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A má gestão no Brasil: R$ 1 de cada R$ 3 tem irregularidades

Aloisio Milani e André Deak Publicado em 08/01/2009, às 14h55

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Weberson Santiago
Weberson Santiago

A corrupção ou a má gestão de recursos públicos no Brasil não podem ser medidas. Mas todo o dinheiro público que escorre em pagamentos de propinas, sobrepreços, má execução de obras e enriquecimentos ilícitos pode ser visto como a ponta do iceberg. Ou, talvez numa metáfora mais indicada, apenas como o cheiro do ralo. "As instituições têm condições de combater a corrupção, mas o problema é que ela está muito enraizada em praticamente todos os setores da vida pública brasileira. Uma coisa que a gente não tem nem como determinar a profundidade", avalia o presidente da Comissão Especial de Combate à Corrupção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Amauri Serralvo.

A corrupção com recursos públicos é resultado de uma linha de produção. Como uma indústria que fabrica um carro, em que cada peça e cada operário tem uma importância no resultado final. Esse roteiro já foi mapeado pela Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF), que reúne aqueles que fazem pela Polícia Federal os laudos das fraudes. Como costumam dizer no jargão policial, eles já estão cansados de ver o modus operandi dos criminosos. Esse caminho pode ser dividido em quatro etapas: a elaboração inicial de um projeto "viciado" para execução de obras; lobby e propina para políticos incluírem os recursos dos orçamentos públicos; execução combinada da licitação para favorecimento de empresas; e, por último, alterações no projeto para lucrar com "adicionais" no custo da obra.

O trabalho dos peritos aumentou na última década. De 1995 a 2002, o núcleo pericial da área de engenharia era um grupo de dez pessoas, que em 2000 elaborou 50 laudos periciais. Atualmente, são 70 peritos em todas as regiões brasileiras, produzindo uma média de 300 laudos por ano. Levantamento elaborado dentro do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal com base em 160 trabalhos sobre vários municípios nos anos 2006 e 2007 aponta um número surpreendente: a cada R$ 3 investigados em obras, R$ 1 tem desvio comprovado. Ou seja: o equivalente a R$ 2,621 bilhões apresenta irregularidades.

A fonte da maior parte desses recursos é o governo federal. Preço acima do mercado nos projetos (sobrepreço), superfaturamento (pagamento de valores acima do contrato) e obras pagas, mas jamais executadas, são os principais problemas. Edificações, como casas e postos de saúde, lideram as fraudes, seguidas por obras de saneamento básico e construção de estradas. Sobre a amostra de laudos, os policiais estimam que o conjunto de mais de mil perícias de engenharia desde 2000 tenha registrado desvios de R$ 19,112 bilhões. O valor é cerca de 60% de toda a arrecadação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) em 2006, imposto que o governo federal busca, a todo custo, renovar agora. E mais do que os R$ 15 bilhões previstos para investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o ano de 2007.

"A corrupção não é exclusividade do Brasil", diz Amauri Serralvo, da OAB. "A nossa originalidade é que só modernamente se está conseguindo chegar aos focos de corrupção. As licitações públicas, por exemplo, eram quase uma questão de negociata. As pessoas admitiam que, para ganhar, poderiam pagar algo por fora. A dificuldade de se descobrir é porque há muita dificuldade de se chegar a esses níveis de corrupção, porque as pessoas entendem que isso é esperteza e até imprecibilidade - se não tivesse isso, como elas iam ganhar? Isso é o pior da corrupção. Por isso é uma questão também de educação e cidadania."

O diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, que se dedica ao combate à corrupção, Claudio Weber Abramo, enfatiza que o excesso de lacunas legislativas favorece a corrupção. Além disso, também alimenta o monstro a quase completa falta de controle sobre a administração do dinheiro público. Se a ocasião faz o ladrão, o Brasil é um país cheio de boas ocasiões. Mas as leis, mesmo que fossem criadas, não resolveriam nada sozinhas, desacompanhadas da fiscalização. Não que se trate de um problema cultural, ele frisa. "Isso é conversa para boi dormir, as causas são múltiplas."

