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Renascido no Rock and Roll

Por Ben Fong-Torres Publicado em 15/12/2010, às 16h15

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<b>RECONQUISTA</b> Paul McCartney e o Wings em Fort Worth, Texas, em maio de 1976, na primeira turnê norte-americana do ex-beatle desde 1966 - RICHARD E. AARON/GETTY IMAGES
<b>RECONQUISTA</b> Paul McCartney e o Wings em Fort Worth, Texas, em maio de 1976, na primeira turnê norte-americana do ex-beatle desde 1966 - RICHARD E. AARON/GETTY IMAGES

Bom, com toda a certeza, soa bem rock and roll, mesmo que seja o Wings. Jimmy McCulloch, ex-Thundercap Newman, e Denny Laine, ex-Moody Blue, esquentam as guitarras. Joe English, ex-nada, é um êxtase na bateria explosiva. Linda McCartney, ex-fotógrafa, dedilha um amontoado de teclados e é responsável por todos os efeitos sonoros que nós aprendemos a amar nos álbuns do Wings. E Paul McCartney, ex-beatle, conduz a banda toda, mais uma seção de metais de quatro peças que adiciona gingado e emoção. Ele navega no baixo enquanto Laine e McCulloch fornecem o peso; no piano, ele batuca "Lady Madonna" e "Live and Let Die", de volta ao baixo, ele berra, buscando um pouco daquela inspiração de Little Richard, em "Beware My Love" e "Letting Go". E, depois de um número especialmente encorpado e com batida marcante, ouve-se um grito de Laine ou de McCartney: "Rock and roll!"

E o Wings recebe toda a reação do rock: gente no meio do público de repente ergue o braço com o punho fechado para fazer sua saudação, cortando o ar com assobios agudos, soltando gritos de alegria para comemorar cada uma das cinco músicas dos Beatles que são oferecidas, soltando pedidos de bis ferozes, iluminados por fósforos e isqueiros. Esta é a primeira turnê de Paul McCartney pelos Estados Unidos desde 1966, quando ele ainda era um "você-sabe-o-quê". Junto com John, George e Ringo, ele deve ter detestado o público, as tempestades berrantes de calcinhas molhadas que choveram em cima deles em todos os lugares, do Shea Stadium (em Nova York) ao Candlestick Park (em São Francisco). Agora que a falência da Apple, a separação dos Beatles, os processos e as fofocas ficaram quase totalmente para trás, McCartney se pega retomando os velhos tempos, convidando as pessoas a bater palmas e bater os pés, acenando e posando para o público que está atrás e do lado do palco. Mas aqui nos Estados Unidos, em 1976, poucos tentam invadir o palco; o esquema de primeiros socorros permanece sem uso; os seguranças acabam abaixando o volume do rádio para poderem ouvir melhor o show. Os únicos berros remanescentes da beatlemania se fazem ouvir no começo, quando McCartney emerge da escuridão. A música que ganha os gritos - uma manifestação absoluta, aliás - é a mais calma entre todas as dos Beatles...

Sábado, 8 de maio: no piso principal do Olympia Stadium, em Detroit, Michigan, um lugar bem malcuidado, um rapaz fica gritando para as pessoas a sua frente se sentarem. Estávamos no set acústico, com Laine, McCulloch e o casal McCartney acomodados em cadeiras de palha, exceto Linda tocando violões. Depois de algumas canções, Paul McCartney fica sozinho no palco e se prepara para "Blackbird". O sujeito na plateia - parece que ele viu o primeiro show na noite anterior - está com jeito de saber o que está por vir. "Sentem!", ele berra. "Sentem, seus porras!" Então ele se vira para um amigo e explica a urgência de seu pedido. O tom de voz abaixa para o tom de conversa e ele soa racional: "Eu quero ver 'Yesterday'", ele diz.

