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Autoramas: a banda que nunca existiu

Assumindo a independência e criando seu próprio padrão, o trio alcança o topo do seu mundo - e não quer parar de crescer

Mateus Potumati Publicado em 22/09/2008, às 18h43 - Atualizado em 20/02/2013, às 15h05

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Os Autoramas querem mais da independência - Louise Chin
Os Autoramas querem mais da independência - Louise Chin

A humanidade é engraçada: tudo sempre começa numa roda. Nesse caso, foi uma roda de gente. Aterro do Flamengo, manhã ensolarada de sábado, à sombra de um pé de abricó. No carrinho de um cara chamado Gonzaga, Gabriel Thomaz, líder do Autoramas, abre a primeira cerveja antes do almoço. Difícil imaginar clima mais propício para entrar no universo particular de "um dos maiores talentos do rock brasileiro", nas palavras do produtor Carlos Eduardo Miranda. Convidados a sentar, nos ajeitamos nos únicos banquinhos à disposição. Parecia que estávamos sendo aguardados, porque logo depois nos engajamos num encontro randômico com um Brasil ideal: loucos vanguardistas, cérebros iluministas anacrônicos, exotismos e quixotismos de ocasião debatendo livremente. Em roda, claro.

Por alguns momentos, a crueza da inegável realidade carioca, brasileira, cede lugar à celebração da malemolência, à celeridade de encaixes sintáticos, por vezes simplórios, mas sempre cúmplices. Num dado momento, a conversa é apimentada pela pergunta de um deles: "Que vantagem a democracia trouxe?". Eu e Gabriel, alvos da pergunta, nos entreolhamos, esperando decidir qual dos dois responde. Eu me arrisco: "A liberdade?" O contra-ataque é imediato. "Que liberdade? Hoje eu tenho um medo de sair na rua que nunca senti na ditadura." Argumento espinhoso, ainda mais porque a primeira lembrança política de dois caras na faixa dos 30 é a campanha das Diretas Já. O que sabemos sobre antes disso, devemos a livros, imagens e histórias. Mesmo assim, retrucamos, bravamente. Mas a discussão não dura muito. Tudo logo se dilui na abençoada chacota carioca. Combina muito mais com a paisagem, sem dúvida. Mas o embate fica na cabeça, reagindo com o etanol. O romantismo obscurantista do passado contra a inevitabilidade arrogante do mundo moderno. Equação insolúvel?

Pouco depois, no almoço, o assunto volta à tona. Falamos sobre "Mundo Moderno", primeira faixa de Teletransporte, disco novo da banda de Gabriel. A letra da música não faria feio na roda do Gonzaga: "Chega de tanta liberdade/Tem gente que nasceu pra ser obediente/Mundo moderno/Me tirem desse inferno." Como nossos parceiros da manhã, o alter ego surtado de Gabriel prefere a segurança do passado. O Gabriel de verdade, junto com Bacalhau e Selma Vieira, mais conhecidos como Autoramas, também tem uma queda por tempos remotos: seu "rock para dançar", como gostam de se definir, é repleto de referências brasileiras obscuras pré-Jovem Guarda, passando pelo Roberto Carlos dos anos 60, pela surf music de Ventures e Dick Dale, e chegando à new wave de Devo e B-52's. Mas, ao mesmo tempo em que cultivam respeitáveis coleções de vinis antigos, eles só chegaram até aqui graças a um salto cego em direção ao futuro. "A letra é irônica, claro. Acho exatamente o contrário", esclarece Gabriel, de cara. A fala rápida e de riso fácil adquire um tom mais sério: "Claro que seguir tudo que aparece é uma merda. Mas tem gente que não consegue se adaptar, não consegue escolher. Eu sei muito bem o que eu quero. O que eu faço, musicalmente e na minha vida, é por meio de escolhas próprias. Eu não nasci pra ser obediente".

