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Como Perder Uma Eleição

Lições históricas indicam um possível naufrágio tucano. Mas, para retornar à Presidência, será que o PSDB aprendeu com os próprios erros?

Por Fernando Vieira e Rodrigo Barros Publicado em 11/01/2010, às 10h33

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Ilustração Rodrigo Rosa
Ilustração Rodrigo Rosa

Era uma vez uma eleição presidencial perdida. Dois políticos fortes empunhavam bandeiras iguais. Representantes públicos de grande envergadura e do mesmo partido se colocaram frente a frente, disputando entre si uma única cadeira com chances de vitória sobre um terceiro nome. A composição era impossível. Ceder, não. Tanto de um lado quanto de outro. Mas o resultado ficou aquém do necessário. Da cessão, nasceu uma unidade burocrática, sem alma. Destinos independentes e descomprometidos com o sucesso alheio. Aquele que cedeu alçou voo solo, um rasante vencedor sobre a opção alternativa guardada na manga. E observou de cima a derrocada do seu rival-aliado, cada vez mais distante do objetivo que ambos tinham em comum: a Presidência da República.

A cena descreve o hipotético, mas não distante, passo-a-passo de como perder a eleição nos próximos dez meses. Parece um presságio do que pode acontecer na disputa interna entre os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas Gerais, Aécio Neves, pela vaga de candidato a presidente pelo PSDB, nas eleições de 2010. Mas, na verdade, é a síntese de uma história recente já vivenciada, passada também em ninho tucano. Mudam os personagens, mas o enredo se repete.

Em 2006, o então governador paulista Geraldo Alckmin entrou na briga pela candidatura presidencial. Levou a melhor diante de Serra, mas o pior no resultado das urnas. O atual governador nadou de braçada naquela eleição em território paulista. Nem por isso se esforçou além dos limites do Estado. Não ofereceu para o seu algoz interno o prestígio de quem já tinha notabilidade nacional, devido à candidatura presidencial de 2002. Serra se recolheu e, com isso, deixou de tentar colocar novamente o partido no comando do Planalto, independentemente do nome escolhido para exercer o poder maior.

Esse episódio é relatado costumeiramente entre os próprios tucanos, como se fosse de conhecimento público. O boicote partidário ganha até uma aparência de aceitabilidade para grande parte, que admite o racha tucano, especialmente em "off " para a imprensa. No ligar dos gravadores, no entanto, a realidade é suavizada pela maioria. Mas impossível de ser negada. Fala-se em justificativas de um erro de análise, de equívoco de momento para a "forçada de barra" de Alckmin frente a Serra, que seria o candidato natural para enfrentar a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E por aí vai.

A história ensina, mas não obriga o aprendizado. O fato é que, dois anos depois, um novo racha expôs o PSDB do ponto de vista local, na maior cidade do país, cutucando as feridas ainda mal cicatrizadas. Em 2008, contra a vontade do grupo serrista, Alckmin se lançou candidato à prefeitura de São Paulo. Levou às últimas consequências seu intento. Desafiou o "democrata-tucano", prefeito Gilberto Kassab, que almejava a reeleição com amplo apoio até mesmo no ninho de seu oponente. A divisão no PSDB chegou às mesas de botequim, tal a publicidade da enfermidade partidária.

Tratado como doença, o diagnóstico interno era esbravejado pelo deputado federal Walter Feldman, em pleno estacionamento da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, no dia da convenção municipal tucana: "O partido sofre de esquizofrenia". Do lado de dentro, Alckmin, já candidato, falava sozinho em entrevista coletiva: "Estamos unidos". O resultado se mostrou óbvio ao longo do processo eleitoral: Kassab foi eleito, enquanto o PSDB, institucionalmente, derrotado por ele próprio, sequer chegou ao segundo turno.

Problema novamente detectado, mas não resolvido. E, em dias atuais, muitos vêm sinais de repetição dos mesmos erros ganhando contornos para 2010. "O trauma de 2006 não foi suficiente para mudar o PSDB, que vivencia a pior crise de sua história", diz o cientista político Celso Roma, autor da tese A Social Democracia no Brasil: Organização, Participação no Governo e Desempenho Eleitoral do PSDB e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec). "O alvoroço no PSDB em torno da candidatura presidencial está aumentando a rivalidade entre os diretórios de São Paulo e Minas Gerais, além de transmitir ao público a imagem de um partido incapaz de resolver os seus próprios problemas".

A opinião bate com a do tucano Raul Christiano, que escreveu o livro De volta ao começo! Raízes de um PSDB Militante, que Nasceu na Oposição, editado pelo Instituto Teotônio Vilela, sobre a história do partido. "Geraldo teve em 2006 o mesmo comportamento de Aécio agora. O jogo se repete. Vejo isso de forma cristalina", assegura.