"Se você quer os Beatles, vá ver o Wings. George Harrison, novembro de 1974"

Paul mccartney não se incomoda de retomar "Yesterday", mas hoje ele está empenhado em dois objetivos: a aceitação do público e da imprensa do Wings como banda e não como apoio para um ex-beatle e o reconhecimento por parte dessas duas mesmas instituições difíceis de que o Wings (e Paul) é rock, não pop. Mas McCartney tem algumas dificuldades. Em primeiro lugar, ele foi um Beatle; isso ele não pode mudar nem negar. E ele não faria isso, de todo modo. "Eu sou fã dos Beatles", ele diria mais tarde. "Quando John estava dizendo, há uns dois anos, que era tudo porcaria, que era só um sonho, eu sei do que ele estava falando, mas, ao mesmo tempo, eu estava lá sentado, pensando: 'Não foi assim'. Era um sonho, tanto quanto qualquer outra coisa é; tanta porcaria quanto qualquer outra coisa é. Na verdade, era menos porcaria do que um monte de outras coisas." E ele concorda com a equação que Harrison faz em relação ao Wings: "Eu não colocaria apenas assim. Eu diria que, 'se você quer o Wings, vá ver o Wings; se quer os Beatles, assista a um filme antigo'. Mas eu provavelmente tinha a cabeça mais voltada para o trabalho dos Beatles do que o resto. Eu costumo ligar para as pessoas e dizer: 'Vamos trabalhar agora' ou 'vamos fazer isto'. Então, suponho que seja justo dizer que isto já estava mesmo na minha bagagem e eu simplesmente continuei fazendo a mesma coisa. Já George... Ele só fez uma faixa em Sgt. Pepper, ele não apareceu para muitas outras coisas, porque realmente não estava muito interessado. Eu continuava muito interessado". Segunda dificuldade: McCartney é bonitinho. E, aos 33 anos, não exibe nenhum dos sinais que facilitariam - digamos, por exemplo, que o rosto está mais cheio... Mais carnudo... Arredondado pelos anos. Mas, com pouquíssimas exceções (se forçar um pouco, Peter Frampton e Suzi Quatro vêm à mente), pessoas bonitinhas não têm tanta credibilidade quanto roqueiros angustiados, cheios de raiva e com muita cerveja na cabeça.

Outra dificuldade é que McCartney compõe, canta e produz à maneira do pop. Não que ele queira fazer assim: "Estamos tentando fazer com que soe o mais pesado possível", ele diz. "Mas, às vezes, não dá para conseguir no estúdio a mesma coisa que se consegue ao vivo." Além disso, ele é homem de família - casou-se em 1969 com Linda Eastman, que adotou seu sobrenome. Ele não fica exatamente louvando a mulher, mas ela está lá nas capas dos discos, e está lá no palco. As filhas (Heather, 13 anos, de seu primeiro casamento; Mary, 6; e Stella, 4) costumam ir junto nas turnês do Wings, e esta aqui é organizada em parte para atender a situação familiar. A família McCartney, os integrantes da banda e os auxiliares mais próximos localizam-se em quatro cidades-base (Dallas, Nova York, Chicago e Los Angeles) e viajam a partir delas para as apresentações (31 shows em 21 cidades), a bordo de jatinho particular. Isso economiza em hotel, aeroporto e o desgaste geral, e mantém a família junta. Mas um fotógrafo que está acompanhando a turnê considera essas idas e vindas limitantes. "Até agora estou fotografando imagens arquitetônicas, mais prédios. Eles não saem muito, para dizer a verdade", ele diz.

E, finalmente, nada - nenhuma nova banda que ele seja capaz de criar - pode concorrer com os Beatles. Disso ele sabe bem e, como aconselhou com muita paciência a um jovem repórter da rede de televisão NBC: "Talvez isto aqui não seja os anos 60, mas nada mais é os anos 60, a não ser os livros de história. Estamos nos anos 70, e é bacana e está rolando. E é só que... aproveite bem". McCartney e a mulher e a banda aguentaram seis anos de críticas e mal-entendidos. Eles se consolam apenas com os compradores de discos e músicas como "Hi Hi Hi", "My Love", "Helen Wheels", "Jet", "Band on the Run", "Junior's Farm", "Listen to What the Man Said" e "Letting Go" venderam milhões. Isso sem mencionar sete álbuns, cinco com o nome de Wings. Mas o sucesso comercial - o maior e mais consistente entre todos os ex-beatles - não basta. O músico diz que ignora as críticas: para cada golpe, ele explica, tem alguém que adora as coisas dele. Ele se refestela lembrando aos repórteres como o crítico Richard Goldstein destruiu Sgt. Pepper. Mas ele não é casca grossa, de jeito nenhum, a ponto de escrever "Silly Love Songs", uma resposta ao desprezo por sua música, como se fosse só bobagem pop. E Linda há muito tempo é maltratada, relegada à posição de uma groupie que tirou a sorte grande em seu tempo de fotógrafa na cena do Village e do Fillmore, em Nova York. Como musicista e integrante do Wings, foi desprezada como uma... sortuda - e dá para entender por que ela fica na defensiva.