Dez anos depois - sendo que Gabriel e Bacalhau têm quase 20 de estrada -, o Autoramas já viu de tudo. Já foram a sombra do Little Quail and the Mad Birds, banda anterior de Gabriel que "quase estourou" nos anos 90. Já acenaram para o sucesso em 2000, quando o disco Stress, Depressão & Síndrome do Pânico foi adotado pela Universal ("Nunca fomos da Universal, o disco apenas foi distribuído por eles", ele faz questão de frisar) e em 2005, quando o clipe de "Você Sabe" ganhou três prêmios no VMB, incluindo o de Melhor Direção. Já perderam uma integrante fundamental, a estilosa baixista Simone do Vale, que deixou a banda no final de 2004 e é lembrada pelos fãs até hoje. Já caíram em roubadas pelo Brasil, mas também já excursionaram em grande estilo por Japão, Europa e América do Sul. Com todos os problemas próprios de uma estrutura completamente independente, o Autoramas construiu um caminho único no rock brasileiro. São "uns 40 mil CDs vendidos", segundo um levantamento feito por Gabriel enquanto espeta um bife. A conta exata é impossível de ser feita, porque a maioria dos discos foi vendida em shows, e pelo menos metade no exterior ("Só no Japão, foram 10 mil. Pelo menos foi o que os produtores de lá disseram", ele diz, soltando uma risada). Também entraram na dança 1.600 compactos em vinil, em plena era do mp3. "Dessa eu tenho certeza", Gabriel garante: "foram quatro discos, 400 cópias de cada". Se as vendas são modestas em termos de "mercado", é bom lembrar que aqui a fatia da banda beira os 100%. Por meio dos Raimundos, ainda, Gabriel emplacou dois megahits nas rádios brasileiras: "Aquela" e "I Saw You Saying", esta em parceria com o vocalista Rodolfo. "Foi aí que comprei meu apartamento", revela.

A agenda de shows do Autoramas não tem paralelo com nenhum outro grupo no país. São mais de 100 apresentações por ano, ou, como ele prefere dizer: "A única banda independente que faz mais shows que a gente é o Calypso". Ele ri novamente, e parece estar bastante satisfeito. A regularidade do trio chama a atenção até de grandes produtores de shows: "É muito engraçado, a gente anuncia uma turnê e dias depois bandas grandes correm atrás dos mesmos locais. Os próprios donos das casas de show contam isso pra gente. Às vezes, produtores grandes ligam direto pra mim, pedindo contatos. Um deles já me perguntou coisas como quantas camisetas a gente vende por show. Porra, cara, sério? Vem perguntar isso pra mim?" À medida que fala, Gabriel vai fazendo inferências lógicas simples e rápidas, jogando informações como em uma música de três acordes. De tão enxuto, torna-se um anti-discurso, longe tanto dos jargões indie como da ensebação de artistas megalomaníacos. "O cara que viveu os anos 80, o auge da indústria do disco e do rock no Brasil, não acredita que a gente trabalhe assim. Dizem: 'Parabéns pelo pique, mas nós não fazemos esse tipo de coisa'. Por outro lado, muitos indies ficam repetindo um discurso ideológico que eles nem sabem o que quer dizer. Tudo mudou, só que neguinho quer viver o passado, logisticamente falando. A rádio mudou, a internet chegou. As coisas que tinham uma função antigamente têm outra hoje. Tem que ser moderno. Tem que sair na frente."

Os resultados são respeitáveis, ainda mais se levarmos em conta que o grupo vem da pátria da bossa nova e do funk, com uma média de 500 bailes por fim de semana. A "brasilidade", aliás, é assunto que chama atenção de Gabriel, para quem "o Brasil é muito grande pra caber num estereótipo musical só. Eu sou de classe média, nunca morei numa favela, no interior, no Nordeste... E a minha cultura é brasileira, cara. Eu não sou norte-americano, não sou europeu. A gente canta em português, fala das coisas que a gente vive aqui". A opinião, ele diz, foi confirmada pelas viagens da banda ao exterior: "Sempre me falaram que, pra ir tocar lá fora, precisa fazer uma coisa 'exótica' aos olhos deles. Isso é a maior mentira. No mundo, as pessoas gostam de música boa, tem gosto pra tudo [por lá]. A gente foi fazer turnê no Japão e na Europa e ninguém veio perguntar da bossa nova, do samba. Nossa forma de fazer rock é brasileira, como a Jovem Guarda também era 100% brasileira".

