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Oceano de Plástico

Dejetos gerados pelo mundo todo formaram um enorme lixão flutuante que tem quase o tamanho do Amazonas – e está voltando para o continente

Por Kitt Doucette Publicado em 22/02/2010, às 10h10

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SUZANNE FRAZER/BEACH ENVIRONMENTAL AWARENESS CAMPAIGN HAWAII
SUZANNE FRAZER/BEACH ENVIRONMENTAL AWARENESS CAMPAIGN HAWAII

Bem-vindos ao futuro", diz o capitão Charles Moore, comandante de uma embarcação de pesquisa de 25 toneladas chamada Alguita. Ele está no porto da bacia de Kewalo, no litoral sul de Oahu, no Havaí, segurando uma jarra cheia com um líquido amarelo turvo. Pedacinhos de dejetos flutuam no líquido, uma massa anuviada de lixo. A maior parte é plástico. "Esta aqui é a aparência dos nossos oceanos hoje", Moore prossegue, com sua fala arrastada de marinheiro. "Esta amostra foi colhida no Pacífico, a cerca de 1.600 quilômetros de Los Angeles, na direção oeste-sudoeste. Mas eu preciso enfatizar que isto aqui não acontece em um lugar só - isto aqui está no oceano inteiro." O líquido na jarra parece mais uma poça d'água em Manhattan, Nova York, do que algo retirado do Pacífico, tão azul e plácido.

Foi Moore que, em 1997, fez uma descoberta a respeito do oceano que fez alarmes soarem no mundo todo. Ao retornar para casa, na Califórnia, depois de uma regata até o Havaí, ele traçou sua rota pelo Giro Pacífico Norte, uma região conhecida pelos marinheiros como "zona de calmaria". Com cerca de 26 milhões de quilômetros quadrados, a área é local de ventos tropicais e correntes circulares cuja tendência é manter qualquer coisa que entra ali sem autopropulsão durante meses, anos e até décadas inteiras. Ali, perto do centro das correntes lentas, profundas e em sentido horário que formam essa contracorrente oceânica, Moore deparou com uma massa extensa de dejetos flutuantes que ficou conhecida como Grande Mancha de Lixo do Pacífico (em inglês, Great Pacific Garbage Patch).

A primeira coisa que é necessária saber a respeito da Grande Mancha de Lixo do Pacífico é que seu nome, que pode trazer à mente algum título de desenho animado do Snoopy, é muitíssimo inapropriado. Na realidade, a "mancha" é um vórtice giratório de uma sopa de plástico, um pântano imenso e fétido de dejetos em que pedacinhos minúsculos de plástico podre se sobrepõe ao zooplâncton - um dos organismos mais prolíficos e abundantes no planeta - na proporção de seis para um. Ninguém sabe seu tamanho exato, nem se tem algum tipo de limite: sua localização e seu formato variam de acordo com fatores como temperatura da água, estação do ano e eventos climáticos importantes como o El Niño. Cientistas estimam que seu tamanho seja equivalente a duas vezes o do estado norte-americano do Texas (ou quase a área do estado brasileiro do Amazonas) - talvez seja até maior - e que contenha cerca de dez milhões de toneladas de lixo.

"No início, a gente enxerga a água azul que se estende no horizonte", diz Mary Crowley, diretora do instituto Ocean Voyages. "Isso passa a impressão de que está tudo bem. Mas daí, quando você olha com atenção para dentro da água, enxerga todo aquele confete interminável de plástico. Nós costumamos recolher pedaços separados de plástico à taxa de 200 a 300 a cadameia hora - e isso só nas proximidades imediatas." Desde que o estudo começou, os pesquisadores não retiraram nenhuma única amostra do giro que não contivesse plástico.

Como a maior parte da sujeira consiste de "microplástico" - pedaços maiores de lixo que foram convertidos a pedacinhos minúsculos de polímero pelo efeito combinado das ondas, do vento e do sol -, a ameaça que representa à vida selvagem é especialmente grave. O plástico em partículas tem muito mais probabilidade de ser engolido por aves e peixes - e pode conter altas concentrações de substâncias químicas tóxicas, incluindo DDT e compostos bifenilpoliclorados, em taxas até um milhão de vezes maior do que na água do mar ao redor. No atol Midway, albatrozes estão morrendo de fome com a barriga cheia de plástico. Tartarugas marinhas confundem sacos plásticos flutuantes com águas-vivas, uma de suas principais fontes de alimento, e morrem engasgadas. Em uma amostra recente de 670 peixes da família Myctophidae, importante fonte de alimento para peixes maiores, a tripulação do Alguita encontrou 1.298 pedaços de plástico. "Está se transformando na nova dieta", diz Moore. "Estamos fazendo com que tudo no oceano entre na dieta do plástico."