Na passagem de som antes do primeiro dos dois shows em Detroit, Linda me mostra os teclados dela, instrumentos que aprendeu a tocar depois de se casar com McCartney. Em cima do piano elétrico estão um sintetizador ARP e um mini-Moog, que ela toca na abertura de "Venus and Mars". Botões estão marcados como "controladores", "banco de oscilação", "mixer", "hora da decadência" e "modificadores para a hora do ataque". E se isso já não é bastante confuso, aqui, de frente para o público, está o Mellotron, carregado com loops em fita que são ativados por chaves de apertar. Alguns momentos mais tarde, em uma conversa com Denny Laine, a hostilidade de Linda se apresenta (e não pela primeira vez). Estamos falando de "Silly Love Songs" como uma reação à crítica. "A gente reage a ela", ela diz. "Mas eu preferiria viver sem isso. Eu tinha uma vida sem isso antes, e achava bem legal. A gente recebe críticas na escola. Quando sai da escola, quer ser livre." Laine completa: "Nós somos críticos muito bons de nós mesmos. Não precisamos de todos esses desocupados para vir aqui nos dizer: 'Ei, cara...'" Eu ouso dizer que o processo deles parece ser um tanto insular, sem espaço para reverberação nem opiniões de fora. "Nós sempre sabemos o que está errado", diz Linda. "Em cada álbum, sabemos o que deu errado." Laine completa informando que, durante as sessões de gravação, sempre há amigos que aparecem por lá e dão suas opiniões. "Então, nós conhecemos muito bem a nossa posição." Laine conversa conosco mais um minuto a respeito do Wings e dos resquícios da beatlemania: "O principal a nosso respeito é que desejamos ser capazes de trabalhar no palco sem muita adoração, se é que você me entende. Preferimos trabalhar para conquistá-la". Segundo ele, boa parte do público ainda reage por reverência a um beatle. "Eles ficam embasbacados, sabe, com Paul. E isso é meio que um saco."

Domingo, 9 de maio: paul McCartney acaba de chegar a Toronto, vindo de Nova York, e disparou, em uma das cinco limusines de costume, para a área de backstage no Maple Leaf Gardens. São 18h20; o show está marcado para as 20h e ele tem marcada uma cerimônia de entrega de disco de platina e de ouro pela Capitol Records/EMI do Canadá, entrevistas com a CBC-TV, duas estações de rádio, um jornal de Toronto e a Rolling Stone. E ele precisa jantar. Mas a passagem de som apressada em Detroit estragou o primeiro show lá, e ele não vai permitir que isso aconteça novamente. Ele sai do Cadillac Fleetwood, olha ao redor, pergunta para a pessoa mais próxima onde fica o palco e se dirige para lá.

Vestido com o modelo que sempre usa fora do palco - camisa com estampa havaiana berrante, com a barra escapando por baixo de uma jaqueta de couro curta, calça jeans não desbotada e sapato com sola de borracha - ele salta do baixo para os teclados para as guitarras para a bateria, batendo freneticamente, até perder uma baqueta. Então ele se ocupa atrás da mesa de som para checar outros microfones e instrumentos. Ele trabalha meticulosamente e, quando termina, são 19h20. A Capitol e os entrevistadores estão esperando desde as 17h, mas Paul parece sinceramente despreocupado. Depois de um intervalo de dez minutos e um papinho com o empresário, ele faz um sinal para que nós entremos no camarim, para uma entrevista em ritmo acelerado que se estende até o minuto em que ele precisa se trocar e vestir as roupas de palco, um terno preto com lantejoulas nos ombros. Ele mastiga uma coxa de frango frita e agita as mãos de maneira expressiva e livre para enfatizar certos pontos.

