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A Sorte Está Lançada

Considerado o embaixador brasileiro do pôquer, André Akkari largou o emprego pelo jogo, se dedica às cartas por prazer e jura não se importar em perder de vez em quando

Por Pablo Miyazawa Publicado em 29/06/2011, às 14h16 - Atualizado em 03/05/2012, às 11h54

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Andre Akkari - Ignácio Aronovich
Andre Akkari - Ignácio Aronovich

Por alguns instantes, o olhar de André Akkari parece perdido. Os amigos costumam dizer que brasileiro ele parece "possuído" quando em estado máximo de concentração, mas, naquele momento, "contemplativo" seria a definição mais indicada. Movimentos visíveis, apenas nos dedos das mãos: frenéticos, eles se dividem entre tiques distintos. Ou deslizam repetidamente duas cartas de baralho sobre o feltro verde; ou executam um complicado padrão circular as fichas plásticas coloridas, girando uma a uma ao redor dos dedos; ou ainda as embaralham habilmente e sem critério, gerando um ruído semelhante ao de um enxame de abelhas-operárias em serviço. Cada mínimo sinal de reação é acompanhado pelo olhar atento de uma câmera apontada insistentemente para sua figura.

Manias parecidas são executadas pelos sete indivíduos entre 20 e 65 anos que rodeiam a mesa. Não há sinal de qualquer objeto além das fichas - nenhum copo com bebida, cinzeiro sujo ou notas de dólar. O ambiente, iluminado como o interior de um shopping, e a excessiva circulação entre as mesas compõem a antítese do estereótipo clássico de uma roda de pôquer.

André Akkari, 34 anos, paulistano com traços de caricatura, constituição robusta e sorriso constante, é um dos 327 jogadores a tentar a sorte no salão hotel-cassino Mantra, no torneio Latin America Poker Tour, em Punta Del L este, Uruguai. "Tentar a sorte", figura de linguagem das mais baratas, soa como ofensa para a grande maioria de profissionais do jogo de baralho mais popular da atualidade. "Nunca ganhei nada por sorte. Nunca fui sorteado em rifa, nunca acertei dois números da loto" , despista Akkari (o sobrenome tem origem libanesa). Estima-se que aproximadamente 200 milhões pessoas joguem regularmente alguma modalidade de pôquer (o enquadramento na categoria "esportes da mente", reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional, é o objetivo da classe engajada). Só no Brasil, são prováveis 100 mil jogadores ativos - o número é obscuro e variável porque a prática do jogo transita na área cinzenta localizada entre a aceitação social e a ilegalidade.

A fabulosa trajetória de André Akkari se confunde com a de tantos outros aventureiros que transformam um passatempo viciante em uma chance de rápido upgrade financeiro, mas se destaca pelos requintes de conto de fadas dos tempos modernos - algo como se a Cinderela conquistasse o coração do príncipe encantado unicamente graças a seus dotes com o baralho. "O caso dele é o extremo maior desse tipo de história", elabora Juliano Maesano, que foi sócio de Akkari na revista Flop, voltada para a popularização do pôquer. "Começou em torneios gratuitos na internet, em mesas de centavos, e hoje ele disputa os maiores eventos de igual pra igual com qualquer um."

Em quatro anos, o pôquer deixou de ser a modalidade mais fora-da-lei do carteado para ganhar o mainstream, invadir programação televisiva e se tornar um hábito cada vez mais difundido entre as altas rodas brasileiras. Akkari, com seu estilo expansivo, debochado e carismático, é um dos responsáveis por essa ascensão. Dizem os praticantes que a razão da popularidade e da quantidade de dinheiro cada vez maior em torno do jogo - um torneio ocorrido no Rio de Janeiro em 2008 pagou US$ 223 mil ao campeão - é o fato de jogadores inexperientes terem a chance de vencer por eventuais golpes de sorte. "A probabilidade existe, mas é essa esperança que a gente quer que as pessoas tenham. A maioria dos amadores fugiria se não achasse que tem chance", Akkari entrega com sinceridade risonha, esparramado na poltrona de seu apartamento na rua Bonsucesso - um detalhe que, dada sua saga extraordinária, nem soa como coincidência.

