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Aids: luta bem sucedida no Brasil

O país dá exemplo em atendimento e distribuição de medicamentos sem custos a pacientes com Aids

Roberta Viganó Publicado em 14/08/2007, às 10h41 - Atualizado em 02/09/2007, às 22h13

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Marisa França: há 10 anos vencendo a doença - André Porto
Marisa França: há 10 anos vencendo a doença - André Porto

"Ao ler a palavra 'reagente' em meu exame de sangue, não me tomei de nenhum susto. Já tinha conhecimento da Aids. Contraí a doença da minha ex-mulher, que era soropositiva. Casei sabendo da sorologia dela. Nas três tentativas de termos um filho, sem preservativos, entrei para o clube", conta Jurandir Barbosa, 30 anos. Lodir, como é chamado, tem o HIV há oito anos, três filhos soronegativos e uma vida igual - "ou melhor", como costuma dizer - à de qualquer pessoa. "Não conseguíamos ter filhos por métodos de inseminação. Depois de falar com o médico, resolvi arriscar, pois poderia não contrair a doença", diz o morador de Montes Claros (MG) que, depois de cinco anos juntos, se separou e vive há três anos com Adriana, soronegativa, com a qual teve seu filho caçula. Jurandir é assintomático e ainda não precisou tomar o coquetel, que é o uso de drogas diferentes para controlar a ação do HIV no organismo. "Antes, eu pesava 70 kg. Hoje, peso 87 kg. Passei a me cuidar melhor, não bebo e não fumo", comemora.

A ação do vírus, que pode variar entre os mais e os menos agressivos, começa quando ele baixa o nível de CD4, células que fazem parte do sistema de defesa do organismo, e a carga viral é aumentada. A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids) é o conjunto de sintomas e infecções resultantes da falha do sistema imunológico ocasionada pelo HIV. "Exames periódicos controlam o gráfico das células e a medicação só é introduzida quando a taxa de CD4 atinge o nível em que possam surgir doenças oportunistas, como pneumonia e meningite", explica o dr. Juvêncio Duailibe Furtado, chefe do Setor de Infectologia do Hospital Heliópolis, em São Paulo.

Se hoje, graças a esse controle com o uso de medicamentos combinados, as novas gerações não se intimidam com a doença que, no Brasil, tem taxa de mortalidade cada vez menor (11 mil por ano), o quadro era bem diferente em 1981, quando os primeiros casos de infecção foram identificados. Não se sabia o que estava acontecendo com o organismo dos pacientes infectados, que apresentavam forte queda imunológica, enfraquecimento rápido e nenhuma esperança de sobrevivência. Para tentar contornar a epidemia, era utilizado um único medicamento contra a ação do vírus. "Porém, a quantidade de células CD4 despencava e a carga viral subia depois de um ano com esse tratamento. Os pacientes tinham de três a quatro anos de vida", comenta o infectologista. "No final dos anos 80", completa, "acrescentou-se mais uma droga ao tratamento, o que aumentou a sobrevida, mas o resultado - lê-se morte - continuava o mesmo. Até que, no começo dos anos 90, com a introdução de mais uma classe de medicamentos - formando-se aí o chamado "coquetel" -, finalmente observou-se a primeira vitória mundial na luta contra a aids: os níveis das células e da carga viral continuavam controlados depois de anos de medicação", diz.

Descoberto um jeito de driblar o vírus, o próximo problema passou a ser o alto custo das drogas milagrosas. Grupos e associações não-governamentais surgiram a fim de ajudar os pacientes a pagar pelos remédios com arrecadação de recursos em festas e bazares. "Como a doença se manifestou no Brasil entre um grupo de alta vocalização e de boa formação escolar, a pressão para que o governo garantisse que 'a saúde é um direito de todos e dever do Estado', foi grande", explica Mariângela Simões, diretora do Programa Nacional de DST e Aids. Além das instituições solidárias, tal mobilização incluiu grande parcela da população, sensibilizada por campanhas na mídia e pela morte de artistas comoHenfil e Lauro Corona.

