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As Muitas Baladas do Louco

Gênio lúdico, mutante em eterna contradição, Arnaldo Baptista passa os dias a pintar, compor e jogar com a vida – e sem nenhuma pressa de envelhecer

Por Daniel Benevides Publicado em 13/07/2009, às 09h43

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Arnaldo Baptista - FOTO VICTOR AFFARO
Arnaldo Baptista - FOTO VICTOR AFFARO

Arnaldo dias baptista está feliz. Malandro velho, não tem nada com as mil conjecturas em torno de sua figura mítica. Aos 60 anos (ele é de 6 de julho de 1948), foi claramente poupado pelo tempo. Talvez porque tenha nascido de novo, depois de uma tentativa de suicídio, em 1982. Ou porque tenha alma de criança, como disse Sean Lennon, no emocionante documentário Loki, que acaba de ser lançado nos cinemas brasileiros (depois de ser aplaudido de pé em inúmeras apresentações em festivais locais e internacionais). O certo é que suas rugas só aparecem como dobras do sorriso simples, aberto, frequente. Brancas, apenas as costeletas - os cabelos permanecem os mesmos de quando chacoalhava a cabeça à frente dos Mutantes, com alegre entusiasmo.

Há 24 anos, Arnaldo vive em uma simpática casa nos arredores de Juiz de Fora (Minas Gerais), no meio de um condomínio verdejante. É ali, ao lado da mulher e firme parceira de todas as horas, Lucinha Barbosa, que montou seu lar e laboratório de músicas e pinturas. Zen, nada parece perturbá-lo em sua rotina. Dorme muito cedo - em geral numa cama instalada em seu estúdio, com o piano e a bateria de um lado e uma parafernália de equipamentos do outro - e acorda mais cedo ainda. "Eu faço promessa diariamente para dormir mais tarde, porque acordo de madrugada", ele explica. Desde a última e estafante turnê com os Mutantes pela Europa e pelos Estados Unidos, em 2006 e 2007, Arnaldo sempre toma algum remédio para dormir.

Chega a levantar às 3 da manhã, bem antes do sol que costuma banhar as plantas e as árvores em volta da casa. "Fico pintando quadros e compondo. Depois faço duas horas de 'cooper-caminhada', até a universidade." Está magro, em boa forma. Diz que também faz abdominais e levanta pesos - e garante, não sem orgulho, que já fez uma centena de flexões de uma vez. Saúde - física e mental - é um conceito que parece delinear sua nova visão de vida. "Eu estruturei o meu modo de ser", ele relata. "Uma vez me falaram: 'Não importa o que aconteceu, o que importa é o resultado'. Fiquei mais voltado para mim mesmo, sem ter de dividir tanto com um lado que às vezes não ia totalmente de acordo com meu ser."

Quando chego a sua casa, acompanhado da equipe de produção de Loki - entre eles o produtor André Saddy, do Canal Brasil, e o diretor Paulo Henrique Fontenelle -, a luz já prenuncia o fim da tarde. A recepção é calorosa. Arnaldo Baptista, gênio lúdico, para muitos o inventor do moderno rock brasileiro, consegue ser humilde e, ainda assim, manter certa aura de majestade. Ao apertar sua mão, percebo que, apesar de acostumado a situações semelhantes, fico emocionado. Em meio ao animado burburinho que tomou conta da casa, peço que me mostre os outros cômodos. Há quatro níveis, que acompanham a topografia íngreme do terreno. Em comum a todas as paredes estão os quadros, cada qual uma colorida viagem imagética, mas também verbal - ele adora jogos de palavras, trocadilhos, suas "arnaldices". No escritório do andar de cima, onde conversamos mais calmamente, ele aponta um quadro chamado Menina dos Olhos. Trata-se de um grande olho com uma mulher nua no lugar da pupila. Pouco antes, na sala, tinha me mostrado, rindo, Mão na Lisa, pintura do rosto de uma mulher semitampado por sua mão. E também a divertida obra O Ringo Starr? Não! Ele foi Paul McCartney no correio.