Começamos com a reclamação de Laine - a respeito de a platéia reagir mais por adoração a Paul do que por apreciação da música. "Não acho que isso aconteça tanto agora", ele diz. "Acho que é isto que esta turnê está fazendo. Talvez eles tenham vindo um pouco assim - e não se pode fazer nada em relação a isso - mas, nesta turnê, todo mundo diz, no backstage, depois do show: 'Viemos aqui e estávamos esperando uma coisa, mas na verdade é muito diferente'. Acho que as pessoas se pegam começando a olhar para Denny e Jimmy e Linda e Joe e pensam, 'Bom, não é o que eu esperava'."

"Na década de 60", ele prossegue, "no principal período dos Beatles, havia berros o tempo todo. E eu gostava disso na época, porque era a característica do período. Eu costumava achar que aquilo era meio parecido com um jogo de futebol. As pessoas só vinham para torcer, a torcida se transformava em berros quando traduzida por garotas. As pessoas costumavam dizer: 'Ah, mas que chatice, porque assim ninguém consegue escutar a sua música'. Mas em parte do tempo era bom que ninguém conseguisse porque... sabe como é, era muito difícil tocar parte do tempo, e qualquer banda da época pode atestar isso." As respostas de McCartney saem facilmente, ele se acomoda nelas, estica as frases, parece inconsciente de toda a agitação a seu redor. "Eu achei que, quando fosse sair em turnê de novo, talvez fosse vergonhoso se as pessoas ficassem escutando em vez de berrar. David Essex fica falando todo animado sobre o público britânico."

McCartney abre um maço novo de cigarros - a marca é Senior Service -, acende um e prossegue: "Existe uma sensação de que eu deveria me incomodar se as pessoas vêm para me ver como um Beatle. Mas eu realmente não me importo. Elas vêm me ver; eu não descarto isso. Não importa por que vieram, o que importa é o que pensam quando voltam para casa. Não tenho certeza, mas fico com a sensação de que elas saem pensando: 'Ah, bom, é uma banda'. Assim elas se acostumam. Acho que a imprensa, a mídia está um pouco atrasada no tempo, pensa demais nos Beatles. E acho que a garotada sai bem mais animada do show do que a crítica que vai ler no dia seguinte".

A imprensa, no entanto, parece estar entrando no clima. Em diversas manhãs seguintes, resenhas falaram sobre a descoberta dos críticos: de que o Wings é uma banda de rock and roll. O The New York Times esteve presente à primeira apresentação, em Fort Worth, e o classificou como "com um bom acabamento de impressionar, mas vigoroso" e mais "ousado" do que era de se esperar. A Newsweek parece ter esquecido que o Wings tem uma pilha de seis discos de ouro e declarou: "Paul McCartney tinha provado que era capaz de vencer sozinho". "A ideia toda por trás do Wings", diz McCartney "é ter uma banda de turnê. Então, nós somos só uma banda, e não o mito todo dos Beatles". Mas, por mais que ele deseje ser apenas integrante de uma banda, e por melhor que a banda seja, a maior parte do público está ali para ver um homem só. Dá para ver pela explosão de f lashes de câmeras em todo o auditório quando chega o momento de McCartney ficar sozinho no palco. E pela explosão subseqüente detonada pelo pessoal que deseja captar o momento de fato em que McCartney canta "Yesterday". O Wings é um grupo de músicos de talento, principalmente com Laine e McCulloch. Mas os Beatles passaram a ser considerados gênios no estúdio. Fico imaginando se Paul sente falta dos outros três como tábua de ressonância. Ou será que Linda e Denny tinham razão quando disseram que eles sempre sabiam "o que deu errado" em cada álbum? Ela sente falta dos Beatles, sim, diz. "Não sei sobre a parte da genialidade, mas, sim, acho que os Beatles eram uma coisa bem igualitária... É, eu costumava me preocupar um pouco mais com isso, meio que dizendo a Linda: 'Olhe, eu sei que Denny é bom, mas ele ainda não está bem acostumado comigo. Será que eu vou ter coragem de oferecer este riff a ele? E se ele recusar?' Existe certa reserva. Mas, de novo, você consulta o seu oráculo interior e ele lhe diz que, bom, é o tempo que faz isso. Não dá para pegar um bebê e fazer com que tenha 14 anos da noite para o dia. Agora todo mundo está respondendo um pouco melhor. Então eu só agradeço às estrelas da sorte por ter permanecido."