Em 1991, foi iniciado o processo para a aquisição e distribuição gratuita de anti-retrovirais (os medicamentos que dificultam a multiplicação do HIV) e, no ano seguinte, o Ministério da Saúde incluiu os procedimentos para o tratamento da doença na tabela do SUS e credenciou hospitais para o atendimento dos pacientes que, de acordo com os dados do Programa Nacional, chegavam a quase 15 mil no país. Em 1993, o AZT, um inibidor de transcriptase reversa usado de forma eficiente até hoje em muitos pacientes, passou a ser fabricado no Brasil visando a diminuição dos custos. Três anos depois, uma lei fixou o direito ao recebimento de medicação gratuita para tratamento da aids. Notou-se uma queda nas taxas de mortalidade e o modelo precoce de atendimento, de fornecimento de remédios e de campanhas de prevenção adotado pelo Brasil virou referência. Se a previsão da Organização Mundial de Saúde para o país no ano 2000 era de 1 milhão de infectados, hoje, em 2006, o número chega a 600 mil - índice bastante alto, porém abaixo da expectativa.

Nos últimos anos, o vírus se espalhou e deixou o chamado "grupo de risco", que incluía os homossexuais, os usuários de drogas e pessoas que sofreram transfusões de sangue. "A infecção aumentou em mulheres, nos municípios do interior e na população de baixa escolaridade e baixa renda", comenta Mariângela Simões, do Programa Nacional de DST e Aids. Marisa Cardoso França, 48 anos, descobriu estar infectada em 1996. "Estava grávida de minha segunda filha e, no exame de sangue, recebi o diagnóstico. Foi um susto. Fiquei dias em meu quarto e só chorava", lembra. "Conhecia bem a doença, pois cuidei de meu pai que desde 1991 era soropositivo e infectou minha mãe, ambos já falecidos", revela a aposentada, que há dois anos trabalha como voluntária do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA) na Baixada Santista e tem certeza de que contraiu o vírus de seu ex-parceiro, usuário de drogas. "Recebi apoio de vizinhos e amigos. Já a família se afastou e só liga de vez em quando para saber se está tudo bem. Minha filha é soronegativo e conversamos sobre tudo." Sobre relacionamentos, Marisa é enfática: "O preconceito é forte, as pessoas têm medo de manter contato. O melhor é ficar só". "Dizer que a sociedade está perdendo o preconceito é balela", concorda Jurandir. "Ela está cada vez mais hipócrita. As pessoas julgam pelo biótipo. O mercado de trabalho exclui quem tem aids."

Para Nancy Alonso, presidente do GAPA da Baixada Santista, que não tem o HIV, a questão da aids no Brasil é um problema da ordem social. "Em termos médicos, somos um dos melhores do mundo. Mas o povo sofre com falta de informações, preconceito e questões culturais", diz. "Quem tem hoje mais de 50 anos não costuma usar preservativos em suas relações. Tanto que o número de pessoas na terceira idade infectadas não pára de crescer. Se em 1995 eram 100 casos acima de 60 anos, em 2006 já são 397." Para o futuro, espera-se, além de medicamentos mais modernos e possibilidades de vacinas contra determinados grupos do vírus, uma preocupação e conscientização maior da sociedade. É preciso intensificar as campanhas preventivas em mulheres, idosos e jovens, usar preservativos sempre e fazer exames de HIV todo ano. O diagnóstico tardio, quando o paciente procura o médico após sentir sintomas de doenças oportunistas, ainda é o responsável pelo alto número de internações e mortes. Para quem tem o vírus, é importante aderir ao tratamento de forma correta. Tomar remédios sem falhas e manter o acompanhamento médico. A medicina vem contribuindo, diminuindo o número de pílulas que devem ser tomadas e reduzindo efeitos colaterais. "A vida é uma festa, mas a aids não é brincadeira", diz Nancy Alonso.