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TV Chapa Branca

José Marcio Mendonça Publicado em 17/08/2007, às 14h55 - Atualizado em 01/09/2007, às 15h23

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Ilustração: Weberson Santiago
Ilustração: Weberson Santiago

Desde o início do ano, quando o ministro das Comunicações, o senador pelo PMDB de Minas Gerais, Hélio Costa, antigo correspondente da Rede Globo nos Estados Unidos, anunciou, inadvertidamente (mesmo?), que o governo pretende instalar uma rede pública de televisão no país, uma parcela da sociedade brasileira está envolvida num debate, nem sempre marcado pela racionalidade, sobre as vantagens e desvantagens de tal empreendimento.

Costa acendeu o rastilho dentro do governo, revelando um segredo que estava sendo guardado para um momento mais propício, já quando o projeto oficial estivesse na fase final de elaboração. Recebeu críticas públicas do Ministério da Cultura, há tempos envolvido em pesquisa no 1º Fórum Nacional de Televisão Pública, juntamente com o Ministério da Educação, da Ciência e Tecnologia e a onipresente Casa Civil da ministra Dilma Roussef.

Houve até quem o acusasse, sem provas até agora, de ter vazado a informação para queimar o projeto e torná-lo inexecutável, em respeito a seu passado de homem da televisão comercial. Pela intriga na política brasiliense, percebe-se o tamanho dos interesses envolvidos nesse caso e a confusão que ainda vai gerar. Vale lembrar que a possível criação de uma rede pública de televisão no Brasil se torna possível tecnicamente, sem necessidade de grandes arranjos, a partir da instalação da TV digital no país, via modelo híbrido Brasil-Japão. Outra novela, outra história.

Passada a surpresa da revelação do ministro das Comunicações, entrou na roda o ministro Franklin Martins, do recém-criado (na reforma ministerial de abril) Ministério da Comunicação Social. Desde então, o projeto, uma determinação pessoal do presidente Lula, começou a ganhar contornos. Incorporaram-se aos debates outros atores até então afastados do processo, mas também diretamente interessados no assunto, como os radiodifusores privados, os produtores independentes de audiovisual, artistas, técnicos, intelectuais com chancela acadêmica e sem chancela doutoral, e um bando de curiosos nem uma coisa nem outra, porém à espera de uma sinecura em um provável novo órgão público (ou seria estatal?).

À babel publicamente instalada desde então, somaram-se contribuições relevantes, boa parte delas perdida, infelizmente, na confusão na qual foi transformada a discussão. E muito lixo teórico também. O governo, ainda o condutor do debate, veio para a arena pública e, principalmente por meio do ministro Franklin Martins, dá dicas do que passa por sua cabeça, sem nenhuma sistematização, no entanto. Há um grupo de trabalho, organizado por Martins, elaborando as normas da nova rede.

Porém, até o início de agosto, não se conhecia oficialmente muita coisa do que estava sendo elaborado, embora, pelas declarações do ministro da Comunicação Social, o projeto de criação da Rede Nacional de Televisão Pública (RNTP) vá ser enviado ao Congresso Nacional até o fim deste mês. A idéia é pôr a rede em funcionamento junto com o início das transmissões da televisão digital, com data de inauguração prevista para 2 de dezembro em São Paulo.

Algumas providências, para unir o trabalho da TV Nacional e da TVE Rio, por exemplo, já estão sendo tomadas. A pressa é evidente. É tanta a pressa que o principal interessado, o principal cliente da nova rede (e quem, certamente, vai dar a maior contribuição para a conta no final da história) - o cidadão, o consumidor, o telespectador, ou como se queira chamar o brasileiro comum que vai ligar e desligar o aparelho de televisão - como sempre não chegou ainda à mesa de discussões. Pelo menos não como protagonista. A não ser que se queira chamar, digamos assim, alguns "coletivos" e algumas individualidades de representantes da sociedade civil, organizada ou não.

