Ezra Koenig e Chris Baio, do Vampire Weekend -

Cidade dos Sonhos

Festival mais influente dos Estados Unidos na atualidade, o South by Southwest, em Austin, dita tendências musicais e serve de plataforma para bandas brasileiras

Mateus Potumati Publicado em 09/04/2008, às 15h54 - Atualizado em 15/05/2008, às 17h55

No final do século 19, o interior dos Estados Unidos foi tomado por um fenômeno cultural peculiar. Idealizado pelo empresário Lewis Miller e pelo pastor protestante John Vincent, um acampamento de verão para famílias prometia "educação e elevação". Realizado à beira do rio Chautauqua (pronuncia-se "xatáqua"), no estado de Nova York, o evento acabou conhecido por esse nome. Em pouco tempo, vários chautauquas independentes se espalharam pelo país, agregando apresentações artísticas, cursos e discussão de temas sociais. Unindo o faro para negócios de Miller ao espírito comunitário de Heyl, os chautauquas atingiram 40 milhões de pessoas e foram fundamentais para o desenvolvimento cultural e político do país - o presidente Theodore Roosevelt chegou a proclamá-los "a coisa mais americana na América". Além disso, o festival móvel foi um dos precursores da cultura de massa, servindo de inspiração para eventos como o Newport nos anos 60 e o Lollapalooza dos 90.

Depois que a cultura popular virou cultura pop e perdeu a inocência, a maioria dos festivais se transformou em negócios lucrativos, endossados por grossos braços corporativos. Entre os inevitáveis logotipos e toneladas de material publicitário, porém, pelo menos um festival ainda busca objetivos semelhantes ao dos chautauquas originais. Concentrando-se em música e filmes alternativos, painéis profissionais e abrindo mão das arenas para milhares de pessoas, o South by Southwest conseguiu se firmar como um dos eventos mais influentes do mundo na atualidade.

Com um dinâmico parque tecnológico (Apple, Google e Intel têm sede na cidade), Austin, capital do Texas, se destaca como um dos principais centros de cinema dos Estados Unidos, tendo sido eleita pela revista MovieMaker "a melhor cidade para um cineasta morar, trabalhar e fazer filmes". Mas é a música o principal orgulho local. Com 700 mil habitantes, a cidade concentra o maior número de estabelecimentos com música ao vivo por pessoa no país. A vida boêmia gira em torno da região central, em ruas como a 6th, a 4th, a Red River e adjacentes. Na 6th, os clubes se estendem lado a lado, por quarteirões a fio. Esse grupo de estabelecimentos de má fama revelou ao mundo astros tão diversos como Janis Joplin, Willie Nelson, Steve Ray Vaughan e os Butthole Surfers. Em Austin, até taxistas são obcecados por música: a maioria exibe com orgulho sua discoteca pessoal durante as viagens.

Realizado anualmente na primeira quinzena do mês de março, o South by Southwest é a maior expressão dessa cena cultural vibrante. Iniciado em 1987 como um pequeno concurso de bandas, na década seguinte o evento já compreendia um festival de música, um de cinema e outro de tecnologia. Hoje, o SXSW, como é abreviado, recebe mais de 1.500 bandas oficiais, exibe mais de 180 filmes - entre eles estréias mundiais, como a do documentário They Killed Sister Dorothy, sobre o assassinato da missionária Dorothy Stang no Brasil - e é o evento que mais gera renda à cidade. Mais do que um festival de bandas e filmes, porém, o SXSW é um imenso espaço de networking, para onde convergem milhares de músicos, produtores, cineastas e profissionais da área de comunicação. Alguns se saem bem, como a diva número 1 dos tablóides Amy Winehouse e os criadores do Twitter, ferramenta de microblogging que é a mais nova febre na internet. Ambos ganharam o mercado norte-americano após fazerem sucesso na edição 2007 do SXSW.

Naturalmente, nem todos colhem os mesmos resultados, mas a cada ano aumenta o volume de publicidade e de executivos da indústria de comunicação em busca de novos talentos. Esse movimento incomoda aos freqüentadores mais antigos do festival, que se vêem presos no eterno e indissolúvel paradoxo entre sucesso e integridade artística. "[No SXSW] Todo mundo está tentando vender alguma coisa o tempo todo", diz Rostam Batmanglij, tecladista do Vampire Weekend. "Acho que até certo ponto o patrocínio é inevitável, mas isso me preocupa um pouco. Até onde a música underground pode ser sustentada por grandes empresas?", reflete. Sua banda, por sinal, foi um dos principais produtos "à venda" no festival. Além de fazer três shows lotados, o Vampire Weekend enfrentou uma maratona de entrevistas e outras atividades promocionais, numa rotina digna da grande revelação de 2008. "Foi nossa primeira vez lá, tínhamos curiosidade em saber como era. A melhor parte foi poder ver outras bandas", diz.

