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Uma Casa Engraçada

Livro resgata a história do Solar da Fossa, sede não oficial da arte brasileira

Por Anna Virginia Balloussier Publicado em 18/03/2010, às 10h32

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Toninho Vaz, o autor do livro sobre a lendária residência carioca - DIVULGAÇÃO
Toninho Vaz, o autor do livro sobre a lendária residência carioca - DIVULGAÇÃO

Se já existisse Google Maps nos anos 60, a localização do Solar da Fossa bem que podia cair no número zero da Rua dos Bobos. Como na música de Vinicius de Moraes, era, de fato, uma casa muito engraçada aquela onde coexistiram mais artistas por metro quadrado do que emo em liquidação para chapinha de cabelo. O endereço de verdade ficava na Rua Lauro Muller, nº 116, em Botafogo, no terreno que hoje abriga o Rio Sul, primogênito dos shoppings cariocas. Por lá iam e vinham Paulo Coelho, Gal Costa, Paulinho da Viola, Tim Maia e tantos mais - praticamente todo mundo que apitou sua arte naqueles primeiros e chumbados anos de ditadura. Também havia alguns remanescentes da primeira geração de inquilinos, como senhorinhas e dois travestis que mantinham salão de cabeleireiro na entrada.

Amigo do poeta Paulo Leminski, outro a manter um cantinho na construção de estilo colonial, o jornalista Toninho Vaz mapeou no livro Solar da Fossa, A República dos Magros a história desses moradores, fixos ou itinerantes, dos 85 apartamentos - de quitinete a dois quartos, com banheiros coletivos para alguns - da Pensão Santa Teresinha. Por um tempo, o Solar, levantado no século 18 para ser fazenda, funcionou como manicômio para mulheres. Não que a versão sessentista estivesse tão distante desse passado eclético. Espécie de feudo lisérgico, o espaço era "símbolo da loucura das drogas, com muita maconha, ácido e bebida", segundo Vaz. Os atores Betty Faria e Cláudio Marzo se casaram no pátio. Entre as paredes do Solar da Fossa, Caetano Veloso viajou nas espaçonaves e guerrilhas de "Alegria, Alegria". E, claro, tinha os amigos. Em trecho, Jards Macalé conta sobre a noite em que desvirginou "uma moçoila na cama do Rogério Duarte, o designer das capas de discos da tropicália". Funcionário da Gessy-Lever, especializada em produtos de higiene, Gilberto Gil não precisava morar "em lugar de gente dura ou desquitada", comenta Vaz. Mas visitava sempre os compadres. Certa vez, o baiano teria saído do Solar direto para o aeroporto Santos Dumont, depois de bebericar uma dose de ayahuasca, a mistura amazônica do Santo Daime. O dia coincidiu com a instalação do AI-5, latido mais raivoso da repressão militar, nos fins de 1968. "Gil chegou no aeroporto e viu tudo cercado de polícia, mas diz que não teve badtrip. Na hora, entendeu tudo. Que iam ser exilados."

Para o diretor de TV Roberto Talma, a lei do Solar da Fossa era clara: "Se você não tinha conhecimento de arte, um pouco de filosofia ou alguma consistência política, não comia ninguém". Cabe ao diretor de teatro Aderbal Freire-Filho, parte da última leva de residentes, em 1970, desmanchar essa atmosfera de república universitária: "Não era ambiente de bagunça. Não lembro de droga pesada, fora fumo e LSD".

O Solar foi chamado de "ilha de felicidade num período tão ruim" por Aderbal, mas submergiu rápido. Aberto em 1964, viu o tempo fechar por "pressões econômicas cabalísticas", conforme Vaz, que também podem ser interpretadas como ações judiciais que levaram à demolição do lugar, em 1972. Nos anos 00, nova questão judicial: uma disputa entre Vaz e a Record, detentora dos direitos autorais de Solar da Fossa. Quando o contrato com autor expirou, em janeiro de 2009, a editora se deu por satisfeita com "o original que nos foi entregue, adequado e bom", de acordo com o departamento jurídico da empresa. Só que Vaz conseguiu uma liminar para impedir o lançamento de uma versão, a seu ver, incompleta do livro. Para fevereiro, planejou um bote que, acredita, será bom para os dois lados: a editora será comunicada sobre a desistência do autor em cobrar multa - a Record pagaria R$ 20 mil se distribuísse o título. Pode ser o fim, finalmente, da fossa.