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A Odisseia de Paulo

Lançando o 22º livro, Paulo Coelho reafirma sua própria importância intelectual e divaga sobre o Oriente Médio, Ulysses, engajamento e aquecimento global

André Rodrigues Publicado em 17/09/2012, às 11h59 - Atualizado em 25/09/2012, às 11h50

Paulo Coelho saiu de casa, queimou 239 calorias ao andar 3 km em 40 minutos e agora está de volta a seu lar em Genebra, na Suíça. A frase anterior não evoca nenhuma odisseia ou grande feito – e dá um tuíte. Mas tudo o que foi dito na internet enquanto o escritor brasileiro mais famoso no mundo caminhava, preencheria muitos livros. Naquela noite de agosto, quando marcamos uma conversa pelo Skype, ele estava sendo citado por todos os cantos do planeta. Tudo porque comentou em entrevista a um jornal brasileiro que Ulysses, o clássico de James Joyce, é só estilo e daria um tuíte se dissecado. Foi como se ele tivesse queimado um livro sagrado na TV, em horário nobre, e ainda pisoteado as cinzas. Mas Paulo Coelho, compositor, parceiro de Raul Seixas, conhecido como O Mago, tinha feito apenas uma observação. Paradoxalmente, o planeta estava prestando atenção na palavra de um dos autores mais rejeitados pela crítica considerada séria.

Paulo Coelho foi capa da edição 23 da Rolling Stone Brasil. Leia aqui.

Aos 65 anos e lançando seu 22º livro, Manuscrito Encontrado em Accra, ele chega do seu exercício, entra na nave espacial – como chama seu escritório – e aparece na tela do computador sem aparentar nenhum nervosismo diante da pressão vinda da arquibancada virtual. Ele pede um café para a sua mulher, Christina Oiticica (com quem é casado desde 1979), e me mostra algumas das coisas que o cercam na residência de Genebra – um quadro de Romero Britto (com ele e Christina), um maço de cigarro, seu material de arco e flecha e uma TV. Ele está preocupado com os resultados do Brasil nos Jogos Olímpicos de Londres (naquele dia, vôlei e boxe viviam momentos decisivos). Com 13,5 milhões de seguidores no Twitter e Facebook, ocupando a cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras, Paulo está sorridente, solícito, e joga sem se incomodar com o susto que levou no ano passado, quando sofreu uma intervenção cirúrgica para desobstruir artérias do coração. Pergunta se eu fumo e se tenho parentes cardíacos. Estabelece facilmente uma intimidade. Acende um cigarro e começa a falar.

Pegaram no seu pé por causa das suas declarações sobre Ulysses...

Não, não pegaram no meu pé, não. Fiquei muito bem impressionado. Todos os jornais do mundo deram. [Ulysses] dá um tuíte e é chatíssimo. Você já leu?

Tentei algumas vezes, mas não li, não.

Eu li. Era obrigado a ler.

Eu me sinto obrigado a ler. Vou tentar.

Não vale a pena. Leia os livros que te dão prazer. Isso é o que o Andy Warhol disse: a pop art é a arte que te dá prazer. É por aí. Daí esse ranço da intelectualidade.

É uma reação desmedida? Você pensa nisso?

Eu estou muito contente! Esses caras estão me levando a sério. Aliás, coisa que deveriam ter feito desde o começo. Ah, eles me escutam? Coisa boa. A reação é porque sou eu. Surpreendente? Sim. Viral? Sim. Conclusão: intelectual tradicional não tem absolutamente nada o que fazer. Nada, nada.

Seu novo livro se passa na Jerusalém de 1099. Como você acompanha a questão do Oriente Médio, Palestina e Israel?