Mas, para entender o que há por trás desse embate interno, os dois estudiosos sobre o tucanato vão mais longe, à fundação do partido. O raciocínio formulado por ambos dá a entender que a crise é profunda. Tem vício de origem.

O PSDB foi criado em junho de 1988 para tornar viável a candidatura de Mário Covas à eleição presidencial de 1989. O então senador paulista estava bem posicionado nas pesquisas de intenção de voto. Apesar disso, enfrentava resistência no diretório estadual do PMDB, liderado por Orestes Quércia. A saída encontrada por um grupo de deputados e senadores, sobretudo peemedebistas, foi se desligar do partido e criar o PSDB, permitindo que Covas disputasse a eleição daquele ano. "A preocupação com a Presidência da República é que motiva o PSDB desde a sua origem", diz Roma.

O surgimento do partido, portanto, tem muito mais a ver com a participação na disputa eleitoral do que propriamente com as ideias. "Não dá para falar que há um espectro ideológico uniforme no PSDB, não era o centro da orientação programática em sua fundação", afirma Christiano. E explica: "Moldou-se como um partido de expressões políticas nacionais, mas que não reúne figuras comprometidas ideologicamente".

Endossando o coro, o professor de ética e política da Universidade de Campinas Roberto Romano arremata:"A crônica dos tucanos nas últimas eleições é um problema antigo: o PSDB não é um partido homogêneo internamente. Ele tem falhas de ideologia".

A consequência negativa desse processo tem reflexos hoje, quando o partido é relegado a segundo plano em função de projetos políticos pessoais, sejam eles locais, sejam eles regionais. "Há uma ansiedade pessoal de algumas figuras, o que acaba prejudicando o projeto eleitoral do próprio partido", condena Christiano. O PSDB chega a tomar a aparência até mesmo de um novo PMDB, contra o qual seus fundadores se rebelaram.

Outro aspecto crítico, resultante da natureza de ser um partido de quadros, tem impacto direto na resolução das disputas internas: "São resolvidas da maneira mais tradicional possível, pelas elites do partido, pelos dirigentes, quase que um petit comité. E a solução quase sempre não agrada a determinados grupos", diz Romano.

Mas por que esses problemas ficaram por tanto tempo adormecidos e só apareceram nas últimas eleições? De início, o papel de conciliador coube ao ex-governador André Franco Montoro, um expoente na condução do partido após sua fundação.

Foi ele quem reuniu duas forças principais tucanas, de linhas divergentes, que dominaram os cenários políticos paulista e nacional por cerca de uma década: Fernando Henrique Cardoso e Mario Covas.

Montoro manteve os dois líderes abaixo dele nos primórdios. Soube conduzi-los sem melindres. Em seguida, a história se encarregou de fazer sua parte, inclusive com a inversão de papéis. FHC consolidou- se durante o governo do presidente Itamar Franco à frente do Ministério da Fazenda, assumindo "naturalmente" a vaga de candidato à Presidência, após creditar-se do sucesso do Plano Real, que extirpou a inflação crônica.

Covas, que seria alçado à condição de presidenciável, como uma sequência lógica de quem já havia sido o candidato do PSDB em 1989, teve de se resignar. Ficou no governo do Estado, onde acomodou sua linhagem.

Os políticos permaneceram nos cargos por dois mandatos, cada qual ocupando seu espaço. O poder uniu o partido. Deu aos tucanos de maior expressão o argumento necessário para se reservarem no direito de decidir os rumos da sigla. Nos bastidores políticos, destaca-se ainda o papel de Sérgio Motta, tucano influente e Ministro das Comunicações de FHC, que fazia o meio de campo da relação partidária nacionalmente.

Diante desse cenário, as mortes de Serjão, como era conhecido o ministro, em 1998, e de Montoro, em 1999, não influíram imediatamente na perda de comando das vontades entre os membros do partido. Foi, sim, a saída de FHC do governo que acabou com a força de atração das várias facções existentes no PSDB, expondo as mazelas de origem. Perdeu-se o controle sobre a segunda ninhada de líderes tucanos, formada por Serra, Aécio e Alckmin, dentre outros.

"Para que um partido político seja um sistema, é necessário que a autonomia das partes seja relativa. Cada uma delas desempenha uma etapa produtiva complementar do sistema como um todo", diz Romano. "E quando as partes se tornam totalmente autônomas entre si, o sistema se desregula do ponto de vista geral", explica o cientista político. "Se você pensar que o PSDB seria uma Ferrari, é uma Ferrari desregulada. E uma Ferrari desregulada perde de qualquer fusquinha."

Sob essa ótica, o excesso de pleiteantes às vagas de candidato nas últimas eleições está sendo prejudicial ao resultado final para os tucanos. A conclusão é que as disputas entre forças internas promovem a desunião e se transformam em fraquezas no período eleitoral.