E difícil acreditar que o plástico só existe há um século. Em 1909, um químico de origem belga chamado Leo Hendrik Baekeland apresentou ao mundo o primeiro plástico completamente sintético, um composto de fenolformaldeído que ele chamou de Baquelita, em uma conferência de químicos em Nova York. A Baquelita, que foi sintetizada pela primeira vez no celeiro de Baekeland em Yonkers, no estado de Nova York, era feita por meio da mistura de ácido carbólico e formaldeído. Tinha a propriedade quase mística de ser maleável quando aquecida sob pressão, ao mesmo tempo que permanecia rígida e insolúvel quando fria. Altamente moldável, mais durável do que a cerâmica, mais leve do que o metal e feito inteiramente no laboratório, o novo composto também não era condutor de eletricidade e resistente ao calor; logo recebeu o título de "material de mil utilidades".

Primeiro foi o náilon, que chegou ao mercado em 1940 e que mais tarde causaria tumulto em lojas de departamentos, com mulheres pisoteando umas as outras para comprar meias-calças. A produção em massa de outros tipos de plástico começou depois da Segunda Guerra Mundial, com o advento do polietileno, do polipropileno e do poliestireno, que são os ingredientes principais de produtos como filme plástico de cozinha, garrafas de leite descartáveis, bambolês e isopor. Na década de 1960, o plástico já tomava conta da vida norte-americana e era a própria imagem da modernidade. Em 1979, o volume anual de plástico produzido nos Estados Unidos ultrapassou o de aço.

Louvado como o "milagre" por trás da vida moderna, hoje o plástico está em todo lugar. Está nas roupas, nos computadores, nos celulares, nos carros, nos móveis e nas geladeiras. Aviões, hospitais e laboratórios dependem dele, mas, em sua maior parte, vai parar nas nossas latas de lixo. No ano que vem, o mundo vai descartar perto de 300 milhões de toneladas de plástico, sendo que mais de um terço disso se encaixa na categoria do "uso mínimo", o que significa que o material será descartado de alguns segundos até um ano depois de sua produção. Nos Estados Unidos, mais de 11 bilhões de quilos de plástico desaparecem todos os anos. Para onde vão? Para onde vai um material relativamente indestrutível neste nosso mundo finito? "Tirando uma pequena quantidade que é incinerada, cada pedacinho de plástico que mandamos para o oceano fica lá", diz Anthony Andrady, um renomado cientista de pesquisas especializado em plástico. "Continua em algum lugar do ambiente marinho."

Qual foi a última vez que você passou um dia inteiro sem usar um pedaço de plástico descartável? O material nos rodeia, inunda a nossa vida. Ele se acumula nas sarjetas das cidades, vai parar nas praias de todo o mundo e flutua nos próprios oceanos. O Programa Ambiental da Organização das Nações Unidas estima que dejetos plásticos matem mais de 100 mil mamíferos marinhos e um milhão de aves marinhas a cada ano. Até mesmo organismos pequenos, como águas-marinhas, peixes-lanterna e zooplâncton começaram a ingerir pedacinhos de plástico. Essas espécies, que são a base da rede de alimentação do oceano, estão ficando saturadas de plástico, que pode ser transmitido para os níveis mais altos da cadeia alimentar. "A preocupação é com o que o plástico carrega e libera nos organismos que o ingerem", diz Holly Bamford, que está lançando um estudo de dejetos marinhos para a National Oceanic and Atmospheric Administration (Administração Oceânica e Atmosférica Nacional, departamento governamental dos Estados Unidos). O resumo é o seguinte: a merda é toda nossa, e nós estamos começando a comê-la, de maneira bem literal.

Apesar de o plástico se desintegrar com o tempo, liberando substâncias químicas como bisfenol A e ftalatos no ambiente, a maior parte do material nunca desaparece; os polímeros sintéticos que formam sua estrutura permanecem intactos. Em seu menor estado, quando fica mais dividido em partículas, Andrady explica, "o plástico continua sendo plástico. O material continua sendo um polímero. O polietileno - o tipo de plástico descartável mais comum - não é biodegradável em nenhuma medida de tempo prática. Não existe mecanismo no ambiente marinho que possa biodegradar uma molécula tão longa assim".

Quando peixes e mamíferos ingerem microplásticos da Grande Mancha de Lixo do Pacífico, as toxinas químicas concentradas nos dejetos se alojam nos tecidos adiposos dos animais, acumulando-se em níveis cada vez maiores à medida que se sobe na cadeia alimentar. Ainda não está claro se essas substâncias químicas estão ou não chegando até os seres humanos, mas sabe-se que os compostos bifenilpoliclorados e o DDT prejudicam a reprodução em mamíferos marinhos. Nos seres humanos, foram relacionados a danos no fígado, lesões de pele e câncer. "A possibilidade de cada vez mais criaturas estarem ingerindo plásticos que contêm alta concentração de poluentes é real e bastante preocupante", diz Richard Thompson, biólogo marinho britânico que estuda microplásticos há 20 anos.