O diretor aponta um dos muitos exemplos da criatividade humana: "Uma usina de corrupção é a facilidade para ocupar e distribuir cargos de confiança. O peso dos ministérios nas negociações políticas entre partidos é também porque existe essa distribuição de cargos. O que você acha que os partidos querem com esses cargos?", provoca. "A pergunta que deve ser feita não é por que os corruptos apanhados não estão na cadeia, mas por que a corrupção pode acontecer? Onde está a brecha?"

No Brasil, a situação tem mais visibilidade, mas a administração pública está longe de conseguir fiscalizar tudo o que precisa. No caso dos estados e municípios, as câmaras dos vereadores e as assembléias legislativas deveriam fiscalizar todas as contas do poder executivo. O Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União fiscalizam governo federal, estados e municípios por amostragem. Há prestações de contas, mas a maioria não é verificada de maneira detalhada. A ONG Amarribo (Amigos Associados de Ribeirão Bonito - SP), que conseguiu derrubar um prefeito por roubalheira, critica a ineficiência dos atuais mecanismos de fiscalização. "O legislativo deveria fiscalizar 100%, mas sabemos que ele não o faz. Muita coisa passa. E os outros fazem fiscalização por amostragem. Então, o ralo da corrupção é muito grande", considera a diretora-adjunta de Combate à Corrupção da ONG, Lizete Verillo.

No quesito amostragem, é possível ver que a maioria das contas tem problema. A Controladoria Geral da União (CGU) realiza sorteios públicos de municípios que receberão visitas de auditores para fiscalizar a administração pública local no que se refere ao gasto de recursos federais, repassados por diversos ministérios, como Educação, Saúde, Integração Nacional, Cidades e Desenvolvimento Social. A íntegra de cada relatório traz os itens checados, os problemas administrativos e as respectivas respostas dos prefeitos. São 1.151 municípios fiscalizados até agora em 22 sorteios, cujos resultados foram tornados públicos. Outros três lotes estão em andamento. Um levantamento inédito da Rolling Stone, a partir de todos os relatórios de fiscalização, mostrou que cerca de 96% dos municípios têm algum tipo de irregularidade na gestão dos recursos federais.

O dinheiro do Ministério da Educação e da Saúde nos municípios é campeão de problemas administrativos e graves - 95%. Apenas 5% dos municípios não têm algum tipo de gestão deficiente dos programas de transferência de renda, como o antigo Bolsa-Escola e o atual Bolsa- Família. E 80% das obras de engenharia, ligadas aos ministérios das Cidades, Integração Nacional e Desenvolvimento Agrário, têm algum problema na licitação ou na execução dos projetos. O trabalho de amostragem da CGU nos municípios não tem competência criminal nem uma comparação numérica do prejuízo exato de cada fraude. Sabe-se que o conjunto causa um grande rombo, difícil de estimar por conta da fragmentação em pequenos lotes de problemas.

É o caso do município baiano de Santa Bárbara, a 140 quilômetros de Salvador, onde a auditoria flagrou uma licitação simulada pela prefeitura. O recurso federal era do Ministério da Educação, ligado ao Programa Dinheiro Direto na Escola, que prevê verba adicional para a estrutura dos estabelecimentos de ensino. Foram R$ 40 mil, autorizados pela ordem de serviço 173244, para reformar 40 unidades escolares. Os concorrentes não tinham requisitos mínimos para disputar a licitação, como certidões negativas de débitos ou habilitação no Conselho Regional de Engenharia. Mas o processo seguiu. Após a "reforma", todas as escolas ainda estavam em péssimo estado de conservação, paredes sem tinta, goteiras no telhado e cantinas infestadas de morcegos. O pagamento foi feito integralmente à empresa vencedora da licitação.

