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Um homem apressado demais

Fernando Costa Netto, Ricardo Franca Cruz e Ricardo Soares Publicado em 13/08/2007, às 17h10 - Atualizado em 02/09/2007, às 22h25

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"Continuo sendo o Zé Dirceu e me basta. Não preciso de título" - Claudio Edinger
"Continuo sendo o Zé Dirceu e me basta. Não preciso de título" - Claudio Edinger

Atarde é quente e o zé tem pressa, almoça na nossa frente, sorri pouco, enfrenta com galhardia todas as perguntas mas só responde o que lhe convém. Hábil com as palavras, embora a palavra problema seja para ele um eterno problema, o Zé agora tomou gosto por escrever. É blogueiro juramentado. Coloca em seu blog vários escritos por dia e ali se comunica com o seu mundo. Com o que ruiu e com o que está erguendo através de suas palestras e consultorias.

Zé é ainda, logisticamente, um cara muito importante, e se você se informou um pouco sobre a história de nosso país nos últimos 40 anos, há de ter ouvido falar dele, seja como líder do movimento estudantil, militante da luta armada durante a ditadura, político na clandestinidade, exilado e amigo de Fidel Castro, parlamentar de um mandato estadual e três federais, fundador e um dos principais dirigentes do PT por mais de 20 anos. Mas, acima de tudo, você deve ter ouvido falar do Zé Dirceu no seu cargo de maior importância e influência. O de ministro-chefe da casa civil do governo Lula, de onde teria comandado uma quadrilha que pagava deputados para apoiar o governo além de outras irregularidades. Essas acusações lhe custaram o cargo, o poder e a cassação dos direitos políticos num processo que ele julga arbitrário e escandaloso. Quem deflagrou todo o movimento que culminou em sua queda, o ex-deputado Roberto Jefferson, não desperta em Zé Dirceu instintos primitivos. Zé Dirceu relega seu desafeto ao "esquecimento". Já se ele esqueceu as mágoas depois que foi apeado do poder isso é mistério. Ele garante ter passado por tão poucas e boas em sua vida que nada mais o abala. Inquebrantável parece ser esse Zé. Em sua longa carreira política, esse mineiro de Passa Quatro aprendeu a ser mais mineiro do que nunca. Fala com meias palavras, evita citar muitos nomes que o comprometam e mesmo quando provocado não destila fel para evitar amargar ainda mais a língua que muitas vezes ferina e peremptória lhe deu a fama de arrogante, o que ele nega até com candura, se é que pode se imaginar um Zé cândido a essa altura do jogo do poder e da vida. Não existe a figura do 'Zezinho paz e amor', mas que ele anda muito mais afável isso ele anda.

Se ele acha que o mapa político brasileiro é complexo e que nem todos os males do Brasil vêm do Congresso Nacional - ao contrário, ele até elogia a classe - por outro lado também acha que o mapa desse mesmo poder que lhe fascinou divide-se entre petistas e tucanos. Como mocinhos e bandidos, embora Zé Dirceu esteja deixando a arma no coldre e não esclareça exatamente quem sejam os mocinhos e nem os bandidos nessa história. Quer deixar claro, isso sim, que o governo Lula é melhor do que o de Fernando Henrique em todos os quesitos. Não se acha traído por quem quer que seja, garante que já pode andar pelas ruas do país sem ser vaiado e xingado, e falou nesta entrevista sobre quase tudo. Apesar de se abster de ataques não ficou só na defesa e deu suas estocadas em figuras públicas, como Cristovam Buarque e Heloísa Helena, e uma esnobadinha em Fernando Gabeira.

Zé é, sempre foi e sempre será uma figura polêmica. E se o chamamos de Zé foi a seu próprio pedido, pois as circunstâncias e o clima estabelecido nessa conversa não davam margem a formalidades obtusas. Se ele é um homem sincero como diz a letra de "Guantanamera" isso o povo brasileiro deve julgar. A emblemática canção que embalou os revolucionários cubanos não é aqui evocada por mero acaso. Pode-se até dizer que seja uma mesura nossa ao ex-poderoso Zé, que tem em Cuba uma segunda pátria da qual ele não gosta muito de falar. Gosta mesmo é de falar que não era tão poderoso assim e que hoje não tem mais poder nenhum, ao contrário do que apontam algumas evidências como suas constantes viagens à Bolívia de Evo Morales e à Venezuela do comandante Chávez, de quem se diz amigo. Mesmo apeado do poder, Zé continua tendo muitos amigos, influenciando pessoas e recebendo muitas visitas em seu escritório na Vila Mariana, em São Paulo, como denunciava a fila de engravatados que esperava nossa saída para entrar e deitar prosa com o Zé num espaço repleto de fotos emolduradas ao lado de amigos famosos como Lula, Fidel e Palocci, além de muitas biografias nas estantes. Talvez para que sirvam de inspiração à biografia que nosso entrevistado pretende escrever em parceria com o escritor e jornalista Fernando Morais. A vida do mais famoso dos petistas mineiros daria um livro? Goste-se ou não dele, é lógico que sim. Daria até um filme. E como começaria esse filme, Zé Dirceu? "Em Passa Quatro, minha cidade."