Atualmente, a família - ele, a esposa, Paula, e as filhas, Giovanna (10 anos) e Maria Eduarda (4) - mora em L as Vegas. Vazio, o apartamento na Zona Leste de São Paulo permanece como o ponto de apoio do jogador nas passagens atribuladas pelo país. Quando chego para a entrevista marcada, a entrada é feita pela área de serviço - o dono da casa não trouxe ao Brasil a chave da porta principal. Mesmo desabitado, o local é mantido imaculadamente arrumado. Na geladeira, apenas uma garrafa de refrigerante preenchida até a metade. Na prateleira abaixo da TV de tela grande, diversos DVDs sobre pôquer remetem ao principal evangelho ditado no recinto. Na mesa de centro, portas-retratos exibem momentos selecionados da boa vida de pai e marido. O apego familiar e a filosofia do "fazer o bem para receber de volta" são consequências da convivência sempre harmoniosa com a mãe - que se divorciou do pai de André quando ele era adolescente - e com o irmão adotivo. "Nunca pus um cigarro na boca, nunca fumei maconha, nunca vomitei com bebida", ele completa. "Já bebi pra caramba, fiquei louco, mas nunca caí. Gosto de ter prazeres, mas sempre tento fazer o básico bem feito." Entre os planos para o futuro próximo estão o retorno a São Paulo e a adoção de uma criança. "É complicado no Brasil, burocrático. Parece que não querem que você faça", reclama.


O ganha-pão de Akkari é o hold'em, modalidade jogada com duas cartas nas mãos de cada participante e cinco abertas na mesa, com as quais cada um cria combinações em rodadas sucessivas de apostas. É fato que há outros jogadores no país com resultados mais significativos. Em 2008, o curitibano Alexandre Gomes se tornou o primeiro brasileiro a ganhar um torneio da World Series of Poker, angariando o tradicional bracelete de ouro e um prêmio bruto de US$ 770 mil. Dois meses depois, pelo quar to lugar em um torneio nas Bahamas, levou mais US$ 750 mil.

O forte de Akkari, conforme ele mesmo assume, são os torneios pela internet - se não coleciona tantos feitos em competições ao vivo, ao menos é figura constante em eventos na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos. Sua técnica consiste em observar e colecionar "arquivos anexos" sobre as características de cada adversário. "Se não conheço ninguém da mesa, finjo que não estou ali. Fico uns 20, 25 minutos sem aparecer . Para ver o que os caras falam, o que eles fazem, quais são as piadas. Fulano usa um Rolex, aquele outro está sem grana..."

Ele prossegue em sua teoria: "O pôquer é feito de simular força quando você não tem e simular fraqueza quando você tem. Acho que publicitários como Nizan Guanaes, Washington Olivetto, se sentassem pra jogar pôquer , seriam muito bem-sucedidos. Porque conseguem olhar pras pessoas e decifrar o que elas estão precisando, sentindo".

Não por coincidência, Akkari tem diploma de propaganda e marketing. E, além da alardeada e histórica falta de sorte, jura que o talento para o jogo não veio do berço. "Antes do pôquer, nunca tinha jogado nada. Buraco, cacheta... Nem gamão ou xadrez", desdenha.

Nascido em 28 de dezembro de 1974, André Akkari começou a levar o pôquer a sério aos 30 - idade considerada avançada em relação ao atual perfil de aventureiros que saltam dos games online para as mesas virtuais dos sites de jogatina. "Eu era sócio de uma empresa de tecnologia", ele relata a trama que já se cansou de contar desde que largou o anonimato. "Um cliente estrangeiro nos solicitou um projeto que envolvia um site de pôquer. Pra fazer o orçamento, tive de instalar o software para ver como funcionava."A reação, afirma, foi imediata: após o primeiro teste, se apaixonou a ponto de sonhar longe - pesavam a dívida infinita com as prestações do apartamento comprado após o casamento e os custos ligados ao nascimento da segunda filha. "Não sobrava nada por mês e faltava, ficava só no cheque especial. Sempre nessa guerra. Aí investi US$ 50 em dois livros sobre pôquer. Sem nem saber ler em inglês." Os resultados da recém-adquirida obsessão vieram. Começou a jogar torneios pela internet, colecionou pequenas premiações e passou a frequentar um circuito de jogadores amadores aos finais de semana. No final de 2005, se arriscou com três amigos em Las Vegas, onde acabou ganhando US$ 22 mil em um torneio disputado por mais de 400 jogadores. "Eu jogava infinitamente pior do que hoje. A conspiração para as coisas darem certo me leva à mesa final. Cai um, outro, eu dobro, triplico... acabei ganhando!", Akkari narra o próprio êxito em tempo presente, como se aquela exata partida continuasse a se desenrolar até os dias de hoje.