Mas a democracia, como McCartney sabe, tem seu preço. "Você está abrindo a porta a outras possibilidades, e, na verdade, foi meio isso que acabou com os Beatles. A liberdade para as personalidades fazer. Eu comecei um grupo, eu coloquei a minha mulher nele, levei as crianças para a estrada, só porque é assim que eu me sinto." A imagem da família McCartney não parece incomodar nem afetar qualquer outro integrante da banda, mas McCartney parece sensível em relação a seus efeitos sobre o público do Wings e sobre a imagem da banda. O público, ele diz, é "mais ou menos a faixa etária que vai a shows - a garotada - e, conosco, ela se estende para gente mais velha que ouvia os Beatles e que continuou direto. E acho que temos um pouco de público-família, porque a maneira como Linda e eu vivemos é bem certinha, de certo modo. Então acho que as pessoas talvez se identifiquem por terem filhos e por criá-los mais ou menos da mesma maneira - meio que liberal, tipo um jeito de 'agora', e não..." Paul parece momentaneamente acanhado. "Parece horrível, não é mesmo?"

Surpreendentemente, o público é, como Paul observou, o normal de um show de rock, tem mais cadeiras de roda do que carrinhos de bebê e nenhuma cesta de piquenique nem um paletó esporte à vista. E ninguém parece se perturbar com o fato de que o líder do Wings não está à solta, como Robert Plant ou Roger Daltrey ou Mick Jagger parecem estar. E mesmo que sejam casados, eles não exibem a esposa no palco consigo. "Eu costumava pensar nisso quando nós nos juntamos, com Linda no grupo. 'Ah, agora chega de groupies! Todo mundo vai achar que nós somos os maiores velhos caretas - droga! Casados! Meu Deus, a gente podia pelo menos só morar junto ou algo assim - então seria um pouco moderno.' Daí você percebe que não faz diferença. As pessoas realmente vêm mesmo por causa da música. No começo, parecia estar lá em cima com a esposa e não só com amigos ou pessoas associadas ao jogo. Mas acho que o legal é que parece fazer parte de uma tendência, de todo modo, em que as mulheres estão participando um pouco mais, as famílias são um pouco mais bacanas do que eram. As coisas mudam."

Já passam das oito agora. Ficou decidido que o show começaria por volta das 20h30. A Capitol e a imprensa local continuam esperando. Paul coloca tudo de lado com um abano da mão. Ele tinha dito a um assessor de imprensa que queria fazer esta entrevista do jeito certo. Ser um homem de família, ele vai dizendo agora, não afetou sua maneira de compor. McCartney, afinal de contas, sempre foi o lado mais suave e mais pop dos Beatles. "Ainda penso basicamente os mesmos tipos de coisas que costumava pensar; a única diferença é que vou fazer uma canção domo 'Mary Had a Little Lamb' [um dos primeiros singles do Wings], mas esse é o tipo de coisa que as crianças exigem. Limitações? Talvez. O único tipo em que consigo pensar é talvez em não ser... Muito viajandão. Mas componho canções basicamente da mesma maneira, que é de qualquer maneira. Geralmente, é mais quando eu tenho um minuto de folga, mas isso pode acontecer de várias formas diferentes. Quando estou sem fazer nada... fico com vontade de tocar violão, sai uma música. É como sempre foi."