Wayne Sentman, biólogo de campo da Oceanic Society, com sede em São Francisco, passou três anos no atol Midway, conduzindo pesquisa de campo com albatrozes mortos. Durante esse período, ele encontrou uma ampla gama de dejetos marinhos no estômago das aves, incluindo "seis isqueiros uma seringa completa com a agulha, uma lanterna pequena, várias lâmpadas pequenas, pentes, escovas de dente, chinelos de dedo e iscas artificiais". Em praias britânicas no Mar do Norte, um estudo com fulmares descobriu que 95% das aves marinhas tinha plástico no estômago, com média de 44 pedaços por pássaro. Uma quantidade proporcional em seres humanos pesaria quase cinco quilos.

Os dados sobre dejetos plásticos no oceano ainda estão em seus primeiros estágios, e os pesquisadores da National Oceanic and Atmospheric Administration dão ênfase para o fato de que são necessários mais estudos para determinar se o plástico se transformou ou não em toxina na cadeia alimentar. Mas as evidências são crescentes, e a quantidade de dejetos segue dobrando a cada década. A ameaça se estende muito além da Grande Mancha de Lixo do Pacífico: como o capitão Moore se apressa em observar, o Giro Pacífico Norte é apenas um entre cinco giros importantes nos oceanos do mundo. "Metade dos oceanos do mundo são acumuladores - são giros de alta pressão que trazem as coisas para si", ele diz. "E cada um deles está cheio de plástico."

A questão agora é a seguinte: o que podemos fazer a esse respeito, se é que ainda podemos fazer alguma coisa? Alguns pesquisadores estão explorando maneiras de limpar o plástico com o uso de uma tecnologia emergente para converter os oceanos de plástico em combustível. Um dos principais ingredientes do plástico, afinal de contas, é petróleo bruto - 4% de todo o fornecimento do mundo, para ser exato, ou cerca de 3,4 milhões de barris de petróleo por dia no atual nível de consumo. Se a energia do plástico pudesse ser liberada de alguma maneira, segundo o raciocínio, poderia simultaneamente solucionar o problema do lixo e também aliviar a demanda de energia.

"O plástico é feito de petróleo bruto", diz Alka Zadgaonkar, chefe do departamento de química aplicada da Faculdade de Engenharia G.H. Raisoni em Nagpur, Índia. "Se for quebrado, vamos obter hidrocarbono." Com um empréstimo do Banco Estatal da Índia, Zadgaonkar diz ter desenvolvido um sistema que, com a ajuda de um catalisador secreto, é capaz de transformar "um quilo de plástico descartado em um litro de hidrocarbono". Os hidrocarbonos podem então ser destilados e transformados em um tipo rústico de gasolina adequado para equipamento de fornecimento de energia, motocicletas e sistemas de aquecimento.

O problema é que a extração de um único litro de combustível exige um quilo de plástico e 100 gramas de carvão, o que não faz com que o processo seja exatamente sustentável. Além disso, não existe ainda um método prático para capturar o cemitério líquido de dejetos que flutua no Pacífico. "A maior tarefa que temos agora é descobrir como fazer a coleta", diz Doug Woodring, cofundador de um estudo sobre a Grande Mancha de Lixo do Pacífico chamado Kaisei. "É aí que a tecnologia é incerta."

A única maneira viável de deter a difusão do plástico na cadeia alimentar mundial, segundo quem estuda o perigo, é reduzir a quantidade de plástico que usamos. "Não existe como limpar toda aquela merda... é impossível", desdenha o capitão Moore. "Neste momento, pegamos essas coisas todas com uma redinha. O que vamos fazer? Arrastar essas redes no oceano todo?" Moore, que deparou com a Grande Mancha de Lixo do Pacífico por acaso, parece mais marinheiro do que cientista, e sua linguagem é tão salgada quanto os cabelos encaracolados que lhe cobrem a cabeça. Diferentemente de outros pesquisadores, acostumados com o discurso medido das conferências científicas,

Moore vai direto ao cerne da questão. "Toda essa bobagem sobre ir lá recolher aquela coisa... não dá para recolher aquela coisa!", ele decreta. "Não existe nenhum jeito de tirar aquilo de lá... simplesmente não é viável! Existe uma ideia de que existiria uma 'zona de convergência' no giro, e todos os dejetos plásticos iriam para lá... bom, se está indo para lá, é porque vem de outros lugares e está ferrando com essas partes do oceano também. Se a entrada for constante, simplesmente fode com o oceano todo!"

Moore faz uma pausa dramática e contempla o Pacífico. "Não importa onde você está, não tem como superar, não tem como escapar", ele diz. "Agora o oceano é de plástico."