A reincidência do termo "Jovem Guarda" neste texto não é acaso. Infantilizado e banal para a bossa nova e inocente demais para muitos roqueiros, o movimento é cultuado por Gabriel e por Bacalhau. Mais do que nerds de vinil que compram tudo sobre a época, os dois ainda resgataram um símbolo daqueles anos: o tecladista Lafayette Coelho. Lafayette é mais lembrado por tocar teclados em vários discos de Roberto e Erasmo, mas é considerado essencial na construção da própria identidade sonora dos dois. "Tira os teclados dos discos do Roberto pra você ver", resume Bacalhau. Com o tecladista e outros amigos, montaram o grupo Lafayette e os Tremendões, que faz releitura de clássicos da Jovem Guarda. "Tocar com o Lafayette é uma honra", diz Bacalhau, "ainda mais no Brasil, onde as pessoas só homenageiam quem já morreu". Ele e Gabriel rejeitam a idéia de que a Jovem Guarda era inofensiva. "É uma questão de contexto", diz Gabriel. "O Roberto Carlos estava longe disso. Mandar tudo pro inferno, nos anos 60, foi um puta impacto. Depois ele diria ainda: 'Tudo que eu gosto é ilegal, imoral e engorda'." Ele também não esquece da parte musical: "A Jovem Guarda é rica em melodia, harmonia. Nesse sentido, nosso trabalho é uma contribuição a eles", conclui. Pergunto, claro, o que ele pensa sobre o Rei ter proibido sua autobiografia. "O que eu posso dizer? É um absurdo, o livro é maravilhoso, essencial pra entender a música brasileira." Mas, no fim, o exemplo positivo prevalece: "O que eu admiro no Roberto é o seguinte: ele tentou durante anos ser igual aos caras [da MPB], mas só conseguiu alguma coisa sendo diferente. Eu não sou independente por opção. Quando comecei [no Little Quail and the Mad Birds], achei que ia entrar numa gravadora, que minhas músicas iam tocar na rádio, que eu ia me dar bem... Tipo [o que aconteceu com os] Raimundos... Mas só consegui fazer alguma coisa quando segui meu próprio caminho".

Esse caminho vem sendo trilhado desde 1988, quando Gabriel montou com os amigos Zé Ovo e Bacalhau (o outro, que já passou pelo Rumbora e atualmente é baterista do Ultraje a Rigor) o Little Quail, em Brasília. "Tudo começou na turnê da Parati, em 1991", lembra Zé Ovo, ex-baixista do trio. Parati, no caso, não é a cidade, mas o carro: "Fechamos alguns shows e caímos na estrada. Imagine como era fazer as coisas sem internet. Como a gente precisava tentar fazer mais grana, entrávamos em cidadezinhas no meio do caminho, na louca, e quando víamos algum cabeludo perguntávamos se tinha lugar pra tocar, onde era a loja de discos da cidade, etc". A viagem, claro, foi repleta de roubadas, mas foi aí que Gabriel começou a montar sua rede de contatos. "Nós e outras bandas começamos a circular. As fitinhas do Little Quail rodaram o Brasil. E até hoje o Gabriel tem esse jeito de pensar, de ser independente de verdade, no dia-a-dia. Foi assim que ele montou essa puta agenda", confirma Zé Ovo. Em São Paulo, uma dessas fitinhas chegou até o produtor Carlos Eduardo Miranda, na época repórter da revista Bizz. "Ele ligou pra gente daquele jeito: 'Bah, velhinho, '1, 2 , 3, 4' virou hit aqui na redação', e aí a história com ele começou", lembra Zé Ovo. Depois de participar de uma coletânea da 89FM, de São Paulo, então uma rádio rock, o Little Quail teve algum sucesso nas rádios da cidade e se tornaria um dos principais nomes do Banguela, selo criado por integrantes dos Titãs dentro da Warner. "Foi uma época louca", lembra Miranda. "Um dia, a banda foi fazer umas fotos. Levaram o Zé Ovo e ele não voltava, demorou pra caralho. Quando voltou, só soube dizer que 'tiraram um monte de foto'. A ficha só caiu no mês seguinte, quando a Revista Capricho chegou às bancas e ele tava lá, como 'gatinho do mês'! O Zé Ovo, gatinho do mês da Capricho! A gente não acreditava, neguinho tirou muito sarro dele." Mas o Little Quail nunca decolou. O sucesso dos Raimundos eclipsou as outras bandas do selo, pondo os três numa amarga geladeira. "Foi foda", lembra Gabriel, "a gente ficou completamente duro e deprimido, fumando maconha o dia inteiro. Até hoje eu não suporto o cheiro, porque me lembra muito essa época". Zé Ovo completa: "Eu já estava ganhando mais dinheiro como roadie das bandas da Warner do que como contratado deles. Fiquei puto, e foi aí que a banda acabou".