Um ano e um inverno atrás, outro ex-beatle saiu em turnê e, para ser gentil, fracassou. George Harrison tinha maturidade, sinceridade e as melhores intenções a seu lado. Ele apreciava os Beatles e seu papel no fenômeno, disse, mas tinha crescido, mudado, e não queria ficar vivendo no passado. E, para mostrar a todo mundo como ele sentia tudo isso com firmeza, ele fez um show de duas horas e meia, pontuado por música indiana. Ele cantava quatro músicas dos Beatles, mas só aceitou a ideia depois do incentivo ativo dos colegas músicos na turnê. Ele trocou a letra de três das quatro músicas dos Beatles, e os novos arranjos (junto com a voz cansada e rouca de George) as transformaram em coisas que mal se assemelhavam às canções que tantas plateias queriam escutar.

Paul e Linda foram à apresentação de Harrison no Madison Square Garden, Paul disfarçado com uma peruca afro, óculos escuros e bigodão de morsa. "E nós adoramos", ele diz. Ele concorda que George Harrison tinha todo o direito, apesar do preço a pagar junto à crítica, de dizer: "Eu sou assim agora". Segundo McCartney, as pessoas têm uma certa atitude em relação aos Beatles. "Tinha uma moça de férias e nós conversamos com ela. Ela é uma garota britânica média mesmo, e ela meio que resumiu a visão que tinha dos Beatles: uns carinhas de Liverpool, adoráveis, animadinhos, cantando músicas fofinhas... E daí drogas! E eles todos enlouqueceram com as drogas. E esse foi o fim da história para ela. Bom, isso é meio bobo. E acho que tem muita gente que chega para os shows novos com essa atitude. 'Ah, bom, eles na verdade não podem ficar ali, se já foram os Beatles.' Você simplesmente tem que dizer: 'Bom, eu sou assim agora, desculpa aí, pessoal'. Sgt. Pepper foi uma grande mudança em relação ao álbum anterior a ele. Era o que nós éramos na época. Então acho que George simplesmente está aceitando tudo com muita naturalidade e dizendo: 'Este sou eu'."

McCartney já disse que não quer começar a criticar Harrison, mas o produtor que existe dentro dele finalmente vence a batalha: "Se eu fosse o produtor e o empresário dele naquela turnê", ele diz, "ia pedir para cantar mais canções pelas quais ele era conhecido. E também para se ater ao arranjo um pouquinho". McCartney assume expressão benevolente. "E, a isso, ele provavelmente diria, 'Vai cagar', e boa sorte para ele." Mas ele completa: "Eu compreendo a atitude dele, totalmente". Nas primeiras turnês do Wings - um negócio limitado, a bordo de um ônibus, que passou por universidades britânicas em 1972, com um braço europeu maior em 1973 -, "nós fizemos a mesma coisa. Nada de Beatles. Vou dizer a verdade: era doloroso demais. Era um trauma enorme. Cantar uma música dos Beatles era mais ou menos como reviver um sonho bizarro. Um dos caras que nos promoveram naquela turnê européia disse: 'No fim, você devia chegar com um violão e fazer 'Yesterday'. Eu pensei: 'Ai, meu Deus, eu não consigo encarar'. Porque tinha um monte de sujeira no ar, sabe? Nós passamos um tempo brigando, tinha muita gente nos envenenando um contra o outro, principalmente um homem que deve permanecer anônimo". O homem em questão, é claro, era Allen Klein, que passou a ser o empresário de John, George e Ringo em maio de 1969, por cima das reclamações de McCartney. À medida em que as tensões no estúdio cresciam, à medida que a Apple ia desmoronando, à medida que Ringo, John e Paul anunciavam ameaças de separação, McCartney desconfiava que Klein estivesse pegando mais do que deveria do dinheiro da Apple. No primeiro semestre de 1970, para agir contra Klein, ele foi obrigado a processar a Apple - e os outros Beatles em si - pela dissolução do grupo. Depois de vários anos difíceis, os anos da sujeira, Lennon, Harrison e Starr, junto com outros envolvidos com a Apple, entraram com um processo em Londres contra Klein, por "fraude", por pegar "comissões excessivas" e por "má administração" generalizada dos clientes. Klein, por sua vez, entrou com processo, em Nova York, contra os três ex-beatles, Yoko Ono e a Apple, pedindo mais de US$ 63 milhões em danos e em ganhos futuros; Klein acusou McCartney de fazer parte de uma "conspiração" para prejudicar ou ferir a ele e sua empresa, buscando ressarcimento de danos de US$ 34 milhões mais juros. O julgamento em Londres contra Klein está marcado para começar em janeiro do ano que vem. McCartney espera passar longe do julgamento, ele diz, mas pode cooperar com seu testemunho - "qualquer coisa que possa ajudar, só quero que a cabeça de todo mundo fique limpa, para seguir em frente com a vida". O contraprocesso de Klein, segundo McCartney, "é um velho truque de empresário: a melhor forma de defesa é o ataque. O que ele está fazendo é ridículo. Mesmo para ele. Devia simplesmente seguir em frente com a vida e pensar: 'Bom, caramba, eu tenho as masters antigas dos Stones, eu tenho isto'. Ele tirou meio milhão da empresa, então ele tem um pouco de dinheiro, sabe? Mas só está tentando ficar lá para provar uma questão. É um pouco... para mim, é bem parecido com a coisa de Nixon, de 'eu disse que era bonzinho, e vou provar, diabos'". Sem as pressões entre ele e os outros, McCartney viu que as músicas voltaram. "A gente pensa, bom, são ótimas canções, eu gosto dessas canções. Quando nós as tocávamos, ficávamos meio nostálgicos, pensando: 'Ah, isto aqui é legal, não é?' Então eu simplesmente cheguei à conclusão de que, no fim, não era um problema assim tão grande. Resolvi cantar."