Eu tenho uma obsessão por essa área do planeta. Acho que tudo começou ali e tudo vai acabar ali. O que mais me impressiona é que as perguntas do passado continuam hoje. Pra mim, o momento de transição foram as cruzadas. Essa coisa horrorosa em nome de Deus. E a partir daí nunca mais a coisa se acertou. Minha fascinação vem de uma área de conflitos insolúveis, onde todos os lados têm razão, onde o aspecto teológico está muito presente, onde a confluência religiosa é muito presente também. O que você vê é que o mundo tende a um conflito. Eu estou falando muito complicado para a Rolling Stone?

Não, está ótimo. Quero justamente saber a sua opinião sobre aonde a gente vai chegar lá, se vamos chegar a um ponto...

Não vamos chegar a ponto nenhum, infelizmente. Já fui mais otimista. Vejo a tensão cada vez crescendo mais. E não é só isso. Vejo as possibilidades que se tinha sendo eliminadas pouco a pouco. Você vê a coisa decaindo. É como ver uma geleira dando uns estalos. Acho que infelizmente aquilo vai virar um barril de pólvora. O homem está atravessando o maior período de paz da história. Desde 1945 não temos um conflito generalizado. Isso nunca aconteceu antes. Estive recentemente conversando com o futuro candidato ao prêmio Nobel de Economia. Ele conta os ciclos de crises desde o antigo Egito até hoje. São ciclos de destruição massiva. Tá se segurando, mas se olhar a história... De tempos em tempos, o ônibus dá uma freada, e todo mundo se ajeita.

De certa forma, isso se reflete um pouco em Manuscrito Encontrado em Accra.

Quis fazer um livro já meio que prevendo esse momento. O slogan: o que resta quando for tudo destruído? Quais são os valores? O que fica com a gente? O que a gente tem que guardar? A maneira que eu escrevi este livro é: se você pegar a frase A, a frase B, a frase C, ela vai se aplicar a toda estrutura do livro. Eu já escrevi um livro pensando nisso, que os escritores se recusam muito a admitir, que é uma revolução da língua. Porque Joyce esgotou aquela coisa. Ele resolveu liquidar o tema do romance indo só com estilo. Os escritores passaram a imitar Joyce. Acho que na medida em que você perde essa importância da palavra, da história, você perde a essência. As pessoas se esqueceram de escrever coisas do tipo: “com o suor do seu rosto”... As pessoas se esqueceram da essência da palavra. Essa comunidade literária passou a se reduzir a pessoas falando para outras pessoas e também tentando impressionar outras pessoas. E ignorando o que está acontecendo ao redor.

E o formato físico da palavra? Acredita que vamos para o fim do livro?

Não, de maneira nenhuma. Caminhamos para o fim de um estilo que já não existe, desde que Joyce esgotou todas as possibilidades. A partir daí, porra, como ninguém entendeu, o conteúdo sofreu muito. Aí vem o fascismo cultural. Fascismo cultural é o seguinte: “vocês não entendem nada, nós entendemos tudo”. Desde Dario, na Pérsia, a comunidade da informação era a mais importante. Você tendo a informação na mão, você tem as pessoas no bolso, você tem tudo. Quando você elitiza essa informação, a primeira tendência das pessoas... Você diz “meu Deus do céu, aqueles caras sabem mais do que eu”. Quando se trata de inteligência política e militar, realmente. Mas a intelligentsia... Voltamos a uma velha história. Aquela da roupa do imperador. Você conhece essa história?

A Roupa Nova do Rei?

Exatamente. O rei está nu. E ninguém ousa. Até que a criancinha fala: o rei está nu! De repente estamos na fase: o rei está nu. O imperador não tem roupas. Esse pessoal que dizia que sabia tanta coisa na verdade não sabe nada, nada. Onde estão os valores? As pessoas começaram a entender que o rei estava nu. E hoje o rei está nu. Uma vez eu falei... Não vem ao caso. Deixa pra lá.

Pode falar.

Uma vez eu falei que era o intelectual mais importante do Brasil. Pois eu reforço. Como a gente acabou de ver, tive um upgrade para um dos intelectuais mais importantes do mundo [risos]. Uma repercussão em cima de uma coisa que eu disse que todo mundo se manifestou. Mantenho essa criancinha que diz “o rei está nu”. Tenho essa criança aqui. Agora, as pessoas acham que eu sou um boboca [risos]. Problema delas.