Gabriel se mudou para o Rio, mas, para que o Autoramas surgisse, outra banda ainda teria que se dissolver. "O Acabou la Tequila foi um momento crucial pra nova cena de rock do Rio", lembra Gabriel. De lá sairiam, além dele próprio, Nervoso, da banda Nervoso e os Calmantes, Renato, do Canastra, Leão, da Orquestra Imperial, Donida, do Matanza, e Kassin, que se tornaria um dos principais produtores musicais do Brasil e ainda levaria seu próprio projeto musical, o +2. Gabriel, que já conhecia Simone do Vale, levou Nervoso e montou uma primeira versão da banda, em 1998. "A Simone namorava o Donida. Eu a achava engraçada pra caramba e sempre quis fazer uma coisa meio B-52's, com um cara e uma mina cantando. Achava que ela tinha carisma pra ser rockstar, era fã mesmo", conta. "Mas ela era mal aproveitada nas bandas em que já havia tocado. Além disso, era assessora de imprensa do Planet Hemp e não esperava mais nada [da música]. Parecia que se auto-sabotava. Eu tive que botar uma pilha monstruosa pra ela tocar."

Pouco depois, mais alguém faria a ponte Planet Hemp-Autoramas: Bacalhau, que formaria com Gabriel o núcleo duro da banda. Entre Ipanema e o Arpoador, "onde filmaram o clássico 'Garota Dourada'", Bacalhau conta que "o clima no Planet estava meio estranho, até que o Marcelo [D2, então líder do grupo] veio pra mim e disse: 'Você não faz mais parte da banda'. Na hora fiquei sem entender, mas depois ficou claro o que tava pegando". Ele se refere à carreira solo de D2, que seria lançada em 1998 e costuma ser creditada como a principal razão do fim do Planet Hemp. Ele e Gabriel haviam se conhecido meses antes e, para surpresa mútua, tinham interesses musicais em comum. Quando Nervoso deixou a banda, Gabriel não pensou duas vezes. Com Simone no baixo e Bacalhau na bateria, o Autoramas gravou três CDs e consolidou uma carreira na base do "faça você mesmo". A chave de tudo, para Gabriel, é uma palavra que ele entoa como um mantra: "logística". "Como eu tive o Little Quail, que era um trio, sabia que era mais fácil de viajar assim." E Roberto Carlos, sempre ele, volta à conversa: "Enquanto a Tropicália foi pra um caminho Sgt. Pepper, Pet Sounds, de orquestração, o nosso querido Rei, gênio da logística, fez diferente. Em vez de seguir o rumo natural do pop e fazer um lance 'moderno', se bandeou pra música negra, montou uma banda enxuta e saiu tocando. Ele só foi montar uma orquestra quando tinha tocado pra caralho e tava com o bolso cheio de dinheiro".

A formação duraria até o final de 2004, quando Gabriel finalmente perdeu a queda de braço com a vida particular de Simone. "Eu não entendi, na época. A gente tinha se fodido pra cacete até ali, e aí, quando a coisa começou a engrenar, ela virou e disse que era muito pra ela", lembra, sem esconder ainda uma ponta de decepção. Pelo telefone, Simone topa voltar à cena do crime: "Foi foda. Eu vivi sete anos disso, sabe? A banda tava superbem, tínhamos ido ao Japão tocar com o Guitar Wolf, abrimos show pro Pixies". Mas o problema foi um velho conhecido dos músicos independentes no Brasil. Dividida entre o rock e uma carreira mais estável como tradutora, Simone optou pela segunda. "Não deu mais. Eu tinha filho e não estava fazendo grana suficiente. A gente tinha uma agenda monstruosa pela frente, não ia dar pra conciliar. Aí, tive que colocar as duas coisas na balança. Pior que sempre fica aquela coisa 'traiu o movimento por grana', saca?" Arrependimento? Com a mesma espontaneidade que a consagrou no Autoramas, ela garante que não: "Saudade eu tenho, claro. As turnês eram diversão pura, a gente ria muito dentro daqueles ônibus fedorentos. Não sabia quem fedia mais, eu ou eles", ela diz, às gargalhadas. "Mas eu realizei todos os meus sonhos românticos com o rock." Quanto ao destino da banda, ela é direta: "A Selma entrou muito bem, toca e canta muito. O Autoramas era pra ser a banda número 1 do Brasil. O Gabriel é o meu herói, um compositor fantástico". E decreta, lembrando um certo baterista que deixou os Beatles antes do estouro mundial: "Eu sou louca pra ser o Pete Best".

