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Um Homem Pop

No Momento mais acessível de sua carreira, Arnaldo Antunes alcança os 50 anos na privilegiada posição que sempre buscou: Ser ouvido pelo maior público possível ao mesmo tempo que mantém a privacidade intacta

Antônio do Amaral Rocha Publicado em 14/04/2010, às 15h49 - Atualizado em 18/09/2015, às 12h20

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Robert Astley Sparke
Robert Astley Sparke

Faz muito tempo que você está aí?" De pronto, Arnaldo Antunes abre a porta de sua ampla residência em uma tarde abafada seguida de aguaceiro de verão, após meros dez segundos e somente um toque na campainha.

Solícito, oferece café e água em tom cordial, enquanto caminha casa adentro. Está à vontade em seu estilo caseiro: veste calças cinza e camisa branca, com mangas longas desabotoadas, e está descalço (como se mostrasse pudor, apressa-se em calçar um par de tênis). Do alto de seu 1,80 m aproximadamente, tem os cabelos mais curtos do que costumava aparecer em outros tempos, raspados na altura das costeletas.

Foi recentemente, em meados de 2009, que Arnaldo Antunes decretou os dois movimentos que colocaram sua variada e prolífica carreira em um lugar em que nunca esteve antes. O primeiro foi a cocriação do projeto Pequeno Cidadão, dirigido ao público infantil, que gravou ao lado de amigos e parte de sua prole. Em seguida, o lançamento do aplaudido disco solo Iê Iê Iê, cuja intenção era modernizar uma sonoridade perdida dos tempos da Jovem Guarda.

Da porta da cozinha, o dono da casa se dirige a um amplo corredor com paredes abarrotadas de fotografias de amigos e familiares. O caminho leva a um quarto onde se nota a presença de crianças, não porque elas estejam ali, mas pela quantidade de brinquedos arrumados em um canto. O próximo cômodo, um amplo escritório, é o local de trabalho do paulistano nascido em 2 de setembro de 1960, ex-titã, cantor, compositor, poeta, artista plástico e tantas outras atividades que carrega desde o final dos anos 70. Na sala escolhida, há computadores, mapotecas, caligrafias e cartazes nas paredes, sofás e a parede frontal abarrotada de livros com estantes do pé ao teto. Uma rápida olhada nas lombadas encontra livros teóricos, de poesia, arte e outras áreas da comunicação. Recentemente, sua biblioteca pessoal foi incrementada por duas novas aquisições: um volume sobre os Beatles e outro sobre a poética de Juó Bananére, o escritor paulistano (e italiano de araque) que forjou uma nova língua, o macarrônico, na década de 1920. Tais mimos parecem muito adequados para um indivíduo que transita livremente nas duas áreas, a poética e a musical, na pele do artista Arnaldo Antunes.

Ajeitando-se em uma cadeira ao lado do sofá, agora calçado, ele se coloca à disposição. "Não está mais fumando?", pergunto, notando a falta de um cinzeiro a seu lado. "Não, mas já estou pensando em voltar." Arnaldo, fiquei sabendo depois, costuma suspender o cigarro em ocasiões de temporadas de shows, com o intuito de cuidar da voz.

Recostado, ele parece relaxado como de praxe, sem exatamente precisar sorrir muito. Nasceu há quase 50 anos como Arnaldo Augusto Nora Antunes Filho, filho de Arnaldo Augusto Nora Antunes e Dora Leme Ferreira Antunes. É o quarto filho do casal, confortavelmente colocado no mundo após Álvaro, Maria Augusta e José Leopoldo, e antes de Cira, Sandra e Maria Renata. "Sempre que possível a gente se vê", conta, sobre os seis irmãos. "Tenho muitos sobrinhos, então a gente junta as crianças. Temos uma relação muito legal." Na família, relembra que é o único artista militante. "Tem médica, arquiteta, engenheiro, cientista social. A minha irmã mais nova já publicou um livro de poemas e é formada em artes plásticas."

