. A intenção inicial era impedir a fuga de assaltantes de bancos e praticantes de furtos. Atualmente, já s e reconhece que o foco de ver e cair s obre o combate ao tráfico de drogas. Extra oficialmente, entretanto, a operação é conhecida como uma caudalosa fonte de propina a agentes policiais, agindo quase como um pedágio. Antes de sermos parados por um policial, o carro d a frente encostou, o motorista abriu u ma f resta de sua janela, trocou umas três palavras com o agente e estendeu pelo vão um número parecido de notas - todas de R$ 1. Em nossa vez, enquanto o policial se aproximava faceiramente, já anunciamos que éramos jornalistas. Não mostramos credenciais ou qualquer outra prova do ofício. O a gente fez uma careta e abanou a mão intensamente. Sem dizer uma palavra, foi extremamente eloquente em nos fazer entender que devíamos cair fora dali o mais rápido possível. Sem deixar nenhum dinheiro. Talvez como reconhecimento da falência da operação, o novo governo tenha anunciado que a Manzuá sofrerá uma série de reformulações.

A situação precária da segurança pública no estado vem se manifestando também na maior ocorrência de casos relativos a drogas nas cidades paraibanas. A capital, João Pessoa, já é regionalmente conhecida como violenta - e o rótulo vai adentrando o estado. A c idade de pedras apreendidas vêm mostrando que o consumo na região cresce vertiginosamente. Em 2006, as apreensões totalizaram 727 pedras. Dois anos depois, atingiram a cifra de 7 mil pedras. Em 2008, ano do auge das apreensões, a Operação Albergue, que envolveu 500 policiais, entre federais, militares e civis, desmantelou um esquema de regalias concedidas a presos no mesmo presídio do Serrotão. Por meio do pagamento de propina a PMs e agentes carcerários, os presos tinham liberdades como TVs de plasma e academia de ginástica, além da maior delas, que justifica o nome d a operação: 22 casas construídas dentro dos muros da instituição, que eles usavam como moradia e escritório para planejar ações criminosas. O vereador Olímpio Oliveira, que já foi superintendente da Polícia Civil em Campina Grande, alerta para o f ato de que " o crack é u ma preocupação crescente na cidade". Já na época da primeira apreensão, em 2002, ele previu na mídia local um aumento do consumo da droga. Hoje, constata tristemente que estava certo.

Oliveira recorre frequentemente aos números para explicar a realidade. Um deles vem chamando sua atenção em especial: o número de homicídios em Campina Grande. Segundo o Mapa da Violência de 20 08, Campina Grande apresenta uma taxa de homicídios de 37,7 para cada 100 mil habitantes - bem superior à média nacional de 25,7. E a v inculação desses números aos do tráfico é óbvia. Até meados de março de 2009, 30 pessoas tinham sido assassinadas n a c idade. A imensa maioria desses crimes teve relação com drogas. Para o vereador, outro indicador deve entrar em jogo nessa análise: a educação na Paraíba. Ele alerta que a d roga já se instalou nas escolas. Efetivamente, de acordo com a pesquisa Retrato da Escola 2, realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e publicada em 2002, a Paraíba liderava no quesito consumo ocasional de drogas nas dependências da escola. Por esse motivo, o novo governador já solicitou ao ministro Tarso Genro apoio para a Patrulha Escolar. E recebeu de Genro o compromisso de incluir a Paraíba no Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Atualmente, a Paraíba é o único estado nordestino que está fora do programa, um conjunto de 94 medidas envolvendo a União, os estados, os municípios e a comunidade, e que t em foco na articulação de iniciativas de segurança pública com ações de fundo social. Se o estado for de fato incluído no programa, passará a contar com apoio para a reforma de seu sistema prisional e uma melhor formação de seus quadros de policiais.