A justificativa do prefeito foi que os recursos eram "parcos" para fazer a "reforma desejada" nas escolas, mas não explicou por que a licitação deixou de detalhar sequer os serviços que seriam executados - o que se configura numa das principais brechas do vazadouro do dinheiro público, pois, debaixo de pedidos vagos, as empresas fazem o que querem. Até a publicidade do edital para a obra em Santa Bárbara tinha problemas. Prevista por lei, a publicação do aviso de licitação permite a concorrência de empresa. Mas lá, a página do jornal que trazia o edital foi publicada depois da data permitida. A auditoria constatou que a prefeitura forjou a página de uma seção do jornal Folha do Estado para tentar comprovar a divulgação. A edição de novembro de 2004, na qual deveria ter saído a licitação, foi checada pelos auditores e tinha apenas seis páginas. A página apresentada pelo prefeito com a licitação era a de número 9 - ou seja, foi literalmente inventada.

Engrossando o caldo, irregularidades também foram encontradas na licitação do município de Araguaçu, em Tocantins, onde a prefeitura autorizou - irregularmente - a construção de uma ponte no meio de um matagal. A passagem liga nada a lugar nenhum - não tem início nem fim, só o meio. O plano inicial aprovado pelo Ministério da Integração Nacional previa a execução de uma ponte pré-moldada de concreto sobre o rio das Pedras. Mas o local da obra foi alterado para outro rio, o da Água Fria, sem comunicação oficial. Lá, a construção de 20 metros de comprimento por 4,5 metros de largura fica cercada de arame farpado. Seu custo foi de R$ 126 mil. Os auditores da CGU solicitaram documentos do caso e a prefeitura, já com todo o problema verificado, reconheceu que não dispunha dos arquivos da licitação e suas especificações técnicas.

O roteiro de checagens de corrupção em obras de engenharia é amplo, mas quatro pontos são obrigatórios para encontrar fraudes, segundo os peritos criminais federais. "Eles poderiam ser chamados de 'as parcelas do superfaturamento'", diz Pedro de Sousa Oliveira Júnior, chefe do Serviço de Perícias de Engenharia da Polícia Federal. O começo é a quantidade de material que a empresa efetivamente usou na obra. Não raro ela é menor do que a que foi cobrada da administração pública. A segunda parcela é o preço, que é comparado com o Sistema Nacional de Preços e Índices da Construção Civil (Sinap), referência oficial para custos envolvendo recursos federais. "Esse custo é a referência para sabermos se o preço está acima do mercado ou não", afirma. Em seguida, a questão da qualidade do material usado. Várias vezes, matérias-primas mais baratas são usadas e trazem prejuízo ao erário.

O último ponto é considerado o mais "sofisticado" mecanismo de fraude contábil em obras de engenharia: o "jogo de planilha", que é o aumento da quantidade de itens que já têm preço alto e a diminuição de itens ou serviços que têm preço baixo. "A empresa manipula quantidades ao longo da obra", revela o perito. O motivo básico para uma empresa vencer uma licitação é o tamanho do desconto que ela deu em relação ao preço médio de mercado. Esse desconto tem um percentual correspondente que não deve se alterar até o final da obra. "Se uma empresa ganhou uma licitação dando 10% de desconto em relação ao preço do órgão, a obra tem que ser finalizada com valor próximo a essa porcentagem." Se o objeto da licitação é vago, a empresa pode chegar ao final da execução com um preço acima do mercado. A diferença é uma fraude.