Arnaldo diz separar bem as duas personas com a quais todo artista renomado é obrigado a conviver. Em casa e nas ruas, se mostra uma pessoa afável e de fino trato, que faz questão de manter hábitos ditos "normais". "Faço tudo, não tenho o menor problema. Detesto esse papo de 'Não posso ir a tal lugar que senão vão ficar te enchendo o saco'", explica. "Recebo superbem todo mundo que vem falar comigo. Vou ao cinema, vou a qualquer lugar como um cidadão normal e recebo o assédio sem me incomodar." Fato é que pouco ou quase nada se sabe sobre a vida pessoal de Arnaldo Antunes, e ele nem se esforça muito para clarear a questão. Uma das histórias mais notórias ocorreu em 1985, quando foi detido por porte de drogas com Tony Bellotto, então parceiro de Titãs. Hoje, faz questão de frisar que foi uma experiência traumática e devidamente superada. "O principal dessa história foi eu estar ali preso por uma coisa que realmente não tinha feito, que não exerço, entendeu?", diz, fazendo questão de solicitar em seguida: "Isso faz tanto tempo, nem sei se precisa mencionar isso... Mas faz parte, tanto que eu não escondo nada".

Em fins dos anos 70 e início dos 80, o adolescente Arnaldo frequentou o Colégio Equipe, que priorizava, além das matérias típicas de colégio, uma programação cultural de shows, debates e projeções de filmes - época que relembra hoje com gosto. "Aquela época era uma idade definidora da vida da gente, de tomar consciência, dos 15 aos 18 anos", recorda. "É uma coisa muito marcante. Vivi essa coisa no Equipe e considero uma sorte tremenda."

Os shows de fim de semana promovidos no Equipe eram um acontecimento em São Paulo. Em maio de 1977, Gilberto Gil, que voltava de uma excursão à África, fez lá uma apresentação que se tornou polêmica, porque discutiu com parte do público, que exigia dele uma posição política mais à esquerda. Gil tentou contemporizar e foi vaiado. Arnaldo, sem muito esforço, relembra o caso: "Eu estava lá. Foi maravilhoso esse show do Gil... Rolou uma coisa entre as pessoas do movimento estudantil querendo discutir e ele falou coisas lindas.. Aproveitando o ensejo, ele reforça sua própria posição: "Participei de muita passeata, mas nunca tive essa coisa obstinada de querer um comprometimento político de um artista".

No Equipe, Arnaldo se aproximou de Paulo Miklos, que se tornou parceiro de composição. Os dois, mais Branco Mello, Sérgio Britto, Ciro Pessoa, Nando Reis e Marcelo Fromer, formariam ali o embrião do Titãs, em 1981. "Na verdade, a gente se chamava Titãs do Iê Iê com dois 'iês'", Arnaldo ri. "Na época, a gente já achava que o nosso som era uma releitura do 'iê iê iê'. Não queríamos fazer 'iê iê iê' como era nos anos 60. Estávamos nos anos 80. E este 'iê iê iê' de agora já é uma releitura da releitura", define. O poeta Aguinaldo Gonçalves, que foi professor de Arnaldo, recorda de certa ocasião em que encomendou aos alunos um trabalho que fizesse um paralelo entre o barroco e o poeta baiano Gregório de Matos. O inquieto Arnaldo, por sua vez, quis saber se o tema poderia ser ampliado. "Isso não era uma preocupação muito comum na média dos alunos", esclarece o professor. Arnaldo também cita que foi tal experiência que aguçou seu gosto pela crítica literária: "Me lembro de uma análise de um poema de Gregório de Matos em que eu falava do Glauber Rocha. Eu fazia uma associação e desenvolvi alguma ideia. Na verdade, sempre fui muito interessado pelo Gregório de Matos. Aquilo foi uma revelação para mim". Foi durante o período no Equipe que o jovem Arnaldo começou a se interessar por artes plásticas, especialmente a poesia visual com influências da linguagem concretista que derivou para suas hoje já famosas caligrafias. "Eu sempre parto de alguma coisa que pode ser uma frase, uma ideia, mas o fazer vai transformando em outra ideia. Enfim, eu nunca tenho o motivo todo de antemão." Enquanto explica, ele se levanta e aponta a mapoteca particular: pilhas de imensas folhas de papel que descreve como "experiências descartadas".

