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A Caminho do Inferno

Por Simon Grose Publicado em 10/12/2009, às 18h35

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REX FEATURES/IMAGEPLUS
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É o fim de mais um Festival Hurstville Civic Rock em um sábado à noite, e a banda principal, AC/DC, acaba de voltar, suando, ao camarim. O vocalista Bon Scott, enjoado, entra primeiro e corre imediatamente até o banheiro para vomitar. "Foi aquela garrafa de uísque vagabundo que a gente tomou hoje", diz Mark Evans, baixista, um cara baixinho com uma cabeça cujo formato lembra uma batata amassada. "Nunca vi tanta gente certinha junta", resmunga o baterista Phil Rudd, mudando de assunto. Ele se refere ao jovem público do show, que agora corre para fora do local em direção à chuva pesada da meia-noite. Os passatempos de Rudd - dizem as garotas que o esperavam no camarim, com uma mistura de medo e ansiedade - são "solucionar quebra-cabeças e correr atrás de mulheres".

"É como fazer um show num necrotério", ri Angus Young. Com seus 17 anos, Angus toca guitarra solo, é o mais baixo e tem o corpo menos desenvolvido. As garotas o amam. Quando ele saltita pelo palco como um coelho ensandecido vestido em um uniforme escolar, as que estão na primeira fileira gritam e tentam tocá-lo. No geral, o público daquela noite não estava inspirado. O repertório do show foi todo tirado do segundo álbum da banda, T.N.T., que já arrebatou três discos de ouro na Austrália (45 mil cópias), e embora a massa tenha cantado junto incansavelmente, socando o ar como se fossem figurantes da ópera rock Tommy, tudo parecia um ritual repetido, uma reprise do que já acontecia em todos os shows. Entre as músicas, a plateia ficava inquieta, em expectativa e estranhamente silenciosa. Faltava o elemento-surpresa - eles estavam recebendo exatamente o que esperavam e a satisfação já estava por demais completa.

"Não tem bebida aqui, por isso estão todos tão quietos. Você precisa de bebida se quiser que o povo agite", diz George Young, enquanto tira uma garrafa de sua mochila. George é o irmão mais velho dos dois guitarristas, Angus e Malcolm Young. Ele teve seus dias de glória como guitarrista do Easybeats, mas hoje, cada vez mais velho e enrugado, se contenta em servir como produtor e mentor para seus irmãos e seus parceiros. Sua observação de que a falta de álcool possa ter sido o motivo da quietude da plateia faz um certo sentido - o Hurstville Civic Rock é, de maneira geral, um evento saudável.

Os shows semanais de rock começaram há mais de um ano em Hurtsville, subúrbio a 16 km de Sydney [Austrália], quando a câmara municipal local registrou um aumento alarmante nos níveis de delinquência na área. Latas de spray faziam parte do noticiário, jovens garotas exibiam o corpo em lojas de conveniência, gangues de adolescentes andavam pelas vielas com canivetes escondidos em suas botas, o cheiro de marijuana permeava os parques, andar de trem à noite se tornava cada vez mais perigoso e as autoridades já não sabiam o que fazer para encontrar uma solução.

Para preencher o vácuo, decidiram instituir e incentivar um esquema onde qualquer um poderia sugerir métodos para manter os jovens fora das ruas, em troca de uma recompensa em dólares. A única proposta veio de Bob Walker, um desenhista industrial (e ex-baixista) que já trabalhava com a administração local, que sugeriu um espetáculo semanal onde os jovens pudessem dançar. Os políticos foram eventualmente convencidos - especialmente quando Walker explicou que o projeto teria custo praticamente zero e, na verdade, geraria renda (a ideia perfeita). Agora, um ano depois de seu início, o programa segue de vento em popa. Com uma capacidade para duas mil pessoas pagando dois dólares australianos por ingresso, frequentemente os que chegam mais tarde acabam ficando do lado de fora. A fórmula do sucesso de Walker é tão simples quanto sua descrição é direta. "Faça tudo o que os outros organizadores costumam fazer errado: seguranças, um palco profissional, luzes, mantenha a cortina fechada entre os shows, barre os encrenqueiros."

A postura pode ser fria, mas parece que funciona. Um enorme show de luzes é produzido com equipamentos comprados com o lucro dos shows. Um DJ serve de mestre-de-cerimônias e toca entre as atrações. E não há atrasos. Claro que ainda assim existem problemas.

"Tivemos algumas dificuldades com a comunidade iugoslava", diz Walker. "Fomos obrigados a tomar uma atitude a respeito. "Temos uma lista de pessoas cuja entrada não é permitida, e que deixamos com os responsáveis que ficam à porta."

Os iugoslavos de quem ele está falando chamam a si próprios de "Chinas". Eles vêm dos bangalôs abandonados e dos blocos residenciais deteriorados da região de Campsie-Lakemba, raspam os lados das cabeças e ficaram conhecidos por assaltar os outros jovens nos trens com facas. No fim de 1975, o grupo causou uma série de complicações ao evento, mas Walker respondeu com uma campanha de limpeza geral. Os Chinas foram varridos de volta para o lugar de onde vieram, mas as autoridades seguem atentas, preparadas para interferir caso haja contra-ataque.

Uma vez que a idade dos freqüentadores gira em torno dos 16 anos, os seguranças quase não têm trabalho para manter a ordem. Os garotos vão para gastar energia, bater com os peitos uns nos outros e assistir aos seus ídolos. Sherbet e Skyhooks são as duas bandas que lideram a lista de atrações, com grupos como AC/DC vindo logo atrás. O volume é alto, a técnica é básica e o som é animal.