"O jogo de planilha representa o rompimento do equilíbrio econômico-financeiro", diz o também perito criminal Alan Lopes. "Essa é uma fraude típica de obra e, por isso, ela é tão escolhida para ser fraudada. Quando você abre a compra de uma frota de carros populares para um órgão e um novo chefe troca de idéia para a compra de caminhonetes, ele precisa cancelar a licitação e refazer o processo. No caso do jogo de planilha, não. Ele tira a carroceria do carro popular e monta a caminhonete em cima. A obra permite que você troque muita coisa, até 80% do objeto. E as fraudes estão ligadas diretamente aos termos aditivos [aqueles inseridos após a escolha da empresa vencedora da licitação]." Essa configuração faz com que os peritos criminais de engenharia considerem as obras como o principal foco de corrupção no país.

Mas como acabar com a corrupção? Um dos pontos levantados é o amadurecimento da legislação para o controle do interesse público. No Congresso, até existem alguns projetos de lei dedicados a combater a corrupção - mas não muitos. Um deles, o PL 7528, de 2006, do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), propõe evitar os conflitos de interesse existentes para aqueles que ocupam cargos públicos com "restrições a ocupantes de cargo ou emprego que tenham acesso a informações privilegiadas" e "impedimentos posteriores ao exercício do cargo", a chamada quarentena. Hoje, nada impede que um ministro da Fazenda ou um presidente do Banco Central, por exemplo, que determinam a política econômica do país, se tornem consultores econômicos de alguma empresa privada muito pouco tempo após deixarem o cargo. Em novembro, o deputado Maurício Rands (PT-PE), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), deu parecer favorável ao projeto de lei que determina essas restrições - mas a CCJC ainda precisa votar o relatório de Rands, para então o projeto ser votado no plenário da Câmara. Depois ainda segue para votação no Senado. Se for modificado no Senado, volta para ser votado na Câmara.

Outro projeto importante que não avançou no Congresso é o que tipifica o crime de superfaturamento de obras públicas - o PL 6735, de 2006. "Esse procedimento fraudulento sobre as despesas públicas no Brasil não é crime. Ele não está tipificado no nosso sistema legal. São apenas penalidades administrativas", explica o autor do projeto de lei, o perito Alan Lopes, completando que os laudos e a Justiça precisam se esforçar numa interpretação sobre o artigo 90 da Lei de Licitações - fraudar o caráter competitivo do procedimento licitatório. O projeto prevê o aumento das multas para até 200% sobre o valor do contrato, além de prisão de até dez anos por malversação de recursos públicos. O projeto passou pela CCJC da Câmara em 2006, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, também deu parecer favorável, mas ele ainda aguarda votação em plenário. Procurada, a assessoria do conselho não deu previsão sobre as perspectivas de votação da proposta. Há casos de projetos de lei que ficaram décadas em tramitação, sem nenhum resultado.

"Projetos de lei não irão salvar o Brasil da corrupção", diz Abramo. Mas ele é otimista em relação à articulação da sociedade contra a corrupção: "Um buraco sem fim se tapa jogando uma pá de terra, depois outra, depois outra. É preciso jogar uma porção de pás. Demora, exige esforço, dedicação, identificação das causas. Não vai ser do dia para a noite que vai mudar". O perito criminal Alan Lopes sugere que, no planejamento de combate à corrupção haja um ataque concentrado no poder de quem recebe o dinheiro público para gastar. Muitas vezes, o funcionário público é a parte menor do esquema. "Temos de mudar um pouco o foco do funcionário público para a instituição que recebe o dinheiro. Ali acontecem as maiores fraudes."

Mesmo porque, considerando que mais de 1500 agentes públicos federais já foram expulsos por terem sido flagrados em atos de improbidade, corrupção e safadezas semelhantes, isso parece não diminuir a vontade de roubar dos que estão soltos. O ministro Jorge Hage, da CGU, reclama que não adianta pegar ninguém para depois julgar com essa lentidão da Justiça. "[As leis processuais do Brasil] permitem uma infinidade de recursos e medidas proletárias de tal ordem que qualquer bom advogado consegue prolongar um processo por 10, 20 anos; e os corruptos são justamente os que podem pagar os melhores escritórios de advocacia do país", conclui.