Mesmo sem investimentos suficientes, as polícias de Campina Grande têm sido forçadas a melhorar tecnicamente pela própria realidade do crime na cidade. E a s ruas da periferia são a melhor escola para que isso o corra. O soldado Emanuel Diniz de Araújo, que agora acelera o carro da reportagem para se manter no compasso das viaturas que se aproximam para mais uma abordagem, é u m bom exemplo dessa melhor formação policial. Não é s ó a c élebre tatuagem da faca na caveira, na parte interna do br aço esquerdo, que o faz lembrar o Capitão Nascimento, protagonista d o filme Tropa de Elite. Emanuel, 30 a nos, também passou pelo treinamento intenso e dolorido do Bope retratado no cinema. Mas, no caso dele, isso foi parte da formação para o Grupamento de Ações Táticas Especiais (Gate). Ele é um dos 43 policiais militares paraibanos que fazem parte desse grupamento, entre os cerca de 1 0 mil que integram o efetivo da PM em todo o estado. O Gate é a elite da PM na Paraíba e s ó é chamado em situações extremas, que a s outras tropas não tenham sido capazes de resolver. O treinamento só não fez com que Emanuel tivesse uma visão mais otimista do futuro em Campina Grande e no Brasil: "Todos os estados vão ficar iguais ao Rio de Janeiro".

Já existem diversas conexões entre a criminalidade do Sudeste e a Paraíba. A mulher de Fernandinho Beira-Mar é natural do estado, o traficante tem família e patrimônio lá. "Existe muita notícia de traficante do sul vindo pra cá. A Paraíba virou refúgio para eles", afirma Emanuel. Mesmo a entrada do crack no estado remonta ao Sudeste. A versão mais aceita é a de que paraibanos que moravam em São Paulo, Rio de Janeiro, entre outros, tinham contato com o crack nessas regiões. Dessa forma, quando voltavam ou iam passar férias na Paraíba traziam consigo as pedras. Esse fluxo permanece até hoje, pois, como nunca foi constatada a existência de plantas de produção das pedras na Paraíba, é certo que o estado funciona apenas como receptor do crack . Em Campina Grande, esse movimento se intensifica em grandes eventos na cidade, como micaretas e a festa de São João, pela qual a cidade é nacionalmente famosa, e que dura todo o mês de junho, atraindo gente de todo o Brasil.

Emanuel também faz parte da Guarda Nacional e integrou as tropas que patrulharam o Rio de Janeiro durante Pan-Americano de 20 07. Embrenhou-se p elas vielas dos morros cariocas e a gora f az uso dessa experiência na periferia campinense. "Hoje, a PM a inda entra nesses bairros. M as p ode chegar a o ponto d as favelas do Rio", analisa ele. Os primeiros indícios desse processo já começam a aparecer. Antigas rivalidades territoriais de grupos criminosos tradicionais agora ganham mais um fator de disputa com o advento do tráfico do crack. E são as novas gerações que tomam conta desse novo ramo de negócio, muitas vezes por meio de menores de idade.

O tenente Jordani faz uma ligação. Marca um encontro com seu interlocutor. Em cinco minutos, estamos de volta ao centro da cidade, em u m parque. Um rapaz jovem - depois fico sabendo que ele tem apenas 18 anos - se aproxima, cumprimenta Jordani e entra no banco de trás da viatura em que estou. Pouco tempo atrás, aos olhos da lei, aquele era seu lugar: ele traficava crack. Diante da ameaça de ser preso, negociou com a polícia uma mudança de lado e passou a ser informante. Segundo Jordani, algumas informações fornecidas por ele já tinham gerado estouros de bocas e prisões. Agora, aquela conversa era um teste de fogo à sua conversão: sentava entre um fuzil .62 e uma escopeta calibre 12, com toda a munição que quisesse à sua disposição. Mas ele estava convicto em seguir do lado dos mocinhos. Conta que só com o dinheiro do crack - foi traficante por apenas oito meses - investiu quase R$ 3 m il em acessórios para sua moto. Afirmou ter usado maconha uma vez na vida e nunca ter fumado crack. "Só por isso que eu ganhava dinheiro", explica. Sua família é toda de policiais e o informante diz que seu objetivo também é se tornar policial, o que não parece agradar muito o tenente, que acompanha a conversa. "Eu estava envergonhando o nome da família", diz J. E garante que, se seu sonho se tornar realidade, nunca contará a nenhum dos colegas de corporação sobre o passado dele.