Se não saldou por completo os compromissos acumulados, a vitória inesperada fez Akkari imaginar o que aconteceria se sua dedicação ao novo ofício fosse integral. "Mesmo não jogando tão bem, tinha mais noção que a maioria, estava estudando. Sabia que um pouco de habilidade faz diferença e que se eu tivesse muita habilidade, seria até covardia."

"É como no boxe ou no futebol: a cada dia você aprende golpes novos", ele continua, insistindo na comparação com outros esportes. "Depois de tanta convivência com a técnica, você vê que a sorte é nula, no médio ao longo prazo. É um jogo de matemática." Durante seu processo de imersão, chegou a passar 72 horas ininterruptas assistindo a vídeos de pôquer. Em 2006, com ganhos mensais já frequentes, próximos ao que arrecadava com a própria empresa, decidiu se tornar um gambler em tempo integral. Sempre sob a alcunha "AAkkari", virou o líder do ranking online ao longo do ano. A fama virtual se tornou real quando passou a dar as caras como comentarista em transmissões do canal ESPN. Em 2007, se tornou o primeiro latinoamericano a ser patrocinado pelo site Pokerstars.com. Hoje, com rotina digna de um popstar, se acostumou a disputar torneios em cassinos com decoração kitsch, dar autógrafos na rua e ter suas partidas online assistidas por três mil jogadores simultâneos.


"Eu vi no pôquer uma situação em que eu era dono do meu próprio nariz", ele agora entoa o ar professoral de uma palestra de autoajuda. "Organizar minha vida do jeito que eu queria. Quanto mais me aplicasse, mais teria sucesso. Não é como um emprego num banco. Quanto mais eu investisse em mim, mais resultado teria, sem intermediários no caminho."

"O fato de ele ser casado, ter duas filhas e ter abandonado o emprego fixo - tudo isso deixou o roteiro da história dele ainda mais bacana", concorda o produtor Sérgio Prado, responsável pelo início da carreira televisiva de Akkari e futuro coautor de uma biografia sobre o jogador. "O pôquer precisa de estrelas, de gente com carisma e boa postura, para passar uma imagem positiva. E ele é o melhor exemplo, um cara que teve muito sucesso, mas se manteve com atitude exemplar. Isso ajuda a dissociar a imagem do jogador daquele estereótipo do caubói que fuma feito um louco e tem um 38 na mesa." "O Akkari é o nosso maior embaixador brasileiro", complementa o ex-sócio Maesano, "porque é simpático, informal. É um ótimo modelo para muita gente."

Se nenhum jogador profissional de pôquer costuma contar vantagem sobre dinheiro, é por causa da inevitabilidade do tema: a grande maioria dos torneios, seja ao vivo, seja pela internet, alardeia suas polpudas premiações como bandeiras esvoaçantes e coloridas. Akkari, que diz receber mensalmente o suficiente para "pagar as contas e viver tranquilo", não revela quanto já faturou em quatro anos de serviço - seu perfil no Pokerstars.com estima seus rendimentos em mais de US$ 500 mil somente em torneios organizados pelo site. Discreto, prefere minimizar ao máximo o que chama de "situação de exposição". Os maiores gastos com os lucros foram com a quitação do apartamento e com a consolidação do projeto de morar um ano em Las Vegas, em uma casa alugada em um condomínio - para ficar mais próximo aos principais torneios e proporcionar à família uma experiência internacional. Se intitulando "lucrativo", ele rechaça a tese de viver uma rotina profissional arriscada. "Se não fosse no pôquer, teria sido em outro lugar", gesticula, o sotaque paulistano sempre em evidência. "O cara trabalha numa empresa, tem uma carreira, e de repente perde o emprego. Não sei se é mais arriscado ter uma profissão de carreira ou ter a chance de ganhar uma tacada grande e nunca mais se preocupar em ser mandado embora."

