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O Ano do Contato

Prestes a receber a maior eleição da história do Brasil, 2010 marca a prova de fogo do voto por identificação biométrica

Por Fernando Vieira e Rodrigo Barros Publicado em 12/07/2010, às 17h58

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Ilustração Negreiros
Ilustração Negreiros

"A máquina não aceita mentira!" Esta é uma das mensagens que se podem extrair do filme 2010: O Ano em Que Faremos Contato (1985), baseado na obra de Arthur C. Clarke. No capítulo anterior,2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), levado ao cinema pelo consagrado diretor Stanley Kubrick, o ultramoderno computador HAL 9000 surta sem razão aparente e se revolta contra os tripulantes da nave Discovery. Aniquila praticamente a todos, sem piedade.

A explicação para a "desinteligência artificial" de HAL fica em aberto ao final de 2001 e só é revelada em 2010. Ao contrário dos seres humanos, o computador era programado para não mentir, nada esconder e em tudo agir com exatidão. A lição de moral expõe um vírus do comportamento humano: "HAL foi levado a mentir por pessoas que acham fácil mentir". E como a vida imita a arte, a política eleitoral brasileira mostra que faz escola com a literatura e o cinema: cada vez mais, confia autonomia à máquina para a eliminação do erro e da fraude, afastando dos homens a confiabilidade da verdade.

"Reduzir a intervenção humana na identificação do eleitor, na captação do voto e seus desdobramentos - apuração, totalização e divulgação -, é o caminho para garantir a lisura total de uma eleição", assegura o ministro Carlos Ayres Britto, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), autoridade máxima em matéria eleitoral no Brasil. O sentido prático dessa afirmativa ganha forma com a evolução do processo de automação já nas próximas eleições, em 3 de outubro, quando cerca de 1,5 milhão de indivíduos terão a identidade colocada à prova pelo computador antes de votar. Em outras palavras, a conferência do título eleitoral, habitualmente feita pelos mesários, começará a ser substituída pela implacável verificação das minúcias das impressões digitais em um dispositivo leitor, similar ao escâner. A expectativa é de que 100% do eleitorado brasileiro seja recadastrado até as eleições de 2018.

Definido pelo ministro Ayres Britto como um plus tecnológico em relação ao voto singelamente eletrônico", o sistema de identificação biométrica do eleitor entrará em operação, oficialmente, em mais de 60 cidades do país. Para tornar isso possível, desde novembro do ano passado, um amplo recadastramento está sendo feito nesses municípios, com previsão de término para 19 de março. O planejamento do trabalho está a cargo do TSE, e a execução é de responsabilidade dos Tribunais Regionais Eleitorais e, na linha de frente, dos cartórios eleitorais locais.

Para o presidente do tribunal, o processo brasileiro já alcança um ponto elogiável de maturidade. "Há uma compreensão mais nítida de que é preciso cumprir a Constituição e as leis no que toca à autenticidade do regime representativo, sendo que isso passa pelo respeito à soberania do voto, pelo não uso da máquina administrativa para fins eleitoreiros e pela compreensão de que não basta ganhar a eleição pelo voto", didatiza. Na visão do ministro, hoje o Brasil tem maior clareza na distinção entre legitimidade pelo voto e legitimidade ética, sendo a última entendida como a submissão às regras do jogo por parte dos candidatos. "No limite, quando se antagoniza de forma radical a legitimidade pelo voto e ética, a preponderância é da legitimidade ética", acredita.

Nesse sentido, a vantagem se traduz no "aperfeiçoamento do processo ético-democrático", segundo acredita Ayres Britto. "O eleitor não pode se apropriar do título alheio. Não pode votar duas, três ou quatro vezes. Vota uma única vez, sem possibilidade de fraude." E o ministro reconhece o benefício desse ajuste tecnológico que agrega mais segurança ao sistema atual: "O nosso sistema, tal como está hoje, embora se apresente como o mais moderno do mundo, ainda padece de um defeito estrutural que é não garantir, com absoluta certeza, que alguém se passe por outro, na hora da votação.

Para eliminar qualquer brecha na segurança, a implementação do novo mecanismo de identificação eleitoral toma como base um projeto-piloto colocado em prática em 2008, quando três cidades brasileiras elegeram prefeitos e vereadores nas chamadas "urnas biométricas". Foram selecionados municípios de três diferentes estados e regiões do país: São João Batista (Santa Catarina), na região Sul, Fátima do Sul (Mato Grosso do Sul), no Centro-Oeste, e Colorado do Oeste (Rondônia), no Norte.