Fernando Costa Netto: Devemos tratá-lo por senhor, Vossa Excelência, camarada, companheiro, Zé Dirceu ou simplesmente Zé?

Pode me chamar de você, de Zé Dirceu. A única vantagem que eu tenho em tudo que aconteceu é que eu continuo sendo o Zé Dirceu, e me basta. Não preciso de título de deputado, de ministro, de presidente, do PT. Tenho lastro, tenho âncora aí pra segurar, apesar de tudo.

Ricardo Soares: Você virou um blogueiro profissional e em um post recente do seu blog você diz: "Eu vou provar a minha inocência". Como você vai fazer isso, Zé Dirceu?

Estou provando. Primeiro que já teve CPI dos Bingos e eu fui inocentado, esse era o caso mais importante que tinha depois da denúncia do Procurador Geral da República. Segundo, Santo André e o irmão do Celso Daniel retiraram a acusação que faziam contra mim. Terceiro, sofri uma devassa na minha vida, desde junho de 2005 e a partir de 30 de novembro do mesmo ano, e nada ficou provado contra mim. Foi quebrado o meu sigilo bancário, telefônico, fiscal, e nada. Zero.

Ricardo Franca Cruz: O que vai fazer para provar definitivamente sua inocência?

Eu falo que vou provar minha inocência porque, no meu caso, o ônus da prova tem que ser meu. Fui linchado, condenado. Do dia pra noite virei bandido e depois do dia pra noite de 27 de março de 2006 virei chefe de quadrilha. Tenho 40 anos de vida pública e nunca, tirando, claro, os processos da ditadura militar, dos quais realmente tenho orgulho, nunca fui processado na minha vida, nunca fui investigado. Tive, a bem da verdade, dois processos: um da Justiça Eleitoral porque eu publiquei um caderno, a oposição alegou que o caderno era eleitoral, que não podia ser publicado pela Câmara, e foi arquivado; viajei para Cuba como assessor e não queriam que eu recebesse salário como assessor técnico-legislativo da Assembléia Legislativa e eu falei: "Como não? Eu fui viajar assessorando uma delegação, não fui passear!" E ganhei, tá arquivado o processo administrativo. Então como é que pode? Como eu posso virar, primeiro, bandido e, depois, chefe de quadrilha. A Câmara me cassou confessando que não tinha provas. E me cassou politicamente, o que é inconstitucional. Lógico que só uma anistia pode sanar isso porque o Judiciário não pode sanar. Eu não sou sequer processado, o Supremo Tribunal Federal não aceitou denúncia contra mim ainda. Decidiu-se agora que o foro é no Supremo, não é no Juiz de 1ª Instância. Como não tive o ônus da prova, fui obrigado a provar minha inocência porque o ônus da prova ficou contra mim. E como não tive a presunção da inocência, ainda que tenha apoio na sociedade, sempre repito que eu é que preciso provar que sou inocente. E vou provar. Vou lutar até o fim da minha vida.

Soares: O homem que desencadeou todo esse processo, Roberto Jefferson, disse para você: "Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos". Que instintos lhe provoca o Roberto Jefferson?

O esquecimento. Roberto Jefferson é réu confesso, confessou que era corrupto. Eu não sou réu confesso, pelo contrário: eu protesto e quero provar a minha inocência. É comparar a minha história com a do Roberto Jefferson, a minha vida com a do Roberto Jefferson.

Cruz: E se você o encontrar na rua, nem um olhar feio?

Já encontrei o Roberto Jefferson no Conselho de Ética, foi lá que ele falou essa frase. Eu o enfrentei porque eu olho nos olhos dele e não o temo. E nunca o temi. Ali na Câmara dos Deputados o único deputado que enfrentou o Roberto Jefferson fui eu. Pode conferir. Eu não devo e não temo com relação ao Roberto Jefferson.

Costa Netto: Como você conseguiu esconder sua identidade verdadeira da sua própria esposa? Como mentir assim, por tanto tempo?