"É rock, não aquelas músicas chatas que todos os outros tocam", diz Stella, presidente do fã-clube do AC/DC.

"É rock`n`roll de verdade, o único tipo que importa", diz Debbi, à espera no camarim.

"Rock`n`roll de alta voltagem", diz Angus Young. "Só isso. Não estamos aqui para confundir ninguém."

"Tem uma coisa meio sexy, mas sem ser vulgar", diz Nigel, guitarrista do Shute, banda residente do evento. Existe todo um esforço local em prol do Hurstville Civic Rock, do qual o Shute é o exemplo ideal. Eles ganharam a permanência através do pai de Bob Walker, que é o zelador da Beverly Hills High, escola onde a banda tocou uma noite. Ele os ouviu, achou que eram bons, e contou ao fi lho, que arranjou datas regulares e se ofereceu como empresário. A banda está junto a cinco anos, e suas performances a qualificaram com o status de "jovem banda promissora". Sobre o AC/DC, Nigel foi sincero: "Eles não são brilhantes enquanto músicos, mas a presença de palco é tremenda".

Angus, por sua vez, não ficou muito impressionado. "Estou pouco me fodendo, mesmo. Mais showmen que músicos? Isso não me preocupa, desde que estejam me pagando. Faço pela grana. Esse negócio de showman não tem nada a ver conosco - a gente só toca e é assim que sai." A abordagem deles é um pouco mais calculada do que isso. Quando iniciou sua carreira, em novembro de 1973, o AC/DC deixou bem claro a conotação bissexual de seu nome, tentando beliscar uma parcela do público de David Bowie e Roxy Music. Já que não funcionou, os dois irmãos mais jovens arrumaram mais três membros e mudaram o foco para o heavy metal. O primeiro álbum com essa postura, High Voltage (1975), ganhou dois discos de ouro. E, a partir daí, a banda deslanchou. Atualmente, estão no Reino Unido promovendo o lançamento do disco T.N.T. com duas turnês, uma como atração principal e outra como banda de abertura, totalizando 40 datas. Quando eles voltarem, após dois meses, o empresário Mike Browning está planejando uma turnê nacional pela Austrália. Ele não tem ilusões a respeito da banda. "São um bando de caras se divertindo e ganhando bastante dinheiro enquanto fazem isso", diz.

Por uma hora de show no Hurstville Rock, eles custam mais de mil dólares a Walker. Mais cedo, no mesmo dia, eles fizeram uma apresentação na Warwick Farm, onde receberam uma soma similar. Para os padrões locais, o valor é alto, mas o AC/DC tem feito por merecer. Walker sabe que o AC/DC irá encher a casa, e que duas mil pessoas vezes dois dólares significa dinheiro. Ele também sabe que todos os interessados - os jovens, as bandas, os políticos, os pais - estão felizes com o resultado.

Na noite em questão, os garotos agitaram em grande estilo, fazendo o chão chacoalhar como um enorme trampolim enquanto bolas de luz coloridas - infelizmente, pálidas graças às lâmpadas já gastas do lugar - dançavam pelo teto. O grupo local Felonious Monk abriu o show com músicas do Status Quo, Bad Company e Led Zeppelin. Todos estavam empolgados e parecia que o lugar iria explodir antes que a noite acabasse. Depois de meia hora de intervalo, durante os quais boa parte do clima já havia se dissipado, a cortina subiu e a multidão se amontoou mais para a frente. Uma sirene rouca começou a soar do alto-falante e uma nuvem de fumaça verde envolveu o centro do palco, onde ficava a bateria. Durante essa introdução, encontrei Bon Scott atrás de uma cortina, com cara de doente. Ele se desculpou pelo mau hálito, dizendo que encheu a cara de barriga vazia na Warwick Farm e que tinha vomitado sem parar desde então. Ofereci minhas condolências e mencionei que uma das garotas no camarim havia dito que ele era mau. E o que ele respondeu? Considerando as circunstâncias, sua reposta foi bem cavalheiresca: "Deve ser porque ainda não fomos para a cama juntos. Elas não têm ideia do quanto sou amável". Teve que gritar as últimas palavras para vencer a sirene que aumentava de volume.

De repente, o clímax. O grupo foi anunciado e marchou para o palco, em direção aos gritos de euforia. Fizeram a apresentação - com todas as músicas que os fãs conhecem e amam - com energia irrestrita e um volume capaz de estourar tímpanos. Apesar de tudo e de todo o entusiasmo na hora de cantar junto, a plateia falhou em fazer o lugar realmente pegar fogo, e o clímax prometido anteriormente se perdeu. Poucos minutos depois da última nota ter sido executada, o lugar já estava quase vazio. Talvez ao descobrir que o AC/DC era exatamente tudo o que esperava, a plateia se sentiu mais aliviada do que empolgada e saiu contente em saber que nada havia mudado.

Por outro lado, pode ser que eles sejam apenas um bando de garotos obedientes, que vão a esse disciplinado show sabendo que não devem arrumar confusão. Se não fosse pelo Civic Rock, as noites de sábado poderiam ser perigosas. O AC/DC já havia previsto o perigo em "T.N.T.":

"Sou sujo, malvado e imoral

Sou um homem procurado

Inimigo público número um / Entendeu?

Então tranque sua filha / Tranque sua esposa

Tranque sua porta / E corra por sua vida."