Outra questão inerente ao assunto, a desmistificação do estigma negativo do jogo, ganhou ares de cruzada pessoal para Akkari. Especialista em analogias, ele compara a suntuosidade quase pornográfica do pôquer com o requinte socialmente aceitável do tênis. "Não existe diferença entre a mesa final da World Series e a final de Roland Garros", dispara. "O tenista que ganha o torneio leva US$ 3 milhões e meio sozinho! A única diferença é que ninguém fica mostrando o dinheiro do lado da quadra!"

Obviamente, a rotina sedentária do jogador de cartas traz efeitos colaterais mais visíveis do que sua conta bancária. "Agora estou um gordo", Akkari reclama dos quilos acumulados pelo trabalho sentado. "É difícil manter o equilíbrio, mas estou tentando ter uma rotina de exercícios." Um dia de ofício começa tradicionalmente às 14h ("horário dos grandes torneios do site") e termina por volta das 8 da noite, mas às vezes vara a madrugada. O fato de morar na capital mundial da jogatina liberada traz ainda a possibilidade de freqüentar os cinematográficos cassinos da cidade, passeio que faz constantemente acompanhado do amigo Alê Gomes.

Em meio a cartas, fichas e dólares na conta, André Akkari, o empresário-grife-empreendedor, se vê mensalmente às voltas com planejamentos de gastos, planilhas, boletos de impostos sobre os rendimentos e a criação de novos produtos paralelos ao jogo. A empreitada mais recente é o site para assinantes tvpokerpro.com, projeto de reality show que divide com os sócios Alê Gomes e Gualter Salles e a razão pela qual todos os movimentos do trio são filmados sem trégua durante e entre os torneios. Há também a ideia de um curso-palestra itinerante, no qual o jogador conta experiências e oferece dicas aos interessados em seguir a vida de profissional. Pelo que dá a entender, Akkari bem poderia parar imediatamente de jogar para valer e só viver desses "extras".

"Seria insanidade. Mas poderia, se eu quisesse", ele retruca, rindo. "Pode soar hipócrita, mas não jogo pelo dinheiro. É pelo prazer do jogo, pela dinâmica. É o caso do Ronaldo. Você acha que ele está aí com o dinheiro? Tem prazer maior que marcar aquele gol contra o Palmeiras?"


O pensamento soa semelhante ao da maioria dos brasileiros que se aventura pelo pôquer de internet. Diz pesquisa do site Pokerstars que 54% dos brasileiros jogam para buscar aperfeiçoamento cerebral, e 49% sentem ter ficado mais espertos após jogarem. Para Akkari, é também um catalisador de mudanças drásticas, além de uma maneira de - até certo ponto - reforçar sua religiosidade. "Sou religioso, mas não gosto de pedir coisas pra Deus, tipo, uma carta, durante uma partida", ele fala, sem tom de deboche. "Com tanto pepino na mão, Ele não vai ficar me ajudando a ir bem num torneio!"

Após sobreviver por uma hora com a menor quantidade de fichas entre os adversários, Akkari foi eliminado do torneio de Punta Del Este. Ao deixar a mesa, foi cumprimentado de forma amistosa por cada um dos remanescentes. Não que o fato lhe seja anormal - tudo sempre funciona de acordo com sua filosofia do "dando para receber": "Você sai e todo mundo te dá a mão, tapinhas nas costas... Quando isso acontece, alguma energia positiva você gerou ali", acredita.

A queda ainda no primeiro dia de competição é encarada com a naturalidade de quem muito mais perdeu do que ganhou. Nenhum problema, se a ideia fixa da minimização das perdas e maximização dos lucros for levada sempre ao pé da letra. É assim que o jogador AAkkari encara cada mão disputada: "O perder não me incomoda tanto. Quando ganho, comemoro. Quando perco, não sofro tanto". No fundo, conforme faz questão de deixar claro, é tudo uma questão de se fazer o que mais gosta.

"Vou reclamar que perdi em um torneio no cassino Bellagio ou nas Bahamas? Vai se foder, né, cara?", ele desdenha e gargalha alto, sintetizando a imagem pura de um homem realizado. "Claro, eu tenho que manter meu nível mais alto de jogo, mas não dá pra reclamar de nada desta vida, dá?"