Para participar do festival, as bandas pagam uma taxa de US$ 30 e enviam material para análise. Após a seleção, o festival oferece ao artista a opção de receber um cachê de US$ 250 ou ganhar passe livre para todos os shows. O resto das despesas fica por conta do artista ou do selo que o representa. Especialmente para grupos brasileiros, os custos de uma viagem aos Estados Unidos podem intimidar. Mas, como garante Fernanda Maia, do Lucy and the Popsonics, em sua primeira turnê internacional, os resultados compensam. "O festival foi importante porque abriu portas para armar a turnê. Quando você coloca no release que vai tocar no SXSW, todo mundo quer contratar o show." O duo de Brasília foi selecionado para o showcase da grife mexicana NaCo, na Flamingo Cantina, na 6th Street. "Eles pediram ao festival uma relação de bandas cantadas por mulheres. Em uma lista com mais de 100 nomes, fomos os escolhidos", conta Fernanda. Mas a grande expectativa da banda, de receber proposta de algum selo, acabou não acontecendo. O apoio da Monstro Discos, sua gravadora no Brasil, é restrito, já que eles não possuem parceiros no exterior. "Na hora de marcar os shows da turnê, era difícil conseguir um cachê melhor, porque não tinha selo promovendo." O balanço, mesmo assim, foi positivo: "O que a gente esperava não aconteceu, mas em compensação tivemos boas surpresas", comemora.

Mesmo o paulistano Curumin, que tem agente próprio nos EUA e já está na quarta turnê no exterior, faz coro: "Esse festival é especial, sem dúvida. É um dos maiores do mundo de música alternativa. Se alguém me perguntar quais shows eu já fiz, o SXSW vai ser um dos primeiros de que eu vou falar". Com o apoio de sua gravadora norte-americana, a Quannum Projects, ele tocou no showcase da rádio californiana KCRW e dividiu o palco com artistas como Money Mark, Tommy Guerrero e The Ting Tings. "Na real, o mais legal de estar em um festival como esse é que você vê coisas tão boas que fica muito inspirado para tocar também", comemora.

Porém, apesar de bons resultados individuais - além de Curumin e Lucy and the Popsonics, Fruet & Os Cozinheiros e Tita Lima também se destacaram -, o alcance da música brasileira no SXSW, e no exterior de uma forma geral, ainda deixa muito a desejar. Ironicamente, o ambiente não poderia estar mais propício: o interesse mundial pelo Brasil só aumenta, e a cena musical no país vive um período de fertilidade. Ao mesmo tempo em que o sucesso de bandas como CSS e Bonde do Rolê e do filme Cidade de Deus criou uma demanda por novidades, grupos descolados como Vampire Weekend e um bom número de críticos musicais endeusam cada vez mais a tradição da bossa nova e da tropicália. Enquanto isso, no Brasil, a Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN) conta com mais de 30 festivais afiliados, que são um celeiro inédito de novos talentos. O problema é que, devido à falta de apoio, as poucas histórias de sucesso no exterior são fruto de esforços individuais.

No SXSW, as iniciativas mais bem-sucedidas são aquelas feitas em grupo. As bandas britânicas, por exemplo, tinham um clube inteiro à disposição. Canadá e Austrália dividiam um espaço à frente do centro de convenções, com churrasco e bebida de graça e bandas o dia todo. Nesses países, e em vários países europeus, é comum que o governo cubra todos os custos de viagem dos grupos, por meio de sólidos programas de incentivo. O Brasil possui relativamente poucos programas do tipo, como a Lei Rouanet e o Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural da Secretária de Incentivo e Fomento à Cultura (SEFIC) e do Ministério da Cultura (MINC). Mesmo assim, o acesso e a abrangência dessas iniciativas são insatisfatórios. Dentre os artistas brasileiros participantes do festival, apenas os gaúchos do Fruet & Os Cozinheiros conseguiram custear suas passagens pelo programa. A reclamação constante é que essas leis privilegiam nomes já consagrados, deixando de fora os setores que realmente precisam de incentivo. Fernanda Maia, afirma não existir ajuda efetiva para artistas em começo de carreira. "Um investimento mínimo [do governo] poderia gerar um grande boom de cultura brasileira no exterior." A banda prepara um relatório sobre a turnê, com todos os custos relacionados. A idéia é que a ABRAFIN utilize o material como base para negociações com a BM&A, organização ligada ao MINC que cuida da difusão da música brasileira no exterior. "Pode ser que, com os nossos erros, as bandas no futuro se dêem melhor", fala, esperançosa.

Esperança e idéias são a matéria-prima mais rica da humanidade. No final das contas, o South by Southwest é um grande gerador e retransmissor de idéias. Como no filme Waking Life, do cineasta (nascido em Austin) Richard Linklater, é quase possível enxergá-las em ebulição no ar texano, ascendendo até alcançar e alimentar o que os intelectuais Vladimir Vernadsky e Teilhard de Chardin chamaram de noosfera, a consciência coletiva humana. A novíssima geração da música brasileira está cheia delas, à espera de uma chance para ganhar o mundo.

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