Seu depoimento confirma o retrato que as diversas fontes foram compondo sobre o crack em Campina Grande: a droga vem de São Paulo, de carro. Atualmente, diz ele, o chefe do tráfico está no bairro do Pedregal. Segundo J., a filosofia atual dos reis do crack campinenses é a cumular o máximo de dinheiro possível e investi-lo em armamento. E, para os traficantes que têm tino comercial e s abem que seu maior erro é s e tornar consumidor da própria mercadoria, esse horizonte é bastante factível. "Quando eu estava nesse sistema, a gente ia mandar buscar 1 kg em São Paulo por R$ 8 mil", conta. Na revenda, cada 50 gramas valem R$ 1.200. Isto é, se cada 50 g são comprados a R$ 4 00, o negócio do crack em Campina Grande garante o retorno do investimento e mais 200% de lucro. Mas, se as vendas forem no varejo, para pequenos compradores, essa margem pode aumentar muito. Uma pedra custa R$ 10. Cada 5 g, que valem R$ 130, rendem de 25 a 27 pedras. "É um dinheiro tão fácil que, chega um certo tempo, você se acostuma com ele", relata. "Se um viciado souber que você tem pra vender, ele vai te perturbar até conseguir. Chegou a um ponto de eu vender 50 g em pedra por um carro, um Fiat Uno."

Pelas quantias que movimentava, J. teve dificuldade para sair do tráfico. "Quando você é um avião bom e traz lucro, ele s não deixam você sair, não", conta. Hoje, do lado de fora do movimento, ele se dispõe a entregar quem quer que seja. "Basta me botar aqui [aponta para a parte de trás do carro, que fica protegida por uma grade de arame que impede quem está fora do carro de ver quem está no porta-malas]. Eu me disponho a fazer isso." Seu plano é se informar sobre um traficante que comercializa cocaína em pó, uma raridade por aqui. O tenente Jordani completa: "Já tá aparecendo pó. Quem usa é a classe alta". J., o informante, se despede com o compromisso de ligar para Jordani no mesmo dia, com alguma informação quente, que leve a alguma boca ou traficante. Ele chega a ligar mais tarde, mas só para dizer que ainda não tinha nada. D e f ato, a segunda-feira em u ma d as c idades n a qual o crack ocupa as sinapses de seus usuários é calma.

E meio a todas as histórias m arcadas por crack, traficantes e bocas de fumo no que era uma pacata cidade do interior paraibano que agora se amedronta, ainda está faltando um elemento para fechar o quebra-cabeça: o viciado.

Todas as falas o descrevem como um ser quase "endemoniado", que vê o mundo turvado pela luz que emana do fogo na pedra e conta seu tempo pelos estalos que ela emite enquanto queima. Campina Grande é uma cidade universitária, que atrai técnicos e acadêmicos de diversas partes do mundo. Seu polo tecnológico é reconhecido nacionalmente, e nele se destacam indústrias como as de informática, computação e desenvolvimento de softwares. Coincidentemente, no submundo da pirataria digital, a palavra "crack" designa arquivos que quebram as linhas de programação dos softwares originais e dissolvem completamente seus dispositivos de segurança contra o uso ilegal. É essa alegoria que me vem à mente, enquanto rumamos para a Fazenda do Sol, um centro voluntário de reabilitação de dependentes químicos que fica na BR que leva a João Pessoa.

Mais u ma vez no s desvencilhamos d a armadilha manzuá e chegamos, em pleno domingo à tarde, à casa. A maioria dos internos está sentada diante da televisão. Nem o Treze da Paraíba nem o Campinense, time local, estão jogando, então eles se contentam com Corinthians x Santos. Jorge, um voluntário italiano, responsável pela casa naquele momento, é quem nos recebe. Ele conta que a Fazenda do Sol está completamente lotada com seus 48 internos. Ele diz que, nos últimos três ou quatro anos, a casa sempre esteve assim e que a inda há uma lista de espera. Não por acaso, o período coincide com o aumento do consumo de crack em Campina Grande. A maioria dos internos está lá por causa de d rogas - alguns dos mais velhos são alcoólatras - e todos os envolvidos com drogas caíram pela mesma: o crack. "Antes, havia um percurso do cigarro para a maconha e depois para outras drogas. Agora, eles entram logo no crack, queimando as outras etapas", analisa ele, que trabalha com dependentes há 15 anos.