E não se deve esperar, pelo atual andamento da polêmica, que a instituição representativa da sociedade de fato e de direito, o Congresso Nacional, vá discutir a questão em profundidade. Não, por desinteresse da maioria dos parlamentares, não, pela falta de tempo e não, pelo modelo de tramitação do projeto pelo qual o governo optou - uma Medida Provisória. As MPs, por terem prazo exíguo de tramitação na Câmara e no Senado, depois do qual, se não são votadas perdem a validade, sempre tramitam de maneira precipitada, sem as necessárias reflexões. E ao fim e ao cabo são aprovadas com poucas modificações em relação ao original.

Ele tem sido um avalista descuidado. Não ousa o Congresso anular decisões em vigor desde que a MP foi editada. Imagine! Seria um pandemônio voltar atrás, anular o que já foi feito. No fundo, com as regras atuais e a omissão dos congressistas, as MPs tornaram-se, de fato, decretos presidenciais com força de lei. Não somente do presidente atual, também dos pretéritos e dos futuros. A sociedade influencia cada vez menos nas leis que influenciam e direcionam a vida dos cidadãos brasileiros. Não chega a ser propriamente muito democrático.

Ou seja, o que sair em matéria de televisão pública da mesa de trabalho dos grupos escolhidos pelo governo será praticamente o que vai valer. Pode não ser necessariamente mau - afinal, os grupos de trabalho têm inegáveis qualidades; mas também pode não ser essencialmente bom. Do modo como vai, a sociedade será brindada com uma televisão pública (seja o que isto signifique no Brasil) sem saber o que isso significa, o que ela será na vida real e se é de seu interesse pagar por tal oferta.

Não é, também, propriamente, a melhor forma de introduzir mecanismos de democratização dos meios de comunicação, uma expressão muito em voga no país atualmente. O presidente Lula, de quem partiu a ordem para a criação da televisão pública no país, entende esses novos canais como os veículos capazes de pôr no ar aquilo que as outras televisões não põem, as notícias positivas que não são dadas, os debates sobre grandes temas nacionais que não são realizados, os programas educativos que ficam confinados às emissoras educativas, porque as televisões comuns têm compromissos com a audiência e os anunciantes.

O princípio da televisão pública foi introduzido na legislação brasileira na Constituição de 1988, para formar, junto com a televisão privada (ou comercial, se preferir) e a televisão estatal (ou do governo) o sistema nacional de televisão. Grosso modo, a televisão comercial, de massa, estaria mais voltada para o entretenimento e um pouco de jornalismo, sustentada por inserções comerciais; a estatal, sustentada pelo governo, estaria mais voltada para a divulgação dos feitos oficiais, do governo de plantão, com alguma prestação de serviços de utilidade pública e programas educacionais; e a pública, eqüidistante das duas, sustentada pela sociedade, estaria voltada para os interesses dos cidadãos em sua dimensão mais humana. Nas outras duas, ele seria o consumidor, o eleitor, o telespectador apenas.

Nem o mercado nem o Estado é o mantra da televisão pública, um mantra conceitualmente irretorquível desde que livremente aplicável de aceito. O diabo é que, em torno desse mantra, a confusão conceitual é total. Até porque o público ao qual os três modelos teoricamente se dirigem é um somente, ele só é diferenciado a partir do ângulo pelo qual é encarado.

Um pormenor, que, na verdade, é um "pormaior": todas as elucubrações perdem o sentido a partir do momento em que os avanços tecnológicos alcançados no mundo das comunicações - em hardware e software - estão transferindo a decisão do que ver, que hora ver, em que condições ver, das mãos dos produtores e donos dos meios de produção e veiculação, para o cliente/cidadão. Há mais coisas no ar do que botões de desligar e de mudar de canal.