Em primeiro lugar, eu estava protegendo ela. Existe uma lei sagrada da clandestinidade: ninguém pode saber quem você é. Quem viola esta lei geralmente é morto. E ali estava todo muito condenado à morte, todo mundo que foi preso no Brasil naquela fase foi assassinado pela ditadura. Muitos estão ainda desaparecidos, nem aos restos mortais as famílias tiveram acesso. Nem a verdadeira forma, aonde, quando como eles foram assassinados as famílias sabem. Esta é uma das chagas que estão abertas no Brasil, e que infelizmente nós ainda não conseguimos convencer os responsáveis por aquela época a revelar para a sociedade o que aconteceu, apesar dos processos na Justiça. Então o que eu fiz faria de novo porque eu estava protegendo minha esposa, depois o meu filho e todos ali que me apoiavam, os que não sabiam quem eu era e os que sabiam. Quem tem que julgar isso é ela, a mãe do meu filho, não terceiros. É ela, que foi minha companheira, minha esposa, que teve um filho comigo - depois nos separamos. Estou separado dela há 30 anos, mas se você nos vir conversando vai achar que somos casados ainda. Depois, criaram essa imagem de que isso seria uma prova de que eu sou uma pessoa em cujas veias corre política e não sangue, como disseram um dia, porque não revelei à minha esposa quem eu era na verdade.

Costa Netto: E a sua mudança de rosto, a plástica que você fez em Cuba em 1971?

A primeira vez que voltei para o Brasil, vindo de Cuba, foi em 1971, 72, vim para São Paulo. Depois fui pra Cuba de novo e voltei pra cá no final de 1974, saí, clandestino, em 1979, e voltei legal, como se nunca tivesse ficado no Brasil. E só relatei que tinha ficado clandestino no Brasil em 1986, quando fui candidato a deputado estadual. Na anistia eu estava clandestino em Cruzeiro do Oeste, no Paraná. Eu saí, sem ninguém saber que eu estava aqui, tirei a plástica em Cuba, me restabeleci, fui ao Peru, peguei meu passaporte na embaixada brasileira e voltei para o Brasil, se não me engano, em 19 de dezembro de 1979. A plástica era uma medida de prevenção, não tive nenhuma dificuldade em fazer. Quase a mesma equipe que fez, retirou. Eram próteses, uma mudança aqui, outra ali.

Cruz: Voltar para o Brasil era morte certa?

Voltar para o Brasil com a mesma aparência era loucura. Quer dizer, voltar para o Brasil era um suicídio, porém era uma decisão política que nós tomamos. O risco era grande. Voltar, no meu caso, era um erro, porque para me manter aqui o custo era muito alto, tanto que eu fui embora. Porque pela primeira vez eu vim para participar da luta política, da resistência armada. A segunda que eu vim foi para morar no Brasil, para viver no Brasil, para recomeçar a minha vida, já não tinha mais organização. Eu tomei a decisão de voltar para o Brasil, nunca quis morar no exterior. Nunca aceitei que uma junta militar pudesse dizer que eu não era mais brasileiro, que estava banido do Brasil. Isso não existe no Direito Internacional. Foi olhando depois os anos da luta armada que comecei a me dar conta dos erros que cometemos nessa época. Não soubemos coordenar de maneira adequada a resistência política com a resistência armada, a luta social com a luta armada. Nós repudiamos o processo político institucional.

Soares: Você era um cara muito popular e muito querido. Como é hoje sair na rua e ser vaiado, xingado?

Já houve fases do PT que era assim. É que todo mundo esquece que ser petista em 1983, 84 era perder o emprego, era ser discriminado, ser isolado, era quase uma aberração em alguns setores da sociedade. Então nós sempre estivemos acostumados. O problema é que a acusação que me fazem é a de que eu sou corrupto, é diferente de um preconceito ou de uma segregação político-ideológica. É, talvez, a acusação mais grave que possa existir para um homem público. No meu caso tem altos e baixos, a recepção das pessoas varia de estado para estado, de cidade para cidade. Fui para o Nordeste agora e fui muito bem recebido pela imensa maioria. Mas em alguns locais há um setor do eleitorado tucano, às vezes de militância organizada, que hostiliza. Mas houve muito estímulo de certa mídia para essa hostilização.

Soares: E se nós fossemos almoçar agora em algum lugar. Você acha que as pessoas iriam hostilizá-lo?