O hábito da pintura surgiu depois do eufemisticamente chamado "acidente", que ele explica: "Eu tinha sido internado injustamente umas cinco vezes. Passei a fazer parte do arquivo médico: qualquer coisa era motivo para me internarem. Me senti relegado, pensei que ia ficar lá para sempre. E então pulei para fugir. Consegui". No seu tom não há mágoa - ao contrário, Arnaldo fala com certa candura da situação que o levou a saltar do 3º andar do Hospital do Servidor Público, em São Paulo, em 1982. Com o passar dos anos, o assunto parece ter perdido um pouco do impacto, da tonelagem emocional, como se, polido pelo tempo, tivesse se tornado uma lembrança que pode ser manuseada sem medo. "Eu fiquei vários meses entre a vida e a morte. Encontrei entidades como Einstein, Cristo, Buda. Agora eu tô numa segunda infância, nasci de novo. Reaprendi a falar brincando. A pintura me ajudou bastante." Cita o ilustrador norte-americano Max Field Pirex, falecido em 1966, como maior influência no seu estilo de pintar. Penso com meus botões que essa aproximação é injusta com os quadros de Arnaldo, mais próximos de um dadaísmo hippie - e, portanto, mais geniais - do que das fantasias kitsch de Parrish.

O "arnaldo d.a." (depois do acidente) gravou dois discos apenas - isso sem contar o registro ao vivo que fez há três anos com os novos Mutantes (seu irmão Sérgio, o baterista Dinho, a cantora Zélia Duncan e outros seis instrumentistas). Em 1987, pousou em algumas lojas o Disco Voador, um quase impenetrável registro de reclusão, feito com o incentivo do amigo de fé Luiz Calanca, dono do selo Baratos Afins - e que relançou discos dos Mutantes e os trabalhos solo de Arnaldo bem antes da febre que tomou conta do mundo, incluindo nomes como Kurt Cobain, Beck, Beastie Boys e Radiohead. Sintomaticamente (ou ironicamente), o disco trazia duas novas versões da famosa "Balada do Louco", seu mais contundente manifesto. Mais recentemente, em 2004, com produção de John Ulhoa, guitarrista do Pato Fu, surgiu o bonito Let It Bed, recheado de novas composições e lançado encartado à extinta revista Outracoisa, capitaneada por Lobão, outro de seus célebres e devotados admiradores. Em ambos os discos, Arnaldo tocou todos os instrumentos. No segundo caso, o esforço foi tanto que foi obrigado a ir ao hospital durante as gravações.

Talvez por isso, Arnaldo esteja um tanto relutante com novos projetos. Mesmo assim, se entusiasma ao falar das dez músicas que compôs ultimamente. Abre uma gavetinha em seu quarto/estúdio e tira de lá um caderno, onde anotou suas letras novas. Alguns títulos: "Gatinho", "Lulu's Back in Town", "Here Comes the Devil", "I Don't Care About" e "Colcha de Retalhos". Esta última, explica, é complicada, junta violão com solo de bateria. Quer gravá-las como próximo disco, em seu novo "aparelho digital" (como ele descreve seu gravador de CDs), sob o nome Esphera.

Ao final do dia, depois de muito conversar e posar para fotos, ele abre a tampa de seu piano e toca espontaneamente alguma dessas músicas novas. A agitação que se fazia na casa cede espaço para uma atenção reverente. Imerso na música, Arnaldo parece evocar fantasmas antigos ao mesmo tempo que cria novos sentidos. Espalhadas no ar, as notas soam como se contivessem alguma mensagem, como se dissessem: "Estou aqui, vivo e vivendo". Uma das canções é infantil, conforme ele explica. Soa mesmo como um "Bife", o exercício mais básico do piano. As demais, no entanto, têm sua marca: melodias raras, fraseado único, humor idiossincrático, intensidade emocional.

Conta que propôs ao irmão Sérgio Dias de fazerem um trio, ao lado de Dinho, que fez parte da formação clássica do Mutantes. O nome do grupo seria Dream ("um sonho inimaginável"), uma alusão a seu amado Cream. O baixista do trio, Jack Bruce, aliás, é quase uma obsessão, que Arnaldo menciona a todo momento como referência. Mas, aparentemente, Sérgio não lhe deu ouvidos. Diante da sua conformada frustração, penso no primeiro parágrafo do ótimo livro que o músico escreveu há mais de 20 anos, a ficção científica Rebelde entre os Rebeldes, lançada recentemente: "Naquela época, eu ainda não entendia a linguagem muda das cidades, mas sentia o soar distante de uns acordes em uníssono que me avisavam que o futuro seria muito diferente do que eu sonhara na juventude". Agora, Arnaldo pensa em fazer shows como "trabalho em progresso", montando a cada vez que apresenta uma música nova ao vivo, tocando primeiro a bateria, depois o baixo, o teclado etc.

