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Entrevistas Bondinho

Leia trechos de entrevistas de Chico de Assis, Lanny Gordin e Maria Bethânia, publicadas no livro Entrevistas Bondinho, da editora Azougue

Redação Publicado em 16/04/2009, às 15h39

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Lanny Gordin (publicada originalmente em janeiro de 1972)

Por Ricardo Vespucci

O maior guitarrista do Brasil

Com vocês: uma dose de laranja, uma guitarra, a Fiúca, a boate, a voz de chinês velho, o bife com mostarda, o nome nas contracapas dos discos e a gagueira de Lanny.

I

Na boate: gagueja muito, é a primeira reportagem

Receita do drinque nº 2, inventado e consumido por Lanny: 1 dose de laranja, 1 dose de limão, 1 dose de cacau, 1 dose de Pippermint, 1 dose de groselha, 1 dose de Cherry Brandy, mais o refrigerante de preferência ou água. Agora os conselhos técnicos:

- Uma dose não é uma dose de uísque, não. É um dedo. Ah, para dar mais aquele gostinho, é bom pôr uma dose e meia de Pippermint. Fica muito estranho o gosto final. O refrigerante serve para suavizar a bebida. Bom, tudo começou com o drinque básico, o nº 0, que era laranja ou groselha. Aí eu inventei mais seis, e são sete. Olha, o nº 6 leva até pimenta. Mas eu só conto a fórmula do nº 2.

Lanny, até agora, foi um nome de contracapa. A não ser pelos músicos e por quem se interessa realmente por música, ele é um desconhecido. O nome de Lanny, sob o título de "participação", apareceu na contracapa dos discos mais bem feitos no Brasil, como os trabalhos de Caetano, Gil e Gal Costa; além de muitos outros elepês e compactos cujos arranjadores, diretores musicais etc., na hora de optarem pelo guitarrista a ser contratado, não tinham outra saída para obter o som, o efeito sonoro desejado:

- É o Lanny!

Receita do som que bate, mais ou menos, com o som que Lanny faz hoje. É claro que amanhã vai ser diferente, normalmente, porque é Lanny que diz:

- Deixa ver... hum... você pega o "Tarkus", de Emerson, Lake and Palmer, e mistura com Chick Corea, Keith Jarrettt (esses dois são jazzistas clássicos), mais Wayne Shorter e Herbie Hancock; põe, também, a turma do Miles Davis; mais o "free", que é qualquer coisa , um gemido, passar a mão no cabelo; o "avant-garde" de John Coltrane, que é uma coisa mais regrada que o "free"; mais música oriental, a chinesa, por exemplo; mais música de harpa; mais os ritmos brasileiros mais estranhos; mais alguns ritmos que eu crio; mais eu. Bom, tudo isso são pequenos pontos. O eu é que completo tudo. Em música, em drinques, na vida, eu misturo tudo. Aí fica legal pacas, muito bom mesmo.

Lanny fez 20 anos no fim de 71. Só tem cinco anos e meio de guitarra.

- O maior guitarrista do Brasil, diz Rogério Duprat. Fundos da Boate Stardust, Largo do Arouche. Onze da noite, onze e meia. Um grito ao pé da escada:

- Lanny! Você não vai entrar?

- Vou!

- Já passou da hora!

Quando não está com a Gal Costa no Rio, sendo responsável pela metade da zorra que a baiana faz no palco e nos discos - Lanny é diretor musical e arranjador da Gal Costa -, ele toca no Stardust, que é do seu pai. Levanta uma notinha tocando li todos os dias, menos na folga da boate: domingo. Depois dos gritos, Lanny desloca agilmente sua magreza até o palco. Sua magreza está na proporção de 1,77 m para 58 quilos.

Maria Bethânia (publicada originalmente em março de 1972)

Por Jary Cardoso

Maria Bethânia, Bé, Viana Telles Veloso, Gêmeos dividida uma mistura, criança madura corajosa de medo, pomba-gira filha de Iansã, de Nossa Senhora da Purificação filhinha, you're getting better, very Bethânia, cantatriz linha reta em zig-zag.

(Segue uma lista de palavras que também podem ajudar a definir: agressiva, doce, alegre, infantil, triste, ponderada, misteriosa, mística, amarga, sensual, maga, snob, intuitiva, agreste etc.)

"Todos em casa são serenos, menos Bethânia, que foi sempre revoltada. Eu fazia o que queria, nunca houve problemas nem briga com meus pais. Só duas vezes: uma quando eu fiz uma esculhambação na escola e outra quando eu deixei Bethânia com meu irmão, que é mais velho, bebendo num bar. Devia ser umas onze horas, a gente sempre voltava tarde pra casa, mas era eu quem tomava conta dela, porque eu mesmo tinha pedido que deixassem eu levá-la sempre junto comigo, nos shows, teatros, bate-papos. Meu pai brigou comigo porque eu não fiz o que eu mesmo prometi. Aí eu até chorei." (Caetano Veloso)

Este papo com Bethânia talvez não fosse possível sem a ajuda do Caetano. Qual é a importância que você vê hoje em Bethânia para a música popular brasileira? - perguntamos. E Cae respondeu quase sem pensar: "Ela é especial. Todas as tentativas de pôr Bethânia em cena com mais alguém fracassaram. Bethânia é uma pessoa muito especial".