Não, agora não, já houve isso, principalmente na fase da campanha eleitoral. Mas ali também tinha aquela coisa do antilulismo, não era só eu. Muitos dirigentes e parlamentares do PT foram hostilizados durante a campanha eleitoral, não era só comigo. Criou-se um clima de violência contra nós, que refletia contra mim também. Mas tem de levar em conta também que eu sou mais conhecido que a média dos dirigentes e parlamentares do PT, talvez eu ainda esteja entre os cinco, dez petistas mais conhecidos do Brasil. Se eu caminhar em uma praia, por exemplo, no Rio de Janeiro, umas 40, 50 pessoas vão me cumprimentar, cinco vão me repudiar, mas sai a notícia no jornal só dos que me repudiaram. Por exemplo, eu fui com amigos recentemente em um restaurante famoso no Leblon e teve gente que me cumprimentou e chorou, teve gente que falou de 1968, jovens quiseram tirar fotos, teve gente que veio me abraçar. Eu saí e tinha uma mesa de yuppies, executivos, que bateram palmas pra mim, mas de maneira debochada. E foi essa a notícia que saiu. Tem também uma mistura de preconceito contra mineiro, contra paulista, tinha gente que falava do meu sotaque. Tem coisa de classe também, muita gente elitista e nós não viemos da elite. A elite não nos aceita, não nos quer e faz tudo pra nos tirar do poder, a verdade é essa. E tem uns que realmente acreditam que eu sou corrupto.

Costa Netto: E esse abuso de poder dos parlamentares em aumentar em absurdos 90,7% os próprios salários no final de 2006? Como você vê isso?

A Câmara, no limite, poderia reajustar o salário dos deputados pela inflação de quatro anos - no limite! Foi a pior coisa que poderia ter acontecido para a Câmara porque ela fez um excelente trabalho nestes quatro anos. Mesmo que você leve em conta que houve as CPIs dos Bingos, dos Correios, do Mensalão, dos Sanguessugas, entre outras, se você analisar as três últimas semanas de dezembro a Câmara aprovou o Estatuto da Pequena e Média Empresa, a Súmula Vinculante, a repercussão geral, que é fundamental na reforma do Judiciário, Fundeb... só isso já vale um ano de trabalho em qualquer parlamento do mundo. Isso é importantíssimo, é assim que se muda o Brasil. Mas tudo o que a Câmara aprovou nestes quatro anos cai por terra e mistura tudo. É ruim, é pior.

Costa Netto: Mas é esse o trabalho deles, não estão fazendo mais que a obrigação.

Não, não é assim. Tem parlamento que passa anos sem aprovar nada. Tem que levar em conta que esta legislatura foi importantíssima pro Brasil se você fizer um balanço dela, mesmo com todos os defeitos e problemas que o parlamento tem. O agravante disso é que cria um preconceito grande. Eu vejo comentaristas e articulistas na televisão, no rádio e na imprensa falando contra a verba de gabinete, contra a verba indenizatória, contra a verba de passagem, contra a verba de habitação, contra a verba de material, de correio, telefone, material de escritório. Isso não dá pra aceitar. É a mesma coisa que perguntar para esses mesmos comentaristas se eles pagam o telefone que eles usam no trabalho, se eles pagam a viagem quando viajam a serviço.

Costa Netto: Mas os deputados têm até 15º salário, ora...

Isso é outra coisa, então acaba com o 15º!

Costa Netto: É uma classe extremamente privilegiada: somando toda a verba mensal de um deputado federal são mais de R$ 102 mil por mês!

Mas não tem razão para misturar as coisas! Então, fecha o Parlamento! Se o deputado não pode ter estrutura para trabalhar! O salário de um deputado hoje [dez 2006], se não me engano, é R$ 12,5 mil. Você tira imposto de renda, tira tudo, vai dar R$ 8 mil. Se ele for pagar passagem, pagar para morar em Brasília, for pagar os telefonemas que ele dá, for pagar o material que ele usa, for pagar os funcionários e as despesas dele no Estado não tem deputado! Só vai ser deputado quem tiver poder econômico, quem tem renda. Então não tem sentido. O salário do deputado foi criado para o parlamento ficar independente, vamos lembrar a imunidade parlamentar e o pagamento do parlamentar. Eu quero separar as coisas: tudo bem, não pode dar aumento de 91%, a sociedade tem razão, mas não vamos misturar com verba de gabinete, com verba indenizatória. Eu acho um absurdo um ministro ganhar R$ 8 mil reais. "Ah, mas o salário é alto..." Então, os executivos, os engenheiros, os advogados, os donos de empresa não podem ganhar também! Os jornalistas não podem ganhar, porque tem uma elite de jornalistas que ganham entre R$ 50 mil e R$ 200 mil por mês. Não adianta comparar com o salário mínimo - isso é outra coisa que precisa melhorar. Tem que fazer a crítica dura, não aceitar e tentar revogar. Agora, não pode desqualificar o parlamento.

Costa Netto: Se isso acontecesse na época em que você carregava um três-oitão embaixo do banco do Fusquinha o bicho iria pegar em Brasília, não?

A ditadura fez o contrário: ela incluiu o pagamento de vereadores para calar a boca de todos eles. Porque não existia parlamento de vereadores em cidades pequenas.