O primeiro objetivo era avaliar o tempo para a formação do cadastro de informações biométricas e dimensionar a infraestrutura tecnológica necessária para fazer o recadastramento de todos os eleitores do Brasil. "Fizemos uma série de coletas de dados estatísticos de tempo por estação e da eficiência dos equipamentos, para depois dimensionarmos a quantidade de recursos necessários para ampliar esse projeto no plano nacional", explica Carlos Rogério Camargo, ex-secretário de Tecnologia da Informação do TRE-SC, que conduziu o trabalho em São João Batista, há dois anos. O segundo desafio estava relacionado à qualidade dos dados coletados durantes as eleições. "Como se trata de um processo de massa, tínhamos que refinar a coleta dessas informações para repassar o treinamento para os outros tribunais, que hoje já estão envolvidos nesse trabalho", conta.

Já o critério de escolha ambiental para o laboratório levou em conta a distinção entre as atividades produtivas dessas cidades, com populações dos setores da indústria, pecuária e agricultura. O que se pretendia avaliar era a eficiência da nova arma, para assegurar a unicidade da identidade do eleitor. "O nome técnico dessa confirmação é 'falso-positivo' e 'falso-negativo', que estabelece qual é o grau de certeza ou de rejeição de uma identidade", explica Camargo.

Até aquele momento, não havia como saber qual o percentual da população que teria dificuldade em confirmar ou não sua identificação. Segundo ele, um fator - totalmente inevitável - que poderia afetar a impressão digital era a idade. "Há uma degradação natural da impressão digital. E como não há estatística em relação a esse assunto, precisávamos determinar quais eram esses parâmetros."

Existiam ainda outros elementos para análise que poderiam refletir na qualidade da obtenção da impressão digital, como "intempéries (condições imprevisíveis, como acidentes), a característica do trabalho que a pessoa desenvolve ou ainda alguns tipos de doenças", segundo Camargo.

No caso de São João Batista, cidade cuja economia é movida pela indústria de calçados, muitos dos eleitores manipulam cola e produtos químicos com o couro, agressivos às impressões digitais. "E todo produto agressivo que atua sobre a pele acaba reduzindo a capacidade de leitura biométrica", explica. Já em Fátima do Sul, no Mato Grosso do Sul, o trato diário é com o gado, que envolve bastante trabalho manual. Assim como em Colorado do Oeste, em Rondônia, onde a lavoura é responsável pela agressão às mãos e pelo possível desgaste às digitais.

O resultado do projeto-piloto, contudo, foi considerado positivo. O índice de reconhecimento das digitais pela máquina ficou em torno de 99%, uma marca notável. "Nosso compromisso é buscar a melhoria contínua no processo, com base em dois pilares: a segurança e a transparência do processo eleitoral. Tivemos um bom laboratório, buscando justamente a experiência nos casos mais complexos", reforça Giuseppe Janino, secretário de Tecnologia da Informação do TSE. A partir daí, foi dado sinal verde para a implementação da primeira fase do recadastramento biométrico de eleitores.

Para a realização do procedimento, são aproveitadas estruturas locais disponíveis, como prédios públicos e parques, e deslocados funcionários dos cartórios, que trabalham numa espécie de mutirão, inclusive aos domingos e feriados. A convocação da população é feita por meio de propagandas institucionais do TSE, veiculadas em mídias regionais, além de panfletos, cartazes, carros de som e faixas distribuídas nas cidades.

Ao chegar aos pontos de recadastramento, o eleitor se dirige ao atendimento biográfico para fazer a atualização e conferência dos dados gerais. Depois, é encaminhado ao atendimento biométrico para a coleta das digitais de todos os dedos - das duas mãos -, além de uma foto. Aliás, esse é um detalhe importante: o dado biométrico compreende também a análise facial da pessoa que vai votar.

"O eleitor parece que se sente incluído em uma nova era", afirma Cristina Vasconcellos, chefe da central de atendimento biométrico do TRE do Rio Grande do Sul. Ela é responsável pelo trabalho em Canoas, única cidade do Estado que está participando da implementação da biometria e a maior do país incluída nesta etapa.

Cristina diz que o trabalho tem avançado sem obstáculos e com boa receptividade pelo eleitorado, com atendimento organizado até mesmo com senhas para preferenciais e agendamentos pela internet. O maior "entrave", até o momento, é no mínimo curioso: acontece na hora em que a pessoa descobre que, além das digitais, terá de tirar fotografia. "Não chega a ser um problema. O que chama a atenção é que as mulheres se preocupam. Aí tem de parar, ir ao banheiro e se maquiar. Elas querem se pentear, fazer um retoque", ela conta.

Embora a coleta de dados seja completa, o procedimento para votação na urna biométrica não deverá exigir que o eleitor "toque piano" com os dez dedos. A máquina estará preparada para a leitura apenas do indicador e do polegar, de ambas as mãos. Primeiro, deverá ser colocado no dispositivo leitor o polegar direito. Se não for reconhecido, é utilizado o indicador da mesma mão. Persistindo o problema, o polegar esquerdo será escaneado. E, por último, o indicador esquerdo. No caderno de votação, sob o controle dos mesários, estará também impressa a foto do eleitor para conferência caso ainda haja dúvidas dos mesários em relação a sua identidade.