As portas logo começaram a se abrir para o Arnaldo poeta e artista multimídia convivendo bem com o Arnaldo músico, vocalista dos Titãs, que, em 1984, ao serem contratados pela gravadora WEA, invadiram rádios e tevês com "Sonífera Ilha". Até 1992, ainda junto ao grupo, Arnaldo seguiu fazendo e participando de performances poéticas, publicando livros, escrevendo ensaios e angariando para si a atenção de um meio que vulgarmente se chama de "alta cultura", fato que despreza com veemência: "A minha ambição é desfazer esse tipo de diferenciação entre alta cultura e baixa cultura", decreta, mostrando certa chateação com o tema. "Tem de rolar um contrabando de uma área para a outra e desfazer esse tipo de separação, que é uma coisa muito antiga. Acho que os tempos de hoje são muito mais fluentes, não só entre as diferentes linguagens, mas também entre esses territórios culturais." Atualmente, a eclética profusão de parcerias musicais de Arnaldo ultrapassa a centena, em um universo de mais de 350 canções. Nota-se que ele é um parceiro desejado, e cabe tentar saber como isso se dá na prática: "Varia muito de parceiro para parceiro. Tem aqueles que a gente senta junto pra compor e faz na hora letra e melodia", fala, aparentemente incomodado com os pernilongos, comuns nesses tempos chuvosos. "Tem aqueles que a gente se contata por e-mail. Tem de todo o jeito, mas o que tem que ter é empatia", diz, enquanto se oferece para buscar repelente à base de citronela. A marcante voz grave e de timbre singular acabou chamando a atenção de uma agência de propaganda, que solicitou Arnaldo para a locução de um comercial que vendia a imagem de um supermercado. "Acho que me convidaram porque tenho uma personalidade na voz que as pessoas reconhecem de imediato. Só topei porque eu me simpatizei com a ideia, se não tivesse essa empatia, eu não faria", conclui, enquanto desfere um golpe no ar, direcionado a um pernilongo que insiste em desviar sua atenção.

Eclético e incansável, Arnaldo Antunes já flertou com o universo da moda. Sua parceria com o estilista Marcelo Sommer rendeu os figurinos para a turnê do disco Qualquer (2006). Sommer revela que a camisa xadrez com colarinho puído que o músico utilizou na turnê do álbum é uma peça de uns 20 anos de seu próprio guardaroupa. "Conheci o Arnaldo há uns oito anos, através da artista plástica Márcia Xavier. É um grande artista e sabe o que quer. O conceito Iê iê iê foi ideia dele. Eu desenvolvi os figurinos", diz Sommer, que também desenvolveu, junto com Márcia, o cenário dos shows da turnê Iê Iê Iê, a partir de fotos que Arnaldo fez na África, que retratam centenas de camisetas dependuradas, tal qual em feiras populares.

Estar próximo de um universo aparentemente tão distante não é encarado como um fato estranho por Arnaldo, que justifica essa relação intersemiótica de diversas linguagens: "Eu tenho facilidades em fazer coisas em que a música dialoga com outras áreas". Ele lembra que já fez trilha para o grupo Corpo, em que a música dialoga com a dança. O cinema entra também com a mesma relação: "Fiz várias canções para filmes", enumera. "São namoros da música com outras linguagens: a moda, o cinema, a dança. Acho isso muito natural." É um assunto que fascina o artista, e ele demonstra a empolgação se levantando, buscando palavras novas para discorrer sobre as relações intersemióticas das coisas. "O próprio show já é essa relação, porque quem está fazendo show não está fazendo só música. Envolve cenografia, performance, atitude, uma série de linguagens que acontecem ali juntas", divaga. No caso de Arnaldo, isso se expande além, porque, além da história na música popular, faz questão de publicar livros de poesias, fazer performances e se envolver com artes plásticas. Dessa ânsia pela mistura resultou a definição de artista multimídia que carrega há anos e se acentuou com o álbum solo Nome (1993), que tinha uma abrangência de universos que foi interpretada por muitos como incompatível e de difícil fruição. Ele, por sua vez, parece se divertir com a confusão causada. "Eu quero mais é desfazer isso e misturar tudo", brinca.

Arnaldo começou realmente a colher as vantagens financeiras de seu trabalho com o lançamento do CD/ DVD Tribalistas (2002), ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown. Consta oficialmente que o disco vendeu mais de 1 milhão de cópias, mas o trio não fez carreira de fato como banda, a não ser em reuniões esporádicas, uma delas para a gravação de Ao Vivo no Estúdio (2007), penúltimo álbum de Arnaldo, que recriou e acrescentou outras músicas ao repertório de Qualquer. Na oportunidade, foi gravado também o DVD de mesmo nome que proporcionou a rara aparição dos Tribalistas juntos, em três números. A importância da parceria para a carreira de Arnaldo é evidente, pois foi a partir daí que o registro de sua voz passou a ser mais calmo, até sussurrado, proporcionada pela massa sonora amena, diferente da época titânica e de discos solos anteriores, em que o canto, por vezes, era berrado. Em Ao Vivo..., o músico buscou uma sonoridade setentista, com violões, alguma distorção na guitarra e sintetizadores.