Cruz: Os jornais El País, espanhol, e o La Nación, argentino, afirmam que se tiverem mesmo o aumento de 90,7% os parlamentares brasileiros passam a ser os mais bem pagos do mundo. Outras fontes dizem que os novos salários superariam os dos deputados norte-americanos, britânicos, alemães e franceses, perdendo somente para os japoneses e italianos.

Não, não é verdade, tá na média do mundo. Como eu disse: acho que deveria ser no mínimo do limite. Olha, o que eu quero dizer é o seguinte: se queremos construir a democracia no Brasil nós temos que separar o joio do trigo. Os deputados aumentarem o salário em 91% é inaceitável, mas não vamos misturar verba de gabinete e verba indenizatória com o salário. Não vamos misturar também com a produção do parlamento. Vamos analisar. Vocês são jornalistas, estudem as quatro últimas legislaturas e vejam o que foi aprovado nesta última, vocês vão ver! É reforma judiciária, reforma tributária, reforma previdenciária, lei de falência, lei de inovação... Posso citar aqui 30 coisas importantes para o país. Porque senão nós vamos levar a população a acreditar que é melhor não ter parlamento.

Cruz: E por que não fazem uma reforma política agora?

Porque o problema começa por aí: se fizer a reforma política já, afasta todos estes riscos que existem no parlamento hoje. Porque tudo começa no financiamento da campanha eleitoral. Todos os problemas de emenda parlamentar, de convênio, de corrupção, de uso de verba indenizatória e verba de gabinete para outros fins, tudo começa no sistema eleitoral que se transformou no Brasil no mais caro do mundo, porque o voto ainda é nominal, não é na legenda, não tem financiamento público nem fidelidade partidária. Por que não muda isso? É isso que você tem que exigir. Porque é isso que melhora, e muito, o parlamento.

Costa Netto: Zé, o brasileiro sabe votar?

Sabe, muito bem.

Costa Netto: Você acha que um voto no Maluf, então, é um voto de quem sabe votar?

Mas isso em toda a história do mundo, em toda democracia, acontece. Tanto sabe votar que o Brasil tem melhorado ano a ano. Essa idéia de que a democracia brasileira só piorou... As pessoas esquecem que ficamos sem democracia de 1937 a 1946 e de 1964 a 1985. Então ainda estamos pagando por isso. As instituições poderiam ser mais transparentes, mais honestas, mais consolidadas.

Costa Netto: Mas o Brasil vem melhorando em que sentido? Talvez no sentido da democracia, mas desde a época em que você era da luta armada eu ouço que o Brasil é o país do futuro, que vai melhorar. E nestes 30, 40 anos, eu só vejo a coisa deteriorando, o país muito mais violento, o povo na miséria, cada vez mais gente andando de carro blindado na rua. O país, em vez de se equilibrar, está completamente desequilibrado.

Não concordo. O Brasil melhorou nos últimos quatro anos e melhorou nos últimos 30 anos.

Costa Netto: Mas está muito mais violento, desigual. Minha análise é das ruas.

Esses são outros problemas. Te dou um exemplo: qualificação. Dobrou o número de trabalhadores ocupados qualificados no Brasil. Dobrou nos últimos anos! E a população economicamente ativa aumentou quase 50%. Está havendo uma revolução absurda educacional no Brasil. Tem milhões e milhões de homens e mulheres estudando por este Brasil, se capacitando, se profissionalizando. Está melhorando, sim. Para a violência há solução: no caso concreto, investir em educação, em grandes cidades, o governo tem condições de fazer isso e já está fazendo.

Soares: O ex-ministro Cristovam Buarque disse que vocês tiveram oportunidades históricas e nada fizeram. Ele disse textualmente que o governo Lula se acovardou diante da questão da educação. Você não acha que vocês fizeram pouco pela educação?

Fizemos pouco? Primeiro, o Cristovam Buarque foi ministro da Educação, então ele tem responsabilidade. Segundo, não interessa a opinião do Cristovam Buarque, interessa a opinião do povo, que votou, e a avaliação que o governo tem na área de educação. Primeiro, o Fundeb, que está aprovado, estava pra ser aprovado há dez, 15 anos, é uma revolução no ensino médio do país, que vai universalizar o ensino em cinco, dez anos, como é o ensino fundamental. Segundo, a expansão do ensino universitário que estava caindo no Brasil. Terceiro, o Prouni. Nós vamos ter agora um sistema de formação de professores, de avaliação por aula-Brasil de aluno por aluno, e temos mais de R$ 20 bilhões em três anos para investir na educação. O governo Lula fez muito pela educação em quatro anos nas circunstâncias em que ele pegou o Brasil. Porque não adianta você chegar para o governo, para o presidente, e apresentar dois, três projetos que custam R$ 8 bilhões, R$ 12 bilhões. Que foi o que Cristovam Buarque fez; alguns eram inconstitucionais, outros não tinham a aprovação do governo. Depois sai dizendo que o governo não quis aceitar a proposta dele e não fez uma revolução educacional. Ele governou Brasília, não governou? Se ele olhar o governo do Lula pelo parâmetro com que ele governou Brasília, ele vai ver que o governo do Lula foi muito melhor que o governo dele. Ele não fez uma revolução educacional em Brasília.