O retrato comum de quem chega ali pela via dos cachimbos de crack é a de corpos anêmicos, desnutridos e sofrendo de fraqueza. Além disso, com falta de concentração e memória - cérebros "crackeados", reprogramados pela linguagem da droga. "Recebemos um rapaz de 27 ou 28 anos, que tinha 1,68 m de altura e estava pesando 38 kg. É comovente, depois, vê-los se pesando e descobrindo que ganharam 8, 10 kg", conta.

Pelas biografias, o panorama é mais doloroso. Praticamente todos têm passagem pela polícia, roubam em casa e na rua, se prostituíram e violaram o mandamento supremo do tráfico: usaram o crack que vendiam. Atrás da casa, dois família que o internasse. O próprio f ato de s aber que iria se desintoxicar em breve fez com que R . se abandonasse em uma última noite de uso pesado de drogas. Comprou R$ 250 em pedras, fumou tudo, voltou para casa e engoliu todos os comprimidos que viu pela frente, regados com álcool. Pegou a peixeira e desceu contra o pulso. Ia fazer o mesmo com o outro braço, mas as pedras, os comprimidos e a bebida o derrubaram antes que pudesse terminar. Foi sua irmã mais nova quem o encontrou estirado no chão do banheiro.

O Sol começa a se pôr na Fazenda do Sol. Os últimos raios reluzem no metal do fixador externo que mantém no lugar os ossos da perna de S., alvejada num acerto de contas por seu envolvimento com o tráfico. Mas é com F. que a noite que chega tem contas a acertar. Há um mês na casa, ele tem 14 anos e uma carreira mais longa no tráfico do que muitos que se envolvem com o crack. Com 11, começou como "avião" na avenida São Miguel, periferia de São Paulo, vendendo cocaína em internos fazem musculação em uma pequena academia. Um deles tem várias tatuagens. Ele bate o olho na minha e vem correndo. Começa freneticamente a contar que é t atuador e discorre sobre a história de cada um de seus desenhos. Falo sobre o meu. Então ele diz, apontando para o pulso esquerdo: "Tem essa daqui também. Fiz com a peixeira". Só depois de ajustar o foco, percebo que dessa vez não se trata de um desenho, mas de uma cicatriz. R. é do Rio Grande do Norte e está na casa há dois meses. E ainda luta contra a vontade de usar o crack , que invade até seus sonhos com as lembranças da "lombra", a gíria usada para designar o barato do crack. "Minha família pensava que essa coisa de droga era só o cara criar vergonha na cara e dizer 'Eu não quero mais'", diz. Seu contato com o crack começou em sua cidade natal, no interior do RN, mas se acirrou quando ele foi morar em Natal. Quando o vício se tornou incontornável, ele próprio teve consciência de que precisava de tratamento e pediu à pó. A polícia identificou seu rosto e ameaçou levá-lo para a Febem caso ele não fosse embora com a mãe, que tinha planos de ir para a Paraíba. "Foi aqui que eu conheci a pedra, que acabou com a minha vida", afirma ele. Quando já estava imerso na "lombra", sua mãe o deixou sozinho. "Eu não tomava banho, não comia, só traficava, cheirava 'farinha' e fumava". Vivia - e viver, a essa altura, era fumar - à custa de roubos e chegou a s e prostituir. M as fazendo isso não conseguia ganhar dinheiro no ritmo que o cachimbo exigia. Agora o céu está estrelado sobre a fazenda. Para F., essa é a motivação suprema para continuar na luta contra o vício: um céu estrelado. Foi debaixo desse mesmo céu que ele viveu um ano de uma vida que ele encurtava a cada inspirada. Era essa a vista privilegiada de sua casa depois de ele ter chegado ao destino de sua viagem ao fim da noite. E ter transformado em pedra e fumado o telhado da casa onde morava.

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