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A Morte de uma Lenda

J.D. Salinger transformou o mundo – mas não em algo no qual ele tivesse algum interesse em viver

Por Walter Kirn Publicado em 14/04/2010, às 14h14

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J.D. Salinger resolveu viver longe da sociedade que ele e seus personagens abominavam - EVENING STANDARD/GETTY IMAGES
J.D. Salinger resolveu viver longe da sociedade que ele e seus personagens abominavam - EVENING STANDARD/GETTY IMAGES

Nas últimas seis décadas de sua vida, que terminou em 27 de janeiro último, aos 91 anos, J.D. Salinger ficou conhecido tanto por evitar a fama de forma extremamente ávida quanto pela conquista que transformou uma época e o tornou famoso a ponto de ficar sem ter para onde ir. Antes de o rock and roll dominar o mundo ou Hollywood descobrir que a rebeldia não precisava de uma causa, só de jeans e camiseta branca, ele inventou sozinho o grande adolescente norte-americano.

O mapa para essa nova e audaz espécie era O Apanhador no Campo de Centeio, seu primeiro romance perenemente best-seller, perpetuamente recomendado como lição de casa e infinitamente citado como "transformador". Ser como Holden Caulfi eld era se imaginar como liberto - das instituições falsas, dos líderes hipócritas, especialistas tediosos, celebridades idiotas e praticamente de qualquer objeto de prestígio (incluindo a própria noção de prestígio) que não merecia esse prestígio, principalmente porque o cobiçava. Em poucos dias perambulando por Manhattan após ser expulso do colégio, Holden conduz uma espécie de marcha de desdém devastador, criticando praticamente tudo o que encontra (exceto o Museu Americano de História Natural e a irmã caçula, Phoebe) e não poupando ninguém - nem a si mesmo.

Relendo o romance como um dos adultos que Holden não suportava, é fácil ver o que um dia era tão fácil de perder: que Salinger enxergava através de Holden tão detalhadamente quanto Holden achava que via através dos outros. Escondido em um hotel miserável de Manhattan, Holden espia, pela janela, um casal se divertindo eroticamente cuspindo coquetéis um no rosto do outro. A visão o excita e também o enoja. Ela o enoja porque o excita. O que o confunde. Ele confessa não saber nada sobre sexo, exceto que não tem certeza de que foi feito por isso, então sai apressado para conseguir sexo, afundando cada encontro que tem por causa de covardia, esquisitice, pena ou romantismo. Um motivo pelo qual Holden encontra gente falsa em todo lugar, insinua Salinger tão sutilmente, é que ele não consegue encontrar prazer em nenhum lugar. Lido dessa maneira, o livro é uma história de como a frustração - a ponto de virar torpor incapacitante - pode emergir como zombaria mordaz.

O temperamento da raiva adolescente autoconsciente que Salinger criou foi adotado por inúmeros leitores que nunca sofreram algo mais assustador do que ouvir os pais brigando bêbados ou ficar com o nariz sangrando na formatura. Ainda assim, essa nova postura com relação aos mistérios juvenis surgiu de uma psique recentemente brutalizada pelos horrores da guerra. Salinger era um veterano que combateu no Dia D pouco antes de escrever o romance, havia visto legiões de equivalentes a Holden serem esfoladas e evaporadas pelo inimigo. Ele poupou seu protagonista de lembranças tão traumáticas, reduzindo-as aos problemas rotineiros do colégio e ao luto prolongado pela morte do irmão. No entanto, sabendo que Salinger ficou à beira de um colapso com os terrores do teatro europeu, é impossível evitar a sensação de que o mau humor fatigado de Holden esconde tensões muito mais mortificantes.

Diferentemente dos joviais contemporâneos de Salinger, os beatniks, com quem compartilhava algumas obsessões - especialmente o misticismo e o budismo de seu romance curto em duas partes, Franny e Zooey, com suas páginas de falatório maníaco e esotérico sobre pureza moral e ascetismo - nem Salinger nem seus principais personagens parecem ter muito uso para, ou têm a capacidade para, estados de êxtase e felicidade. Os alter egos de Jack Kerouac decaíam após momentos de sensações aguçadas e conexão pessoal intensa, mas os jovens sensíveis de Salinger buscam a abstinência. São observadores e comentaristas, nativos dos bastidores, jogados em bancos de parques obscuros ou espreitando nas mesas de canto nos bares, silenciosamente contemplando a fraudulência.

A abordagem de Holden provou ser mais atraente e imitável para as personalidades bem educadas que se destacaram no meio acadêmico e na mídia e, essencialmente, transformou seu estilo de desencantamento - seu recolhimento sonhador e hipersensível - nos traços definidores da cultura jovem americana oficial. Imitadores ávidos dos beatniks acabaram em bandas de rock, cooperativas ou na cadeia, mas os fãs de Salinger e Holden, mais irônicos do que anarquistas, conseguiram melhor navegar no universo predominante e se tornaram professores, colunistas ou contadores um tanto perspicazes. Como um modelo de rebelião genuína, Holden sempre foi supervalorizado. Ele está mais para o garoto que torna a rebelião desnecessária ao considerar que é sufi ciente resmungar e zombar.

Não é de espantar que seu criador tenha se mudado para as margens e que sua reclusão tenha se tornado um símbolo de integridade espiritual em vez, digamos, de desprazer e desgosto sem fim que ele demonstrava em suas críticas periódicas de tudo o que incomodava seu cone perfeito de silêncio. Embora muito do trabalho de Salinger tivesse o mais alto mérito artístico, especialmente O Apanhador, são suas melhores histórias curtas e os diálogos agitados de Zooey, que reproduzem com precisão louca e dinâmica a forma c omo pessoas mas brilhantes, falam quando tentam falar sobre tudo de uma vez só - vale a pena questionar, no espírito do próprio Holden, o status de Salinger de santo secular heroico. A morte de J.D. Salinger não é uma ocasião para a devoção pretensiosa que ele nos ensinou, tão irresistivelmente, a desdenhar.