Soares: Mesmo assim não é muito pouco?

É só fazer um balanço do governo Lula na educação, e esse balanço está sendo feito, o governo está avançando. O Lula e nós governamos o Brasil nestes primeiros quatro anos com uma tarefa. Os próximos quatro terão outras tarefas. Você pode crescer mais, priorizar mais a educação, as grandes cidades, a infra-estrutura, mais a política industrial de renovação. Nós temos que olhar e comparar o governo com a situação anterior. O governo investe pouco, precisa investir mais. O Lula se elegeu com essa renda, ele tem um programa, tem metas. Ele fala: "O Brasil não melhorou, agravaram-se alguns problemas do Brasil, como a violência". É evidente que o Brasil tem problemas graves, mas este não é o mesmo país de 10, 20 anos atrás. Veja Brasília: o que era Brasília há 20, 30 anos? Tome Palmas, no Tocantins, como exemplo. O Brasil cresce e cresce muito. O problema é que é muito mal distribuída a riqueza, o crescimento. Precisa melhorar a distribuição de riqueza, melhorar a participação do trabalho na renda nacional, aumentando os salários, aumentando a aposentadoria, fazendo mais investimentos sociais. Como o Lula fez nestes últimos quatro anos, apesar de toda a guerra que fizeram contra ele por causa disso.

Costa Netto: E o Bolsa Família, Zé? O presidente delegou a você a coordenação interministerial para implantar o programa. Hoje, sei de gente que tem dois carros na garagem e recebe o Bolsa Família.

Isso acontece em qualquer atividade. A empresa compra 20 garrafas de água e alguém leva cinco para casa todo mês. O Bolsa Família não é a coisa mais importante do governo Lula, é o emprego. O Lula criou 5 milhões de empregos formais, o Fernando Henrique criou 800 mil e destruiu no primeiro governo milhões de empregos. O Lula melhorou o salário, melhorou a aposentadoria, criou programas que atingem milhões de pessoas - Luz pra Todos, Saúde Bucal, Farmácia Popular, multiplicou por cinco o crédito da agricultura familiar. Podia ter feito mais pelo saneamento e pela habitação, não fez porque não teve recursos para equalizar mais os juros. Mas a situação da construção civil hoje não tem comparação com quatro anos atrás, o cimento custa hoje 50% menos do que custava, existe o crédito consignado. Há uma rede de proteção não só social, mas econômica do país. O Bolsa Família tinha um objetivo: atingir de cinco a dez milhões de famílias brasileiras que passavam fome, fazer com que elas pudessem comer pelo menos duas vezes ao dia. É renda básica para isso e vai construindo uma porta de saída da miséria, que é o emprego e a renda. Junto com isso veio o Brasil Alfabetizado, veio o programa do crédito de família, a obrigatoriedade de a criança ir à escola. Se não fosse por tudo isso, as pessoas não teriam votado no Lula depois da guerra que a mídia fez contra ele. O Bolsa Família tem deformações? Tem, todo programa tem.

Soares: O quão distante você está dos acontecimentos de Brasília, do chamado "núcleo duro" do governo?

Quando posso, procuro exprimir as minhas opiniões, para os dirigentes do PT, para os membros do governo. Mas não tenho nenhuma interferência, nem do PT, nem do governo no meu blog. E quando falo, dou entrevistas, também não acontece nada porque todo mundo sabe qual é a minha posição no governo. Fiz vários pronunciamentos em 30 meses. Já fiz um levantamento de tudo o que eu disse desde que estou afastado do governo e vi que não mudei de posição, estou coerente.

Soares: Quais foram seus grandes erros?

No primeiro mandato do presidente Lula nós subestimamos o papel que a mídia teria contra o governo e não nos preparamos para enfrentar isso. No primeiro mandato o governo priorizou a estabilidade e desequilibrou com o desenvolvimento. Nós, que éramos dirigentes do PT, demos as costas para o PT e fomos cuidar do governo. Isso custou caro para nós. Nós deveríamos ter conseguido uma maior mobilização social, um maior diálogo com os movimentos sociais, a gente tem muita responsabilidade com os movimentos sociais. Mas o governo tem grandes acertos. A estabilidade resolveu a inflação, valorizou o salário, garantiu a criação de 5 milhões de empregos, devolveu ao Brasil credibilidade externa, saneou as contas externas do país, possibilitou que o governo priorizasse o social com sucesso.