E ninguém, nem mesmo quem produz para nichos, pode prescindir de audiência, por menor que seja. Para que então a mensagem? Só há uma garantia de audiência: quem faz sozinho. E é nesse ponto que mora o perigo. Os sistemas estatal/governamental e privado/comercial são velhos conhecidos nossos. Um o governo paga, outro os anunciantes bancam. Individualmente, têm qualidades e virtudes. Falta conhecer a televisão pública e quais seriam suas apregoadas vantagens. Para não se correr o risco de engolir um outro modelo de televisão travestido de televisão pública. Por estar livre dos compromissos dos dois outros modelos, tanto do ponto de vista do financiamento de suas atividades como do de gerência e comando, a televisão pública, segundo seus defensores, estaria também livre para perseguir uma televisão de qualidade, não voltada exclusivamente para o entretenimento ou para defender os interesses do governante (e financiador) de plantão. Poderia inovar, experimentar, criar sem limites.

Poderia dar voz àqueles que não têm voz na televisão comercial e àqueles que aos governantes só servem na urna e na hora do aplauso. Todos os tipos de diversidades culturais, étnicas, de gênero teriam nela uma fonte de expressão. Os regionalismos, as produções independentes, sem espaços nas grandes redes comerciais por não favorecerem as necessidades da massificação e das grandes audiências, teriam na televisão pública o seu desaguadouro.

Seria a grande difusora da cultura e da identidade nacionais. Ela funcionaria, acredita-se, até mesmo como um êmulo para as televisões comerciais, forçadas que seriam a buscar novos formatos, a encontrar novos temas para seus programas, a optar por conteúdos de melhor qualidade, a partir da concorrência trazida pela televisão pública. Cita-se, como exemplo, o caso do programa infantil Castelo Rá-Tim-Bum, da TV Cultura de São Paulo. As outras emissoras teriam sido forçadas a melhorar o nível da programação para as crianças porque perderam audiência para a televisão do governo paulista. (Aqui cabe um parêntese: algumas televisões estatais brasileiras, inclusive a TV Cultura paulista, gerenciada pela Fundação Padre Anchieta, e as educativas estaduais e federais, apresentam-se como televisões públicas. Embora apresentem certas características de um canal ou rede pública, não o são.)

É certo que a televisão pública nascerá do Estado (no máximo da iniciativa de um grupo de cidadãos), sem objetivo do lucro. Portanto, para estar equidistante dos binômios mercado/audiência e governo/propaganda oficial, a televisão pública teria de ser totalmente independente desses entes, em três vertentes: independente financeiramente; independente gerencialmente e, por fim, independente editorialmente.

Se não tiver fontes permanentes de recursos, intocáveis, não será pública, será estatal. Se não puder tomar decisões de contratar, demitir, que salários pagar e tudo mais que caracteriza o gerenciamento de uma empresa, não será pública, será estatal. Se não for editorialmente independente, não puder decidir o que veicular, como tratar os assuntos, seja no jornalismo, seja no outro tipo de programação, não será pública, será estatal. Estará sujeita aos humores e desejos do seu financiador (com o dinheiro público, óbvio) governamental.

Esses são requisitos básicos, condicionantes inalienáveis. A televisão pública deveria funcionar no Brasil como deveriam funcionar, idealmente, as agências reguladoras em alguns setores da economia, como a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e até a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) - como órgãos de Estado, não de governo. As agruras pelas quais elas passam - corte de recursos, interferências ministeriais - mostram que no Brasil a prática é outra. E o recente exemplo da Anac, com suas indicações políticas, não recomenda entusiasmos nesse campo. Há outros requisitos, também essenciais:

1. De onde virão os recursos para financiar a rede: da atual batelada de impostos, de um novo imposto, de uma contribuição especial dos usuários de televisão? Pelas informações disponíveis, do próprio ministro Franklin Martins, a operação da rede pública a ser montada custará R$ 350 milhões anualmente, mais ou menos o mesmo gasto pela Rede TV, a menor rede em operação no Brasil. Fala-se em financiamento em parte via patrocínios, uso das leis de incentivo. Mas esse nem sempre é um dinheiro certo, poderá levar a altos e baixos. Para ter uma qualidade constante, a TV pública terá de ter recursos certos. Senão, estará sujeita a outras, indesejáveis no modelo venham de onde vier.