Resolvemos descobrir o quanto Bethânia é especial. Porque ela é assim fica por conta de cada um. Ou talvez, como disse Luís Carlos Maciel, ela é um mistério, um enigma difícil de ser decifrado. Maciel prefere chamá-la de Exu. "É mais completo do que ficar procurando, por exemplo, interpretações psicanalíticas." Everybody knows that she was born to do everything wrong with all of that. Literalmente, quer dizer: todo mundo sabe que ela nasceu pra não dar importância a nada. "Eu sou assim mesmo, responde sempre Bethânia, eu misturo tudo na minha vida." Ela mistura tudo: homens e mulheres se ligam nela; canta "Carcará", "Último Desejo" e "Objeto Não Identificado"; acredita em Dona Iansã e Nossa Senhora da Purificação. E, por trás de todo esse ziguezague, tem um toque sempre pessoal em tudo o que faz. E muita fé. Ela precisa ter fé em alguma coisa, se não, ela não cresce. Não é, Bethânia?

Estamos botando ela pra falar primeiro de Rosa dos Ventos, não é por nada não. Mas é que o show dela endoidou gente no Rio, e vai estrear em São Paulo dia 15 de abril. Bethânia diz que esse show é a amarração da vida dela e - tem isso também - nesse show ela se joga inteirinha, se coloca nua diante de todos nós. Tudo o que ela vai falar agora, ela fala de um jeito agressivo lá dela, às vezes com humor, de vez em quando muito doce, outras vezes desmunhecando, bem esnobe.

Chico de Assis (publicada originalmente em janeiro de 1972)

Por Roberto Freire

Entrevista com Chico de Assis: teatrólogo, ator, astrólogo, músico, poeta, etc., ser humano por vocação.

Nossa geração teve um só e grande guru: Chico de Assis. De 1958 a 1972, período em que testemunhei os mais importantes acontecimentos culturais e artísticos da vida brasileira, Chico de Assis esteve presente e atuou em todos. E de forma inspiradora, desencadeante, aprofundando seus conteúdos, corrigindo seus desvios, tanto por obra própria quanto na influência que exerceu sobre a dos companheiros e grupos. E, ao contrário dos gurus indianos, Chico de Assis aliou à sua força espiritual uma presença humana direta, intensa, contraditória e irrecusável pela sinceridade e humildade em todas as coisas que fez, pensando mais em quem recebe do que em quem dá cultura e arte.

Conheci o Chico de Assis no teatro de Arena, quando ele representava Jesuíno no "Eles Não Usam Black Tie", de Gianfrancesco Guarnieri. 1958, momento importante para a dramaturgia brasileira, pois além dessa peça, duas outras propunham novo e coincidente caminho para o teatro nacional: "O Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, e "A Moratória", de Jorge Andrade. Era um caminho nacionalista e de conteúdo social aberto. E propunha análise e novas experiências. Chico fazia parte do grupo que criou o Seminário de Dramaturgia, no Arena, e com ele estavam o Guarnieri, o Augusto Boal, o Oduvaldo Viana Filho e o Flávio Migliacio, entre outros. Eu também participava e comecei a compreender a força da inteligência, a paixão às vezes desesperada, a sinceridade chocante e o espírito de grupo humilde do Chico. Hoje ainda colho frutos de nossas brigas apaixonadas daquela época. E essa foi uma das fases mais profícuas e brilhantes de nosso teatro, na beleza e na conseqüência: "Testamento do Cangaceiro", de sua autoria, montada no Arena, não foi sucesso, mas com ela Chico mostrava a tendência que nunca abandonou: buscar no folclore os motivos, situações e tipos para suas peças e músicas.

No Rio e no Nordeste, ele continuou suas pesquisas folclóricas e procurou conhecer a natureza do sentimento e da consciência popular. Mas trabalhava sempre em grupo, juntando-se aos jovens inquietos e lúcidos que mais tarde iriam se tornar famosos no cinema e na música popular. Participou de uma das primeiras e importantes realizações do cinema novo, os curtas-metragens de Joaquim Pedro de Andrade ("Couro de Gato", e de Leon Hirschmann ("Pedreira de São Gonçalo"). Assim como "Eles Não Usam Black Tié" foi um marco na renovação do teatro brasileiro, "Couro de Gato" faz parte da história nova de nosso cinema.

Glauber Rocha achou a presença de Chico de Assis indispensável no movimento musical que se iniciava na Bahia, logo depois que fez "Barravento" e conheceu o moço durante a montagem do filme (feita por Nélson Pereira dos Santos). Chico se mandou, e em Salvador exerceu tirânica e apaixonada influência na garotada talentosa, mas dispersiva. É Tom Zé quem conta: "O Chico de Assis trancava a gente num quarto, com comida, água, cigarro, papel, lápis e violão. E não abria enquanto a gente não tivesse passado pra ele, por baixo da porta, um número de composições cuja qualidade ele aprovasse". Sua amizade com Caetano Veloso resultou, mais tarde, uma parceria numa das músicas do espetáculo "Arena Canta Bahia".