Soares: Você fala no coletivo, e no nível individual?

Por exemplo, eu defendi o PMBD como o centro da aliança no governo e não foi. Foi um erro grave meu.

Costa Netto: Voltando no tempo, como era o seu treinamento militar em Cuba?

Era um treinamento militar como outro qualquer. Era uma unidade militar, treinava explosivo, tiros, táticas, emboscadas. Um treinamento.

Costa Netto: É verdade que o Fidel foi recebê-lo quando você chegou em Cuba?

Quando chegamos em Cuba, o Fidel foi nos receber. Porque eu estava preso e fui trocado pelo embaixador norte-americano seqüestrado.

Soares: Teve aquele episódio que você deu um chá de cadeira no deputado Fernando Gabeira e ele saiu irado do seu gabinete. A mídia explorou bastante isso porque ele estava envolvido no seqüestro do embaixador norte-americano, que resultou na troca de prisioneiros políticos, entre eles você. Qual a relação entre vocês?

Eu nunca tive relação com o Gabeira, nunca tive amizade nem nada. Eu o conheci no final da década de 80, em 1989. Mal conversei com o Gabeira três, quatro vezes na vida.

Costa Netto: Na época ele se expôs bastante na história do seqüestro.

Mas não era ele, eram três organizações políticas. A lista dos presos políticos a serem libertados foi feita pelas organizações e eu, Luis Travassos e o Vladimir Palmeira éramos os três líderes mais importantes do movimento estudantil e da luta contra a ditadura naquele momento. O Gabeira foi à Casa Civil a nosso convite e foi recebido, a Marina Silva e o Zé Genoíno são testemunhas. Foi instalada uma reunião com a presença da Marina e do Zé Genoíno e de outros membros do ministério e do PT para discutir uma pauta. Eu participei do começo da reunião, me chamaram na Câmara, era uma coisa grave, eu expliquei porque precisava sair e saí. O Gabeira saiu da reunião, foi lá embaixo, deu uma entrevista e contou essa história. Eu acho que ele criou um factóide.

Soares: E qual a sua opinião sobre ele, que sai como o grande ícone do politicamente correto, um sinônimo da ética e da correção desta legislatura?

Eu não quero dar opinião sobre ele.

Soares: Sua vida daria um bom roteiro cinematográfico: você se formou em Direito, foi militante durante a Ditadura, treinou armas em Cuba, foi cassado, virou político, foi ministro, foi cassado novamente. Se fosse fazer um filme sobre você, onde começaria?

Em Passa Quatro (Minas Gerais), minha cidade, onde nasci, no colégio onde estudei, onde aprendi valores. Quando cheguei em São Paulo, fui uma das primeiras pessoas a usar cabelo comprido, andar de sapato sem meia, usar jeans, ir na escola sem terno, sentar em cima de carteira, não levantava quando o professor entrava, misturar os homens com as mulheres, que eram separados, não aceitava o autoritarismo que existia.

Cruz: Você já fumou maconha?

Na década de 70 tinha muita, pegou mesmo, mas nunca fumei maconha. Quase até os 30 anos de idade eu não bebi nem fumei cigarro. Fumei pouquíssimo em 1966, 67, fumei charuto em Cuba, e fumo muito de vez em quando com os amigos. Eu andava armado, com segurança, gente querendo me matar e eu ia fumar maconha!? Você tá louco! Desde 1966 eu já era perseguido, já me escondia.

Cruz: Que mágoas você guarda do seu processo de cassação? Quem em Brasília é hoje alvo da sua inimizade?

Não tenho inimizade por causa do que aconteceu, não guardo rancor, ressentimento ou mágoa. Tenho 40 anos de estrada, já passei por coisa pior do que isso. Eu toco pra frente.

Cruz: Como é hoje não ter o mesmo poder que você tinha antes no governo?

Não sou dirigente, não sou mais deputado, não sou mais ministro, mas eu sou o Zé Dirceu.

Cruz: Ou seja, você tem poder ainda.

Não, poder eu não tenho.

Soares: Você ainda fala com o Lula?

Não falo com o Lula, telefonei para ele no dia do aniversário dele, mas não falo com ele há meses.

Soares: Você é um homem inteligente e pragmático, você quer realmente que nós acreditemos que você não fala mais com o Lula depois de uma história juntos de 30 anos, que você não fala com ele nem que seja uma vez a cada dez dias?

O Lula tem que governar o Brasil. Essas coisas não são assim. Ele tem a agenda dele, a dinâmica dele, as tarefas dele como Presidente da República; eu tenho a minha vida, tenho que lutar para sobreviver.

Costa Netto: E a sua volta para a política?