2. Como serão escolhidos os conselhos que controlarão os canais e a rede e como serão definidos os seus executivos, nas áreas redacional e gerencial. Quem os indicará, quem os sabatinará, em que condições (restritas) poderão ser demitidos?

3. Como, por quem serão definidos os critérios básicos para a elaboração da programação e seus conteúdos?

A lista é maior, mas se esses pontos puderem ser atendidos, poderíamos vir a ter uma real televisão pública.

Há exemplos no mundo de televisões públicas, os nossos, autodefinidos como tal, não o são. Mesmo a TV Cultura, a que mais se aproxima no Brasil do modelo, sofre influências indiretas constantes do grande patrocinador. E sua quase permanente penúria financeira a torna dependente, sim, do governo paulista, em maior ou menor grau dependendo do inquilino de ocasião no Palácio dos Bandeirantes.

De todos, o modelo mais citado e mais louvado, é o da BBC britânica. Sem dúvida, um empreendimento extraordinariamente bem-sucedido há mais de 80 anos. Há o norte-americano, mais recente, também tido como exemplar, mas muito longe do alcance e do prestígio da BBC. Na Europa, há outros, mas nenhum deles nem de longe capaz de causar inveja. Quem já assistiu à RAI I(Itália), TVE (Espanha) e a RTP (Portuguesa) tem, às vezes, a impressão de estar sintonizado em alguns dos programas menos recomendáveis de algumas redes privadas brasileiras.

(Para registro: há um nicho de qualidade, sim, de qualidade na televisão brasileira, nada desprezível, embora, até pela quantidade de emissoras e redes existentes e do coronelismo e do evangelismo eletrônico, haja também muito lixo. Mas esse não é um problema que possa ser resolvido com a TV pública. Vai continuar existindo com ou sem ela, enquanto não mudarem os critérios de distribuição de canais.)

E o segredo da BBC é simples: independência total em relação ao poder político. Seus recursos provêm basicamente do pagamento, por todos os britânicos que possuem televisão, de uma taxa de 136 libras (cerca de R$ 600) por ano, dinheiro que não pode ser apropriado pelo governo, nem contingenciado, nem congelado. O orçamento da BBC este ano passa dos 3 bilhões de libras (cerca de R$ 13 bilhões). Seus dirigentes são indicados pela sociedade, representam de fato a sociedade, e não grupos restritos de pressão e interesse, e não podem ser tocados. São eleitos pelo parlamento, têm mandatos, não podem ser trocados livremente ao bel-prazer de um primeiro-ministro insatisfeito. No episódio envolvendo reportagem da BBC sobre a participação da Grã-Bretanha na Guerra do Iraque, Tony Blair pressionou para afastar pessoas do jornalismo da emissora e não conseguiu. A BBC se pôs contra, por exemplo, a Guerra das Malvinas e do Iraque e nada abalou sua vida.

Os políticos britânicos podem não gostar, fazer biquinhos, protestar. Não ousam interferir, porém. Tudo isso permite que a BBC tenha uma programação de qualidade, com grande audiência. É uma das instituições mais respeitas e amadas do Reino Unido - ainda que, segundo o jornal inglês The Guardian, opositor da BBC, tenha constatado através de uma pesquisa na internet que 59% dos entrevistados confiam hoje menos no canal por causa de um escândalo pontual envolvendo fraudes telefônicas em programas de competição e edições tendenciosas de imagens da rainha.

Por isso vale encerrar perguntando: é um modelo passível de reprodução no Brasil? E mais: o Brasil tem condições de ter uma televisão pública de verdade?

José Marcio Mendonça é jornalista, comentarista de assuntos nacionais da Rádio Eldorado, de São Paulo. Assina umblogno Estadão.