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Entre Duas Vidas

Personagem principal de uma tragédia moderna, Glauco Villas Boas dividia-se entre as rotinas de artista rebelde e líder religioso dedicado

Por Antônio do Amaral Rocha Publicado em 11/05/2010, às 04h48

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<b>ENGAJADO E ALUCINADO</b> Glauco desenha Geraldinho, um de seus personagens mais famosos. Nos últimos anos, as tiras que produzia eram especialmente dedicadas às críticas sociais - Otavio Dias de Oliveira / Folha Imagem
<b>ENGAJADO E ALUCINADO</b> Glauco desenha Geraldinho, um de seus personagens mais famosos. Nos últimos anos, as tiras que produzia eram especialmente dedicadas às críticas sociais - Otavio Dias de Oliveira / Folha Imagem

A vida do cartunista Glauco Villas Boas parecia ser feita de paradoxos, e dela faziam parte duas personas perfeitamente marcadas: de um lado, o criador anárquico; de outro, o líder religioso, devoto do Santo Daime. Este segundo traço só os mais íntimos conheciam. Nascido na pequena Jandaia do Sul, no Paraná, em 1957, aos 19 anos mudou- se para Ribeirão Preto (SP), quando começou a publicar suas primeiras tiras no jornal Diário da Manhã. Rapidamente, sua fama se alastrou: participou de salões e concursos de humor que proliferavam no meio da década de 1970 (entre eles, do Congresso Internacional de Histórias em Quadrinhos de Avaré, em 1975, do I Salão Internacional de Humor de Piracicaba, em 1977, em que foi premiado, e da Bienal de Humorismo y Gráfica de Cuba).

Morando em São Paulo a partir de 1977, Glauco publicou charges e quadrinhos no jornal Folha de S. Paulo. Dessa época, é nítida a influência dos traços de Henfil e de Robert Crumb em seus trabalhos - que tratavam da tortura, do aborto e do uso de drogas. Apesar do cinza daqueles tempos, os personagens de Glauco abordavam os temas pesados com humor ácido, como na tira em que um prisioneiro está sendo interrogado por quatro brutamontes e fica calado, até que um deles berra: "Qual foi o idiota que arrancou a língua dele?"

Geraldão, mais conhecido integrante da galeria de personagens do cartunista, é um consumidor inveterado de drogas, solteiro, virgem e que mora com Geraldão, originou-se Geraldinho, que nada mais é que a infância do primeiro, viciado em refrigerantes, televisão e sorvete, que ataca a geladeira e inferniza a vida da mãe. Foi em Geraldão que Glauco deixou a marca definitiva de seu trabalho. Trata-se de uma síntese narrativa que faz o personagem ter de três a quatro braços, todos ocupados para definir a urgência e o desequilíbrio da personalidade. Invariavelmente, Geraldão trazia mais de uma seringa espetada pelo corpo, na testa ou no nariz. O efeito da síntese, conseguida em três quadros, é de que se precisaria de mais espaço para narrar a situação. Em alguns momentos, Geraldão aparecia com quatro pernas em movimento, imagem que remete aos desenhos animados.

Das suas outras criações - que abordam os mais variados tipos urbanos - também destacam-se: a tarada secretária Dona Marta, que se acha a mais gostosa do planeta e canta qualquer um, desde o chefe até o boy; os Neuras, casal que passa a vida discutindo a relação; Zé do Apocalipse, um profeta que acredita ser o porta-voz da "nova era" e vive pregando suas ideias subversivas; Edmar Bregmam, corruptela de Ingmar Bergman, cineasta que nunca terminou um filme e abastece o set de filmagem com maconha; Doy Jorge (referência a Boy George), roqueiro que não deu certo, sempre envolvido com drogas pesadas; E Nojinsk, que encimado em seu tapete mágico, vende camelos, odaliscas e haxixe, e é sempre confudido com um terrorista. Nessa tira em especial, o texto nunca está presente e é uma demonstração do absurdo poder de síntese de Glauco, que também experienciou certa fama ao trabalhar com parceiros. Ao lado dos artistas Angeli e Laerte, ele fez história com a série Los Três Amigos (Laerton, Angel Villa e Glauquito), uma referência ao filme Três Amigos, mas que também lembra os três personagens underground dos Freak Brothers, de Gilbert Shelton.

A outra persona de Glauco, desconhecida do grande público, foi aquela do curtidor da literatura esotérica de Carlos Castaneda (A Erva do Diabo7), que o fez se interessar pelos ensinamentos da Rosacruz, Eubiose e teosofia. Já por meio do escritor Alex Polari, Glauco tomou contato inicial com o daime, uma bebida alucinógena feita da folha de chacrona e do cipó mariri. Foi ali que o artista encontrou a luz que mudaria a trajetória de sua vida: fundou a Céu de Maria, uma igreja daimista no bairro do Butantã, São Paulo, e logo angariou centenas de seguidores. Tempos depois, adquiriu um amplo terreno em Osasco e aumentou a sede da igreja. Para lá, todos os fins de semana, se deslocavam centenas de seguidores e pessoas que queriam largar o vício em drogas. Entre eles estava Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, um freqüentador eventual. Na madrugada de 12 de março, o rapaz procurou Glauco dizendo ser Jesus Cristo e, após agressões, alvejou ele e seu filho Raoni com quatro tiros de pistola. O desfecho do último cartum da vida de Glauco, definitivamente, se concretizava sem final feliz.