Com isso, a expectativa do TSE é reduzir consideravelmente a possibilidade de fraudes, como a falsidade ideológica (uma pessoa que se passa por outra com um documento original) e a falsidade documental (quando o documento apresentado é falso). Não existe, no entanto, uma estimativa do percentual de trambiques e golpes nas eleições. "Estamos atuando de forma preventiva, no sentido da sustentação do processo democrático", justifica Janino, do TSE.

Outra consequência esperada com a utilização da identificação biométrica é o refinamento da base eleitoral. Afinal, o recadastramento permite que sejam eliminadas potenciais redundâncias, ou seja, a existência de dois títulos de eleitor para uma mesma pessoa, nos casos de erros gerais. "Enquanto o trabalho de 'batimento' [cruzamento, identificação e exclusão da duplicidade] é potencialmente frágil quando feito com a análise de dados biográficos, como nome, filiação e data de nascimento, a biometria tem precisão", garante Janino.

Se a operacionalização do sistema de votação envolve um trabalho vultuoso, o custo não fica atrás e segue na mesma direção. A primeira etapa (2009/2010) tem orçamento previsto de mais de R$ 24 milhões, sendo R$ 19 milhões em investimentos em equipamentos e desenvolvimento e R$ 5,25 milhões de custeio, sendo este montante ligado à execução dos trabalhos de recadastramento.

Segundo a Justiça Eleitoral, a maior parte da despesa destina-se à compra de equipamentos, que serão reutilizados nas próximas fases. São 1.412 kits, compostos por um notebook, um escâner, uma máquina digital e um estúdio - que compreende uma cadeira e uma tela de fundo para a fotografia. Até 2018, considerando que se atinja 100% do eleitorado, em uma base estimada de 150 milhões de eleitores, a previsão é de que o recadastramento dos eleitores consuma R$ 402 milhões.

E esse trabalho tem relevância não só para o sistema eleitoral brasileiro como também para o Brasil como um todo. Os dados biométricos coletados e refinados pela Justiça Eleitoral poderão ser utilizados pelo banco de dados do Instituto Nacional de Identificação para o Registro de Identificação Civil (RIC), que substituirá o número do RG, do CPF e do Título de Eleitor e conterá um chip com informações sobre tipo sanguíneo, cor da pele, altura, peso e diversos itens de segurança, tais como: dispositivo antiescâner, imagens ocultas, palavras impressas com tinta invisível, fotografia e impressão digital a laser, e ainda a possibilidade de armazenar informações trabalhistas, previdenciárias e criminais.

Apesar de todo o esforço e do investimento pesado do governo na implantação do novo mecanismo de votação, a Justiça Eleitoral teme um retrocesso com as mudanças trazidas pela lei 12.034/09, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre as alterações, há a previsão do retorno do voto impresso após a votação em urna eletrônica, o que "retarda e onera o processo de votação", além de poder provocar "filas enormes nas seções e o emperramento da máquina impressora", segundo o ministro Carlos Ayres Britto. "É o calcanhar de aquiles do sistema", condena. O presidente do TSE acredita, no entanto, que a marcha a ré legislativa será "certamente objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, com ampla possibilidade de julgamento procedente, no Supremo Tribunal Federal", já que a impressão abre espaço até mesmo para a identificação do eleitor e, portanto, para a quebra do sigilo do voto, protegido pela Constituição.

A mesma opinião tem o secretário de Tecnologia da Informação do TSE, que considera que a alteração na lei põe em xeque a implementação da identificação biométrica e, consequentemente, "torna inócuo o processo de identificação biométrica". Para Janino, a ideia retoma um "processo abandonado lá atrás, que era justamente a intervenção do homem, com a possibilidade de lentidão, de erros, que são inerentes à realidade humana, e principalmente as fraudes, que já haviam sido eliminadas com a automatização".

Na contramão desses entendimentos está o advogado Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral e presidente do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDIPEA). Segundo ele, a impressão do voto se tornará obrigatória para posterior conferência por amostragem, o suficiente para que se descubra eventual fraude digital, que teoricamente poderia ser cometida por meio da utilização de software. "Não consigo ver essa medida como um retrocesso", ele afirma. "Ao contrário. [A conferência por] amostragem não é contar todos os votos manualmente, mas apenas uma pequena percentagem das urnas de determinada zona eleitoral."

Deixando de lado essa divergência pontual, diante dos avanços tecnológicos apresentados por essa nova possibilidade, não parece que a identificação biométrica, já presente no sistema de identificação e segurança utilizado na entrada de tantos edifícios comerciais, enfrentará obstáculos inesperados entre o eleitorado em um futuro próximo. Por isso, para provocar uma revolução significativa no sistema eleitoral brasileiro, o ideal mesmo seria que os políticos corruptos também pudessem ser identificados pelas pontas dos dedos, e não apenas pela cara de pau.