Mas a popularidade de Simone com os fãs ainda é forte, e quem mais sente isso é Selma Vieira. Tanto que, apesar de já ter feito mais de 200 shows com o Autoramas, vez ou outra ainda aparece descrita como a "nova" baixista. "A responsa é muito grande," ela diz, "a Simone tem o lugar dela pra sempre ali. Ela é insubstituível." A própria Selma, na condição de fã, sentiu a saída de Simone. "Foi um choque pra mim. Eu era muito fã dela. Na seqüência, fiquei mais chocada ainda em ser chamada para a banda." Depois de se recompor, Selma não pensou duas vezes: largou o emprego numa repartição pública e encarou o tranco. "Não tem outro jeito de estar no rock", avalia. Diante da possibilidade de ter que enfrentar dilemas como o de Simone, ela não hesita: "Isso pode acontecer, mas não penso no futuro e não tenho medo do desconhecido. Estou aqui porque gosto."

À noite, na sala de seu apartamento, gabriel não consegue ficar quieto. Falando sem parar, ele coloca um disco atrás do outro. Dança animadamente, para ninguém (a menos que me encare como platéia). São bolachas de bandas brasileiras, como The Pop's e The Jordans, ou a portuguesa Banana Split. Também ouvimos X-Ray Spex, os ídolos Roberto Carlos, B-52's e Devo, e os amigos Guitar Wolf. Enquanto toca as músicas, canta e fala pelos cotovelos. As faixas nem chegam ao fim: Gabriel vai relacionando músicas e bandas, trocando os discos com rapidez. Sem parar de dançar, ele põe a cabeça no corredor e grita: "Érikaaa, vem aqui". O nome completo dela é Érika Martins, sua esposa, que já se chamou Penélope e agora se chama Érika e os Telecats. Demora, mas ela se junta a nós. Sorrindo com os olhos, mas contida a princípio, ela apenas observa. Lembro de algo que o Miranda havia me dito: "A ligação do Gabriel com a Érika fez muito bem pra ele. Ela é a cereja do bolo, deu mais doçura à vida dele". À medida que vamos nos conhecendo, isso vai ficando mais claro. Os dois foram feitos um para o outro. Segundo ela, além de se inspirar no ímpeto de Gabriel, também aprendeu com ele alguns truques da batalha diária do rock. Ele, por sua vez, conta que suas negociações de direitos mudaram depois que conheceu Érika. Um equilíbrio raro entre afeto e cooperação que faz um bem visível a ele, especialmente em comparação a um passado nem sempre doce.

