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Patrimônio Psicodélico

A luta dos cultos da ayahuasca, o popular Santo Daime, para tornar o chá, seus rituais e crenças patrimônios imateriais da cultura brasileira

Por Maurício Monteiro Filho Ilustração Índio San Publicado em 09/02/2009, às 18h37

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Ilustração Índio San
Ilustração Índio San

"Você sabe o que vai te acontecer?" A voz vinha direto da noite amazônica, meticulosamente vestida de calças pretas, camisa branca e gravata preta. Olhando ao redor, vendo a floresta espessar-se em céu, uma lua maciça georreferenciando nossos passos em direção à única fonte de luz emanando na Terra naquela hora, só conseguia pensar que o que tivesse que acontecer já tinha começado a acontecer fazia algum tempo. E era forte o suficiente para ter me levado até ali, a comunidade daimista de Vila Fortaleza, a 100 quilômetros de Rio Branco, no Acre, às margens do rio Xipamano, fronteira com a Bolívia, caminhando em meio a alguns rostos beatificamente serenos, emoldurados pelos colarinhos de suas camisas brancas impecáveis, sem a mínima idéia do que responder à noite.

Cada avanço em direção à igreja, um pouco mais adiante, nos botava em compasso com um número crescente de brasileiros - e cada vez mais estrangeiros -, com Burroughs e depois Ginsberg, com padrinhos seguidores do Padrinho Supremo, com a melodia das portas da percepção se abrindo aos altares da alma. Seguíamos os passos de linhagens de xamãs e pajés que começaram a escrever essa história milhares de anos atrás em cada um dos países cobertos pela Floresta Amazônica, onde crescem lado a lado o cipó Banisteriopsis caapi e o arbusto Psychotria viridis. A bebida resultante do cozimento das duas plantas juntas, em rituais mais ou menos artesanais e peculiares a cada região, resulta num líquido de cor terrosa e gosto amargo chamado ayahuasca. No Brasil, o chá se notabilizou por seu uso religioso como sacramento em igrejas ou irmandades. Agora, os usuários do chá querem transformar os rituais, o chá e a cultura em torno do consumo religioso em patrimônio cultural imaterial do Brasil.

Pisar o solo acreano em busca dos porquês deste tombamento cultural significa também fincar o pé nos estratos mais profundos das tradições ayahuasqueiras. O estado é o berço de ritos ancestrais do chá. Não muito distante de onde estamos, nos seringais da cidade de Brasiléia, o maranhense Raimundo Irineu Serra recebeu as visões que incorporariam uma doutrina cristã a rituais indígenas imemoriais e transformariam a ayahuasca em Santo Daime. Apesar das diversas denominações assumidas pela ayahuasca no país, todas as vertentes religiosas que empregam o chá em seus cultos reconhecem o Irineu Serra, ou Mestre Irineu, como o fundador da primeira corrente brasileira. A própria história de como ele - nascido num 15 de dezembro, como Chico Mendes - teve seu contato inaugural com o Daime, um verdadeiro quebra-cabeça de tradição oral entrecortada, já é um dos legados culturais da ayahuasca no país. Relatos das primeiras experiências de Mestre Irineu com as plantas de poder envolvem gritar pelo demônio - e receber visões de cruzes em retorno -, e luas cheias habitadas por mulheres de nome Clara. Hoje, nesta noite de lua cheia, a poucos quilômetros dali, é minha vez de ter a miração, como é chamada a resultante na consciência da ação do chá. Fala-se em estar preparado ou em ser merecedor para recebê-la. Não sei se sou qualquer uma das duas coisas, mas é certo que o Acre e o poder das florestas começavam a confirmar, em mim, sua reputação.

Você lê esta matéria na íntegra na edição 29, fevereiro/2009