Mas você não sente...

... Aí eu vou lá e digo, repito e enfatizo: eu sou o intelectual mais importante do Brasil. Por quê? Porque tenho alguma coisa a dizer. E para todo mundo, e não entre os intelectuais.

Você se sente sozinho? Tem interlocução?

Não, não me sinto sozinho, não. De jeito nenhum. O que eu senti nesse caso do Ulysses foi a gigantesca onda de apoio. Primeiro eu achava que não teria essa repercussão. Depois achava que só ia levar pau. E finalmente fiquei muito impressionado com o apoio de gente que eu nunca esperei, nunca imaginei.

Voltando a seu novo livro, com aquela invasão dos cruzados, há uma expectativa sobre o fim. Isso está ligado a alguma questão de hoje, por causa dessa história de 2012, o fim do mundo, aquecimento global etc.?

Esse negócio de 2012 é uma bobagem, vamos e venhamos. Eu nunca comprei isso. Isso é ridículo. Aquecimento global... Quando se fala na relação do homem com seu meio ambiente, se fala baseado numa presunção sem limite. Ou seja, “vamos salvar a Terra”. Ora, porra, quem é você para salvar a Terra? A Terra é mil vezes mais poderosa que você. Ou você se comporta, meu filhinho, ou acabamos com você. Acabamos com os dinossauros, que eram muito mais poderosos. Entendeu? Mas a gente já inverteu os valores. Salvar o planeta? Não seja ridículo.

Algo paternalista.

Totalmente. Arrogante, arrogante!


Sobre o Brasil, como tem visto essa reclassificação do país aí fora?

Há essa reclassificação, ainda com desconfiança. Reclassificado para melhor. O Brasil está na moda. Graças a Deus.

E sua divisão de tempo? Fica só na Suíça?

Só. E vou para o Brasil. Mas nunca digo quando vou ao país, porque se não todo mundo vai querer me encontrar ou pedir uma entrevista. O que eu não faço desde 2006 é tarde de autógrafos e praticamente não dou mais entrevista. Eliminei intermediários porque já que converso com nove milhões de pessoas no Facebook, cinco no Twitter, sabe? O alcance é muito maior.

Você é muito ativo na internet.

Eu gosto. Não faria isso, ou não teria sucesso nisso, se não eu gostasse. Não teria sucesso na literatura, se não gostasse. Não teria sucesso em música, se não gostasse. O prazer acima de tudo, entende? Eu gosto muito. Sempre estou nesses eventos tecnológicos.

Você continua viajando muito?

Nada. Parei de viajar em 2009. Em 2009 eu falei: quer saber, eu viajo desde que era hippie. Parei. Primeiro eu achei que era algum problema mental. Comprei um avião em 2006. Até 2006 viajei pra cacete tendo que encarar aeroporto. Agora não encaro mais aeroporto. Mas quando me mudei para Genebra me vi num lugar ideal. Rio de Janeiro e Genebra. Rio de Janeiro porque é minha terra; e aqui porque é roça. Roça total. Parei de viajar. Mas graças a Deus recebo convite todo dia. E não vou.

O seu novo livro foi escrito no mesmo tempo dos anteriores, ou seja, em duas semanas?

Em 15 dias. Escrevi em 15 dias, só que era três vezes maior. Eu contava duas histórias, elaborava mais o que estava ocorrendo em Jerusalém, um pouco de aventura, os diálogos lá fora. Aí cortei. O que é difícil. Vamos ao que interessa. O que interessa é o que o grego está dizendo ali para as pessoas, e ponto final.

E essas coisas você corta e faz o que com elas?

Jogo fora.

Se eu vasculhar seu computador, não vou encontrar, não?