No início de 2009, Arnaldo começou a notar que as músicas que escrevia remetiam para algo ainda mais antigo. Daí a pensar no velho "iê iê iê" foi questão de tempo. Mas esse projeto teria de esperar, pois aguardava a aprovação de um patrocínio. Outra novidade acabou vindo à tona: um disco dirigido ao público infantil. O resultado, o aclamado CD Pequeno Cidadão, era um aproveitamento da experiência de fazer música para suas crianças. "Nossos filhos estudam no mesmo colégio e até fizemos shows lá de brincadeira sem ensaio, nem nada", ele diz, sobre os parceiros na empreitada, Edgar Scandurra, Taciana Barros e Antônio Pinto. "Quando fomos gravar, escalamos as crianças para cantar com a gente." O CD foi trabalhado com calma no primeiro semestre do ano passado. Nas apresentações ao vivo, sempre concorridas, os músicos dividiam os palcos com seus próprios filhos

Prestes a completar 50 anos, Arnaldo divaga sobre a possibilidade da preocupação com o universo da criança ter relação com o ato de envelhecer. As mudanças em sua percepção, afirma, ocorrem desde o tempo em que teve a primeira filha - ele tem quatro, do casamento que durou 15 anos com a artista plástica Zaba Moreau: Rosa (21 anos), Celeste (18), Brás (12) e Tomé (8). A observação dos filhos permitiu a recordação de fatos meio esquecidos e de sensações de uma infância perdida."Você passa a viver de uma outra forma. É o aprendizado mútuo. Acho que a gente aprende com os filhos, tanto quanto eles aprendem com a gente", pondera o Arnaldo pai, o olhar meio perdido na janela.

Iê iê iê, o álbum, é seguramente o trabalho de mais fácil assimilação que Arnaldo Antunes já produziu, apesar de ele discordar dessa afirmação peremptória. Afirma que foi algo que sempre perseguiu na sua carreira e se agora está conseguindo, é porque se trata de uma evolução, jamais uma concessão ao fácil. "Claro que isso é o que eu sempre quis e acho que estou sempre mudando a cada disco", define, descartando absolutismos criados pela mídia que definem que "ou você faz música comercial, ou faz música 'papo cabeça'" - o termo, aliás, constantemente associado ao Arnaldo artista, é considerado por ele "horrível".

Espirrando o spray anti-inseto nos braços sem interromper a fala, ele contesta a ideia de que uma linha mais sofisticada de pensamento não possa conviver com o sucesso de massa. "Venho de uma história que envolve dez anos com os Titãs, os Tribalistas, dez discos de carreira solo. Já passei por tudo e acho que isso é um tipo de coisa que não dá para separar dessa forma", teoriza, em tom didático, insistindo em combater a ideia muito simplista de que ele fazia música difícil e, de repente, fez um disco mais fácil. Mas acaba por admitir que sua obra traz os dois ingredientes e assume que Iê Iê Iê é um produto mais direto, muito por ser um disco conceitual baseado em um gênero que andava abandonado. "A minha intenção sempre foi fazer música pop e ser ouvido pelo maior número de pessoas possível, sempre", arremata.

Para Arnaldo, existe certo trauma com relação ao disco Nome, no qual fez questão de marcar uma atitude bem diferente ao deixar o Titãs. "O disco tinha o trabalho de lançar música, poesia, vídeo, animação, várias linguagens numa só. Era descaradamente mais experimental." O fato de estabelecer certa dificuldade em sua música teria relação direta com um fenômeno notável: a cada novo disco, a imprensa procura saber se "Arnaldo está mais pop". O óbvio é que ele transita também nessa área dita difícil, mas agora seu grande barato é quebrar esse muro entre as coisas mais experimentais e a coisa mais popular, conforme assinala, novamente empolgado. "O que eu acho é que as minhas características todas como compositor, de intérprete, estão no Iê Iê Iê também. É um 'iê iê iê', mas, antes de ser um 'iê iê iê', é o 'iê iê iê' do Arnaldo Antunes. Então não é uma guinada, nada tão diferente", relativiza, de uma maneira que só ele conseguiria fazer.

Demonstrando ser sua vida e sua obra uma mesma coisa, o fato de envelhecer é encarado pelo homem Arnaldo com naturalidade - tanto que o tema se tornou uma música: "Envelhecer", um dos hits de Iê Iê Iê. "É a minha reflexão sobre isso. É querer saber o que é envelhecer e fazer isso sem perder a intensidade de vida, sem se acomodar e continuar inquieto", ele conta, e nesse momento fica claro o quanto não aparenta a verdadeira idade que tem. "Mas, ao mesmo tempo, é querer passar por esta etapa da vida que é a idade após os 50, após os 60. Para vermos qual é."