Hoje, apesar da calma trazida pelo amor e pelos anos a mais, a principal razão de antigas mágoas ainda ronda a mítica do Autoramas. "Tem muito fã que vira e pergunta: 'Mas por que vocês não estouram? Vocês não querem?'", conta Gabriel. Além das cobranças por um reconhecimento do mainstream, há o outro lado: nem todos que comungam sob o cânone underground, onde o Autoramas surgiu e se fez respeitar, vêem as paradas de sucesso com bons olhos. Mesmo os que fogem a polarizações superficiais se perguntam se, a essa altura, tal busca ainda faz sentido para o Autoramas. "Esse trabalho que o Autoramas faz é o principal", opina Zé Ovo. "Manter uma regularidade, numa curva ascendente. Vendagem é importante, mas eles têm algo conquistado, chegam a lugares aonde ninguém mais chega." Miranda é mais taxativo: "O Autoramas não é focado para o mainstream. A vocação da banda são os caminhos internacionais independentes, onde eles só têm crescido". Em 2007, Gabriel pode se dar o luxo de abrir um sorriso no rosto quando tocamos no assunto: "É claro que a gente quer estourar. Não somos independentes por opção", repete. Com a convicção de quem conquistou o direito de falar por si próprio, ele continua: "Aliás, a maioria das pessoas com esse discurso de independência ou é poser ou não sabe do que está falando", diz. "Pra você fazer as coisas, tem que ter algum investimento. A gente faz tudo com pouca grana, o que é sempre muito mais difícil. A Érika me conta as coisas da época da Penélope na Sony, e eu fico babando. 'Vamos fazer um clipe?' 'Vamos.' 'Quanto?' 'Cem paus.' 'Beleza.' Eu seria hipócrita se dissesse que não gostaria de ter essa facilidade, essa estrutura." A diferença entre o Gabriel do Little Quail e o do Autoramas é que a experiência trouxe o pragmatismo. A estrutura que o trio levantou nesses dez anos realmente é humilde, se comparada ao que qualquer grande gravadora poderia oferecer. Mas ela garante toda a autonomia de que uma banda necessita para criar, sem morrer de inanição ou cair nas armadilhas de um devaneio de grandeza. "A gente se firmou no independente. Se rola menos dinheiro, paciência. Essa é a nossa vida, estamos inventando nosso caminho... abrindo com facão, vendo aonde é que vai dar. É engraçado... Eu não tenho condição de me comparar ao Roberto Carlos. Mas, como ele, tô tentando criar o meu próprio padrão." Apesar de ainda não enxergar o fim da picada, Gabriel tem certeza das coisas que quer fazer. "Quero fazer mais shows no exterior. Tô criando um circuito no Uruguai, na Argentina. Quero expandir." Na Europa, a reação do público empolgou a banda. "Em Portugal, as músicas tocaram no rádio, tinha CD nosso na Fnac", conta Gabriel. "Num show em Londres, quando a gente tocou 'Catchy Chorus' [de Stress, Depressão...] o povo delirou, a gente não entendeu. Quando eu desci do palco, uma menina inglesa disse: 'Nossa, adoro aquele cover que vocês fizeram. De quem é a música?' Disse que não era cover, que era som nosso, mas ela não acreditou. Depois o DJ me explicou: ele toca essa música na balada lá faz tempo."

Se, em quase duas décadas de criação, Gabriel nem sempre acertou a mão, o fato é que poucas bandas possuem uma coleção comparável de boas músicas. Da mesma forma, poucos compositores de sua geração atingiram maturidade lírica semelhante. A união entre um e outro fica evidente em uma balada como "Identificação", de Teletransporte. O início, um doo wop clássico, tem a inocência violada logo nos primeiros versos: "O ódio me tornou/Mais íntimo de você/Mais íntimo do que eu/Do que eu queria ser". A partir daí, o conflito evolui para uma projeção freudiana, na qual o narrador se confunde com a pessoa amada. No refrão, a confissão: "Vou te contar/Foi meio deprê/Descobrir que no espelho/Era eu e não você". Em seguida, guitarras distorcidas levam o som ao indie pop dos anos 90 - talvez fruto da parceria com Gustavo "Mini" Bittencourt, dos Walverdes -, que conduzem a música de volta ao início. A idéia é rebuscada, com sutilezas que exigem um esforço interpretativo acima da média das canções pop. Ao mesmo tempo, porém, o tratamento é simples, respeitando a fluência exigida pelo tema - um miniépico comportamental do século 21. O auto-humor discreto leva Gabriel algumas casas à frente no tabuleiro em que Frank Black e John Lennon fizeram sua história.

"Mil encontros tem o mundo", diz a letra de "Hotel Cervantes". Em quantos deles, afinal, o velho se reconcilia com o novo? Gabriel é craque nisso, e me ajuda. Mas, como nada vem fácil, ele oferece uma tautologia: "O Autoramas é retrô no sentido de que a gente acredita nas coisas em que a gente acredita". Hesito um instante, e ele esclarece: "Hoje em dia, isso é motivo de chacota. Antigamente, não era. Levantar uma bandeira, ter princípios, antes era do caralho." Se eu entendi, então, esse Teletransporte provavelmente manterá o Autoramas flutuando em algum lugar entre passado e futuro, gueto e mundo, inocente e irônico. "O papel do Autoramas é este, ter o seu próprio caminho. Já me perguntaram: 'Vocês não vão mudar de estilo?' E eu respondi: 'Não. Sabe por quê? Porque, quando alguém me diz que eu tenho estilo, pra mim é o mais importante'."

O editor de livros e quadrinhos Mateus Potumati escreveu a matéria "Testemunha Ocular", sobre o fotógrafo Bob Gruen, na RS 08 (maio 2007).