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Exclusivo Site: Fim de Carreira para os Dependentes do Stress

Por Beto Costa Publicado em 27/06/2009, às 12h49

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Dezessete de novembro de 2008. O mercado financeiro vivia dias de nervos à flor da pele, embalados pela derrocada do banco Lehman Brothers, episódio que marcou o estopim da crise global. Por volta das 15h30, o prédio da Bolsa de Mercadorias & Futuros, no centro de São Paulo, foi sacudido por um estampido. Em pleno pregão, o operador Paulo Sérgio Silva, 36 anos, empunhou uma pistola 380 milímetros e desferiu um tiro contra o próprio peito. O disparo atingiu a região abaixo do coração. Os negócios sequer foram interrompidos.

Paulo Sérgio passou quarenta dias internado, vinte deles na UTI. Ainda está sob cuidados médicos e toma doses pesadas de antidepressivos. O episódio mexeu com a cabeça de quem vive o dia-a-dia da BM&F. Amigos mais próximos falam, mas preferem não se identificar. Paulinho, como é conhecido, fica com o silêncio. Não há previsão para ele voltar ao batente. O operador que driblou os seguranças e tentou se matar no local de trabalho tem um histórico de problemas de saúde. Quinze anos no pregão se converteram em cinco anos de insônia; depois veio a depressão, diagnosticada um ano antes, e o afastamento do trabalho por recomendação psiquiátrica. "Ele é uma pessoa normal, tranquila, ajudava todo mundo. Trabalhava com o dólar e vivia uma pressão muito grande por desempenho, da corretora, dos clientes", avalia Márcio Mieza, amigo de Paulo Sérgio e presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Mercado de Capitais.

Há quem queira transformar Paulo Sérgio num mártir da categoria, enxergando em sua atitude extremada uma espécie de protesto suicida contra o fim do pregão. No final do ano passado, o término das operações dos negócios viva-voz era apenas um boato. Agora, já é fato: em 30 de junho a BM&F terá seu último dia de gritaria, seguindo o exemplo tomado há quatro anos pela Bolsa de Valores de São Paulo. Em meio a mais grave crise econômica da era moderna, desaparecerá a cena símbolo do capitalismo financeiro, o empurra-empurra frenético do pregão. Quatro anos atrás, eram mil e duzentos operadores. Atualmente são trezentos e sessenta. No dia 1º de julho, não haverá mais nenhum.

Os operadores estão na ponta de uma engrenagem alucinante. Pelo telefone recebem, o tempo todo, ordens de compra e venda que precisam ser negociadas aos berros a todo custo. "Quando eles mandam vender dólar, por exemplo, não querem saber se tem comprador", relembra o ex-operador Claudinei Honorato, 44 anos. "Hoje vai ter número": está é a senha para os dias mais turbulentos, quando se espera a divulgação de algum índice econômico. Antes do aguardado anúncio, as corretoras analisam o mercado, tentam adivinhar o que está para acontecer e ganhar dinheiro em cima da previsão. Acreditando que o dólar vai subir, compram a moeda com a cotação em baixa. Se a aposta não vinga, dá-lhe ordem para vender.

O barulho no ambiente de trabalho ultrapassa os 85 decibéis (acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde) e a gritaria é capaz de provocar calos nas cordas vocais. "A gente fica em pé o dia inteiro, não pode nem ir ao banheiro, já que o cliente pede que não haja interrupção nos negócios", conta Mieza, que além de presidir o sindicato, carrega no currículo uma carreira de dezoito anos como operador. Ele comanda uma ação na Justiça para tornar obrigatório um adicional de insalubridade de 20 % sobre os ganhos. Apesar do cotidiano turbulento, nenhum profissional desistiu do trabalho nos últimos meses. Alguns chegam a dizer que são viciados naquele universo.

Claudinei visita o pregão há sete anos, quando foi demitido de uma corretora. Toda semana, encontra-se com os ex-companheiros para matar a saudade e reviver o tempo "em que era feliz e não sabia". Ele estava na porta da BM&F no dia 17 de novembro e, assustado, viu a correria para levar Paulinho ao hospital. O ex-operador sentiu o padrão de vida despencar vertiginosamente quando perdeu o emprego de mais de vinte anos. Passou a fazer bicos. O dinheiro minguou em casa e levou o casamento embora. "Aos 44 anos fui morar com a minha mãe, senão eu estava na rua". Sem opção, Claudinei trocou a adrenalina do pregão pela rotina monótona de porteiro da Faculdade FMU, no bairro da Liberdade, em São Paulo. "Eu sinto falta, preferia a vida estressante. Agora passo 12 horas sem fazer nada e ganho uma merreca. Não tenho experiência em mais nada, não tem por onde recomeçar a esta altura", lamenta-se.

O drama de encontrar outro caminho profissional por volta dos 40 é o fantasma que assombra a categoria. A maioria não fez faculdade, ganha em torno de R$ 3 mil (com bônus, o valor pode chegar a R$ 5 mil) e passou boa parte da vida ganhando o sustento no grito. João Luiz da Silva, 38 anos, demitido em 2008, pouco antes da crise financeira iniciar a fase mais aguda, vai levar a mulher e os três filhos para São José dos Campos, no interior de São Paulo. É a cidade onde a irmã mora, esperança dele de encontrar trabalho. "O que aparecer a gente aceita. Já fiz alguns bicos de motorista. Eu saí numa época ruim e São Paulo não tem emprego, está saturada". O fim da carreira foi um trauma para quem afirma ter vivido o limite máximo de stress. "Eu deixei documentos no meu armário na BM&F e não consegui, não tive vontade de voltar lá para pegá-los", conta, com a voz embargada. João teve síndrome do pânico duas vezes e toma medicamentos até hoje. "Eu não conseguia trabalhar, não conseguia nem pegar o metrô". Longe do mercado, admite: sente falta da adrenalina.