Eu nunca saí da política. Mas primeiro de tudo eu tenho que conquistar a minha anistia e ser absolvido pelo Supremo. Eu sou inocente, sei o que fiz, eles não têm prova contra mim até hoje, um ano de investigação na minha vida, a devassa que eu sofri, unicamente apoiada em declarações do Roberto Jefferson. Essa é a minha luta agora, depois eu vou pensar.

Soares: No caso do Lula, a reeleição diz, entre outras coisas, que o povo brasileiro acredita que ele não sabia de nada, de esquema nenhum. Agora, no seu caso, como você quer que acreditemos que você não sabia do mensalão sendo você quem era?

Primeiro, nunca existiu mensalão. Segundo, eu não sabia de nenhum repasse de recursos para partidos políticos. Não era minha função nem minha atribuição, era um assunto do PT, não era um assunto meu. O que está provado é que o PT repassou recursos para os partidos na campanha de 2004, não está provado que houve mensalão. Roberto Jefferson inventou isso.

Soares: Qual sua atuação política junto aos governos da Venezuela e da Bolívia?

Não há atuação política. Eu não vejo o presidente Chávez desde maio. Fui várias vezes à Venezuela depois de ter sido cassado e sair do governo porque tenho relações com ele, independentemente do governo do presidente Lula e do PT. Como fui à Cuba, como fui à Nicarágua, como fui antes e depois da vitória do Daniel Ortega porque eu o conheço há 30, 40 anos, como fui à República Dominicana porque tenho amigos no governo, como fui à Bolívia conversar com a oposição, com empresários, com membros do governo - não conversei com o presidente Evo Morales porque ele tinha uma agenda complicada. É natural isso. Aqui no Brasil eu converso com governadores, senadores, deputados. São relações pessoais, eu falo em meu nome. Hoje não sou nem deputado nem ministro, mas tenho história, tenho lastro, tenho uma biografia, eu trabalho, articulo, faço política - eu não tô fazendo política no PT, mas no governo continuo fazendo política. Eu não parei de fazer política nem um minuto.

Soares: Você é otimista em relação ao PT nas eleições de 2010? O partido conseguirá fazer um sucessor até lá?

Não sei como vai estar o Brasil em 2010, mas sou otimista. O Lula pode fazer o sucessor dele, se não for do PT poderá ser de um partido aliado, não vejo por que não posso. O exemplo chileno está aí: dos quatro partidos da concentração, três já fizeram presidente - o Partido Popular Socialista, o Partido Democrata Cristão e o Partido Socialista Chileno. Se não tiver alguém, vai surgir. Quem diria que o Garotinho e Ciro Gomes teriam tido o desempenho que tiveram? Até mesmo o Alckmin.

Soares: A Heloísa Helena...

A Heloísa Helena teve o apoio do PFL, do PSDB e de certa mídia. Depois de certo momento ela caiu porque começou a tirar voto do Geraldo Alckmin, era só ver as pesquisas. No estado dela, o Lula teve 46% de votos e ela 16%, o PSOL não elegeu nenhum deputado estadual ou federal.

Cruz: O Lula te traiu? Houve dentro do PT algum movimento para te derrubar?

Ninguém me traiu, Lula não me traiu. Sempre houve oposição a mim dentro do PT, mas isso faz parte da vida de um partido. Eu nunca consegui aprovar nada no PT com mais de 55%, fui eleito em eleição direta com 50% e um tanto, tudo que construí foi com muito debate, muita discussão, tudo levou seis meses, oito meses. Essa história de que eu impunha as coisas, que eu era um rolo compressor, que era autoritário, isso é propaganda dita, evidentemente, quando eu estava sem voz e não podia me defender. E é evidente que muitos acreditaram no que falaram de mim, isso é natural no embate político que houve e com a campanha política que houve contra mim. Mas a minha campanha contra a cassação recebeu apoio suficiente da militância do PT, como a campanha que querem fazer pela minha anistia, que eu vou aceitar e vou fazer, tem respaldo da militância do PT.

Cruz: Você já foi chamado de "o homem mais arrogante do governo Lula". Você é arrogante?

Sei que a imagem que a mídia faz de mim é a de um homem arrogante, e sei que a maioria das pessoas pensa assim. Mas eu não sou arrogante, nunca fui. Uma pessoa arrogante não constrói o que eu construí. Fui deputado federal por 11 anos, nunca tive dificuldades no Plenário, talvez tivesse sido eleito presidente da Câmara. Eu tenho personalidade, não tolero a incompetência, tomo decisões. Quem viveu os períodos da história brasileira que eu vivi aprende a tomar decisões. Imagine um ministro sem saber tomar decisões, sem personalidade? Quando me foi delegado o poder, eu o exerci. Eu exerço o poder.