Mas essa afirmativa não é uma unanimidade. Para o professor de ciência política e diretor do núcleo de políticas públicas da Universidade de São Paulo, José Álvaro Moisés, a democracia pressupõe a disputa entre partidos diferentes bem como dentro dos próprios partidos. "Um regime democrático envolve a diversidade de pontos de vista e opinião. É natural que haja diferenças. Não são apenas os eleitores que têm o direito de escolher o candidato. A regra vale também internamente para o partido."

Moisés considera exagerada a visão de uma divisão no ninho tucano. "Está se fulanizando a discussão em torno de um ou outro nome, quando o foco deveria ser a definição do partido para que se passe a falar em unidade", afirma. "Não estou vendo as coisas tão divididas. Prefiro olhá-las como são e não por trás, de onde não se tem base real. Trata-se de um ângulo meramente especulativo", completa o cientista político.

O problema em todo esse processo atual não está no tucanato, mas no lançamento prematuro e atemporal da candidatura que representará o governo Lula, segundo Moisés. "O presidente é quem está promovendo a distorção do processo, ocupando espaço com sua candidata de forma ilegal. Como os demais partidos estão escolhendo seus candidatos no ritmo adequado, cria-se a aparente celeuma", critica.

Bicadas à parte, há quem acredite que a exposição das divididas entre Aécio e Serra, pré-candidatos e rivais dentro do próprio partido, faça parte de uma obra orquestrada de encenação. A estratégia garantiria aos dois um espaço de mídia como poucos, à altura do conquistado por Lula nas viagens pró-Dilma, dentro e fora do país, antes mesmo do início da campanha, como determina a legislação eleitoral.

Lá na frente, quando da necessidade de decisão partidária, os tucanos surgiriam lado a lado e de asas harmoniosamente entrelaçadas, "juntos por um Brasil melhor". A hipótese é levantada pelo deputado federal José Genoino, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores. "É uma estratégia da fase do pré-campanha, e isso os tucanos sabem fazer muito bem", diz.

Já o Ministro da Justiça, Tarso Genro, é mais comedido. "Penso que é um debate político saudável que todos os partidos têm que ter. Do contrário, existiria uma hegemonia interna predefinida. E acho importante que debates como esse sejam cada vez mais públicos. É educativo do ponto de vista democrático", elogia.

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, um dos principais organizadores da aliança entre DEM e PSDB, refuta a hipótese de jogo de cena e defende que "um partido grande precisa incentivar o debate de ideias e de propostas", como uma forma de "se fazer democracia". Além disso, ele considera que "em torno desse debate é que surgem novas lideranças", a renovação partidária.

O problema é complexo de ser explicado, e ainda mais difícil de ser resolvido. O PSDB tem novamente dois candidatos em potencial e apenas uma vaga. Para o projeto 2010, os líderes intelectuais se esforçaram para viabilizar a candidatura de Serra à medida que evitavam que Aécio se desligasse do partido para se filiar ao PMDB.

A saída foi arriscada: manter o mineiro no centro do debate em torno da sucessão presidencial. Jogo de cena? Talvez não. Mas, sem dúvida, uma forma de garantir sustentabilidade ao objetivo de retomada do Planalto. Por sua vez, Aécio aproveitou a oportunidade. Conseguiu despontar como nome forte do partido e ser incluído em pesquisas de intenções de voto, nas quais ganha mais força a cada dia e conquista notoriedade e viabilidade eleitoral.

Caso tivesse aceitado de imediato a candidatura de Serra, o governador de Minas Gerais já teria abandonado o processo em direção ao principal objetivo de sua carreira política: concorrer à Presidência da República. Estaria excluído do páreo, pelo menos desta vez.

A exposição dos dois presidenciáveis tucanos na mídia dá indícios de que eles possuem diferenças significativas, embora representem a mesma bandeira. Para o analista político Gaudêncio Torquato, autor do livro Marketing Político e Governamental: Um Roteiro para Campanhas Políticas e Estratégias de Comunicação, Serra tem a seu favor "uma vasta experiência administrativa e um recall maior do ponto de vista da visibilidade". Já Aécio tem maiores possibilidades de "encarnar o novo, aproxima-se mais de um pós-lulismo, com melhores condições de atrair maior parcela do PMDB". Mas Torquato pondera: "É preciso encarar o candidato dentro de sua visão de futuro, dentro das condições de país e dentro da geografia do voto".

Pesadas as forças individuais e de seus grupos, mais do que nunca, cabe a Serra e a Aécio a demonstração de que aprenderam com experiências passadas e o rompimento com a sina egocêntrica que tem assolado o partido. Para vencer o real adversário, que apenas será encontrado nas urnas, o caminho passa pela união interna que vai além do discurso. Para isso, nem chega a ser necessária a formação da tão sonhada chapa puro-sangue de muitos tucanos. Bastaria a entrada de corpo e alma em um projeto que não carregue um nome próprio, mas o de um PSDB capaz de superar diferenças históricas.