Dependência

O operador Hugo Nunes Santos, 44 anos, sintetiza o sentimento dos colegas quando fala sobre o fim do pregão: "Eu não conseguiria viver sem stress". O dia-a-dia estafante para quem vive a montanha-russa do mercado financeiro não vem como um fardo, como parece para quem está de fora das rodas de negociação da Bolsa.

O psicobiólogo José Roberto Leite, coordenador da Unidade de Medicina Comportamental da Unifesp e estudioso do stress, já tratou operadores com problemas de saúde. Ele explica que os desafios da profissão atraem pessoas de estilo objetivo, que gostam de desafios. Entre um negócio fechado e outro frustrado, elas são diariamente submetidas a situações chamadas estressoras. O estímulo provoca descarga de adrenalina, hormônio que prepara o organismo para situações de alerta, e liberação de endorfina, que provoca sensação de bem-estar. Esta última substância tem efeito parecido ao da morfina, um analgésico poderoso derivado do ópio e capaz de zerar dores extremadas. Um coquetel com efeitos em longo prazo. "Não é comprovado cientificamente ainda, mas posso dizer que o stress crônico vicia. É como o atleta de ponta que sem atividade física tem síndrome de abstinência. É como o viciado em jogo: nem sempre ganha, mas quer tentar de novo. Se operador só acertasse, seria mais fácil deixar a profissão. O problema é que há um reforçador, o ganha-perde. Ele quer ficar exposto à situação porque sempre acha que na próxima vai acontecer [um negócio bem-sucedido]".

Quando ocorrem falhas nas reações químicas no cérebro, podem surgir distúrbios como a síndrome do pânico e a depressão. "A propensão de manifestar problemas psiquiátricos em pessoas submetidas ao stress crônico, na maioria dos casos, é genética. Normalmente há histórico familiar. No caso dos operadores, ficam doentes aqueles que têm uma percepção mais aguda da pressão que sofrem no trabalho. Não dá para tratar só com medicamento. É a terapia que vai ensinar recursos para lidar com aquela situação extremada", explica José Roberto.

Talvez tenha sido a "dependência no stress" a responsável por fazer os operadores ignorarem os sinais cada vez mais evidentes de que o pregão não teria futuro. "Faz tempo que eu falo que há uma limitação física para o negócio crescer. Nem o estádio do Morumbi seria suficiente para ampliar o volume de negócios", acredita André Demarco, diretor de operações da BM&F/Bovespa. Pesou o prazer de negociar aos berros. "Os operadores gostam do que fazem. Ninguém sai, tanto que não há renovação", avalia Márcio, presidente do sindicato.

Poucos acreditavam na extinção completa. "Depois que vieram os sistemas eletrônicos eu imaginava que ia diminuir, não pensava que ia acabar", revela com semblante preocupado o operador Valdir Siqueira. Desde 2005, a BM&F oferece cursos preparatórios para a migração, mas pouco frequentados, afirmam os responsáveis. Os operadores criticam, dizem tratar-se de ensino "buzina de avião: não serve para nada".

A silenciosa revolução digital avança rapidamente e já domina parte das negociações. À frente de sua mesa de trabalho, André Demarco aponta uma das várias telas de computador com as quais lida diariamente. Indica um quadro eletrônico no qual pipocam ofertas de negociação de um tipo de ação. "No pregão viva-voz uma oferta demora dois, três segundos para ser feita. No sistema eletrônico, são duzentos milissegundos". Além de mais veloz, a tecnologia representa redução de custos, princípio básico das empresas nessa era de crise. "No viva-voz, cada operador participa de uma única roda de negociação para fechar um único tipo de negócio. No eletrônico, o mesmo cara pode fechar, sozinho, vários contratos ao mesmo tempo. Não adianta, é um Fusca contra um Porsche", compara. Especialistas apontam, ainda, a diminuição de erros. Nos negócios fechados no grito, fiscais e câmeras de vídeo acompanham a movimentação dos operadores. Pela internet, basta uma senha para, de qualquer lugar do planeta, participar do pregão. O sistema registra todas as ofertas automaticamente.

Derrotados pela tecnologia, os operadores se orgulham por ter segurado o tranco de várias crises. Afirmam ser corresponsáveis por colocar o mercado financeiro do Brasil entre os maiores do mundo. Atualmente, prestes a serem cuspidos de seus postos, sentem-se carta fora do baralho. "O mercado sugou os profissionais e agora não dá suporte", reclama Márcio.

Encostado na parede da esquina, Anderson "Camboja", 32 anos, exibe um sorriso nervoso para contar que acaba de ser demitido. A alegação é de que chegou o momento dos cortes. O sonho dele e dos outros era ser absorvido pelas corretoras com as quais têm contrato de trabalho. Mas poucos terão lugar nessas companhias. A maioria, como Camboja, vai fazer uma aposta ainda mais arriscada. Com a indenização trabalhista, irão virar "autônomos" - comprar e vender ações com o próprio dinheiro. "Vou tentar tirar um salário com o lucro dos negócios. Muita gente já tentou e quebrou a cara. Você tem começar com pelo menos R$ 15 mil, o que pode virar alguma coisa ou nada em pouco tempo. Você sabe, a Bolsa é o Banco Imobiliário dos ricos."

Amigos dizem que Paulinho não volta porque não quer ver o pregão virar pó. José Roberto, o "especialista" em stress, sentencia: "Com certeza surgirão novos casos de depressão. O sentido da vida deles é o jogo".