Pergunto se ele escuta bandas novas, se acompanha o cenário musical. Diz que não tem tempo. Saddy, o produtor de Loki, e fervoroso entusiasta da obra de Arnaldo, lança o nome do The Flaming Lips. "Não gostei muito - acho meio superficial." Tentamos de novo. Dessa vez, com o OK Computer, do Radiohead, que colocamos para tocar no som potente do estúdio. Arnaldo se senta numa poltrona velha e acende um cigarro. Depois de muita risada e batepapo divertido, é um pouco estranho vê-lo totalmente compenetrado. Em meio à fumaça de cuidadosas baforadas, o rosto assume um ar sério, profundo, majestoso. Arnaldo está em seu domínio. Demonstra respeito pela música do grupo inglês, mas não parece nem um pouco impressionado. Diante do meu tímido "o que você está achando?", ele volta ao sorriso habitual e diz, com sua voz de criança gentil, aplicada: "Parece a fase romântica do Rod Stewart". Ao fundo, Thom Yorke se desmancha, inutilmente. Quando o Radiohead esteve no Brasil, o guitarrista Jonny Greenwood, a exemplo de Kurt Cobain, tentou entrar em contato com Arnaldo. Sem sucesso.

O grande compositor de "qualquer bobagem" parece dosar a impressionante modéstia com certo alheamento. Em Loki, há cenas em que fica um tanto surpreso e (contidamente) emocionado com a adoração dos fãs em toda a parte onde os Mutantes se apresentaram, de Londres a São Francisco. Assistiu ao documentário sobre sua vida umas dez vezes, um pouco por esquecimento, outro tanto para estar junto a seu público - nunca por vaidade. "Cada vez eu achava uma coisa totalmente diferente. Parece que eu tô me olhando no espelho: só que um dia eu acho que sou o Zé do Caixão; no outro, que sou Alain Delon." Gostou muito do filme, é com carinho que fala dele: "Eu me deixei levar e deu no que deu. Botei fé em quem tava fazendo. O resultado foi tão inesperado! Não é monótono, entretém, tem 'appeal'. Foi gostoso fazer.

Acho que me retratou em parte total", diz, com uma de suas famosas contradições que misteriosamente fazem todo o sentido. E emenda: "Agora que eu estou no cinema, vão conhecer o meu lado rebelde".

Sobre Rita Lee, presença inevitável no filme e na história de vida de Arnaldo, ele não esconde a perplexidade, que, no entanto, vem acompanhada de ternura: "Ela é muito difícil de prever, não consigo entendê-la nunca. Nos encontramos num show aqui na cidade e a cumprimentei. Ela me disse: 'Eu não gosto de ninguém que anda com você'". Em seguida, ele relembra a música que Rita lançou em 1981, "Mutante", cuja letra diz: "Pena que você não me kiss/não me suicidei por um triz".

Arnaldo vê bastante televisão. Gosta de acompanhar as descobertas científicas nos canais Discovery e National Geographic, mas também vê Faustão e desenhos do Pica-Pau. Além da amplificação valvulada, tecla que sempre pressiona e motivo alegado para sua segunda saída dos Mutantes ("foi um começo para mim, que no final não me satisfez tecnologicamente"), tem outras "manias", como o vegetarianismo e a energia solar - diz que seu sonho é ter um carro movido a energia solar, como os jipes lunares. Acredita que os políticos fazem mal em não se voltarem para esses assuntos. Surpreendentemente, prefere o CD ao vinil: "[O som] é mais claro, mais definido. Além do que não precisa prensar, posso fazer aqui mesmo em casa". Sobre drogas, diz que não dá para falar a respeito. Mas toma vinho ("que me deixa alegre, pronto para compor") e caipirinha, que adora. E não dispensa um bom cigarro. Ou, como prefere dizer: "Cogito, ergo, fumo".

Pergunto (meio em dúvida se deveria) se ele se acha louco, como diz em uma das letras de Let It Bed. "Em parte sou", responde tranquilamente, como se estivesse falando de guitarras Gibson (outra de suas obsessões), de buracos negros ou corridas de moto. Sábio e "autobiográfico", ele complementa: "A gente pode entender a loucura de várias maneiras. Louco pode ser o cara que gosta de andar no telhado e às vezes cai - esse é um louco meio esquisito -, mas também pode ser o cara que gosta de fazer música, pintar, escrever, amar..."

A noite chegou. Sentados à mesa da cozinha, somos acolhidos pela hospitaleira Lucinha, que nos oferece cerveja. Arnaldo, animado, bebe dois copos de Caracu. Solta mais uma de suas "arnaldices": "Sabe como chama quem nasce em Juiz de Fora? Bandeirinha!" Rimos, todos satisfeitos com o dia. Lá fora, a escuridão já é completa. Algumas horas antes, ele havia definido o conceito de felicidade: "Tem a ver com resistir no seu modo de ser". Na hora da despedida, peço que Arnaldo faça uma última pergunta para si mesmo. Ele pensa e solta. "Você está conseguindo?" Resposta: "Parcialmente".