Não! Eu deleto. Isso vai ficar aí me assombrando. Uma vez guardei um livro que eu tinha escrito baseado em Rebecca – A Mulher Inesquecível. Aí aquele livro ficou ali me assombrando. Não publiquei e deletei. Uma vez escrevi um livro... li um artigo no The New York Times sobre coleção de selos. De alguém que falava que o pai colecionava selos e quando ele foi ver a coleção de selos do pai, 70% daqueles países não existiam mais. Que puta história. Aí peguei e escrevi uma história em cima disso: uma mulher que resolvia visitar esses países que não existem mais. Muitos dos quais eu já estive. Aí parei no meio e não me entusiasmei até o final e deletei.

Sem arrependimentos?

Quer saber? O que não vai faltar é criatividade. Deleta isso aí.

Não ter arrependimentos, não remoer as coisas... Você tem isso como filosofia de vida?

Tenho, tenho. Graças a Deus. Tenho arrependimento, às vezes, de ferir uma pessoa, ser um pouco mais agressivo, né. Aí eu peço desculpas. Mato, mas peço desculpas antes [risos]. Entende? “Estou te matando porque você merece ser morto, mas não queria ser tão agressivo com você assim.” [risos] Mas faz parte da regra... Aceitar o combate. Perco, ganho... Não ganho todas, mas ganho a maioria. Mas sem nenhum rancor. Voltando para a panelinha, o que mais me surpreende é que esses caras ficam escrevendo réplicas. O cara faz uma crítica, o outro faz uma réplica. Já reparou nisso? Que coisa pobre, pelo amor de Deus.

Há quatro anos, aqui na Rolling Stone, você comentou que entre o Bono e a Amy Winehouse, ela estava fazendo “mais e melhor” para a humanidade.

E continuo achando isso.


Você também disse que ela iria sobreviver e servir de exemplo para muita gente.

Errei, errei. Não sou profeta. Meus dons de profecia são muito limitados. Acontece de vez em quando, né. Errei. Mas acho muito importante o que a Amy Winehouse deixou. Enquanto o Bono, com todo o respeito que tenho por ele, com todo o respeito que tenho pelo Bruce Springsteen, com todo o respeito que eu tenho pelo Bob Geldof... Não dá. Um cara que é meu amigo pessoal e vejo fazer coisas consistentes é o Peter Gabriel. Mas não aparece. Ele faz coisas mesmo. As coisas que têm que ser feitas.

Quais são as coisas que importam, por exemplo?

O YouTube é muito mais revolucionário do que a denúncia do filósofo X sobre o artigo Y, entende? Se você acha uma coisa injusta, acaba com essas besteiras de petições, que recebo todo dia para assinar na internet, vai para o campo, grava o que não está gostando e coloca no YouTube.

A gente viu agora a importância disso na Primavera Árabe...

Estamos vendo isso na Síria. Agora, pô, posso colocar minha palavra no Egito? Vou colocar minha palavra. Eu sei o valor da minha palavra. Não é só para falar mal do Ulysses, é também para falar bem de certas pessoas. Eu tenho consciência do peso da minha palavra. Uso o peso da minha palavra nos momentos em que eu achar relevante. Agora, não vou acreditar em petição todo dia para “ah, assina minha petição”. Não assino. Vai à luta, cara! Quer mudar alguma coisa? Não vem com petição que não vai servir pra nada. É o chamado “clickativismo”, sabe? Clicou ali e sente que salvou o Haiti.

E o futuro? Já tem coisas planejadas?

Não tenho nenhum plano, não. De repente me dá uma louca, posso me dar esse luxo, de ter plano. As pessoas querem viver eternamente, mas não vão viver eternamente. Aproveita. Eu acredito em vida após a morte. Mas não vou ficar esperando a vida após a morte para fazer as coisas de que eu gosto. Nunca esperei. Você me pergunta dos meus planos amanhã, eu só tenho um: respirar. O resto eu falo que tô ocupado. Tô ocupado, vivendo. Deus te abençoe.

paulo coelho manuscrito em accra

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