Na verdade, McCartney só faz uma música a mais do que George fez em sua turnê. Ele também queria abafar a identidade de beatle (a turnê se chama "Wings over America" e o nome de McCartney não aparece nas entradas nem nos anúncios). Ele escolheu as músicas aleatoriamente, diz; rejeitou "Hey Jude" simplesmente porque "não parecia certa", e em vez disso selecionou uma canção tocada em turnês passadas, mas nunca gravada, uma jam roqueira chamada "Soily". Mas a diferença entre Harrison e McCartney é a lealdade dos acordes de Paul, de modo que a seção de metais faz uma impressão verossímil de um violoncelo em "Yesterday", e "Lady Madonna" tem andamento alegre, e "The Long and Winding Road" e "Blackbird" saíram quase direto dos discos. Ele só se desvia em "I've Just Seen a Face", tocada em uma guitarra Ovation de 12 cordas, com a voz do casal McCartney e de Laine se misturando em um estilo meio folk.

Em Toronto, os boatos de que a banda voltaria a tocar junta corriam. Na hora do show, cambistas bem felizes vendiam ingressos a US$ 50 e US$ 60 cada um, enquanto lá dentro equipes de filmagem de lugares tão distantes quanto Londres estavam com as câmeras prontas sobre seus tripés. Desde o primeiro show no Texas, havia um papo de que os Beatles, que tinham voltado a ser amigos, talvez apresentassem uma música juntos. Em Nova York, onde Lennon mora, um rumor parecido persiste. E, em Londres, "Yesterday", o single, lidera um pacote de duas dúzias de reedições dos Beatles que invadem as paradas pop. "Nós poderíamos nos juntar para fazer alguma coisa, mas eu sempre fico achando que vai ficar meio capenga." Em resposta à oferta de um promoter norteamericano de algo entre US$ 30 milhões e US$ 50 milhões por um show dos Beatles, McCartney disse a um repórter que não participaria de um evento assim apenas por dinheiro. Agora, em Toronto, ele qualifica a observação. "A verdade é muito corriqueira. A verdade é só que, desde que nos separamos, não temos nos visto muito. Nós nos visitamos de vez em quando, ainda somos amigos, mas não temos vontade de levantar e voltar a tocar juntos. Não dá para dizer isso às pessoas. Você diz isso e elas falam: 'Mas que tal este dinheiro aqui, então?' E você acaba tendo que pensar em motivos por que não quer fazer aquilo. E, é claro, cada um deles, analisado separadamente, não é verdade, mas uma resposta se fazia necessária, então eu disse que não faria só por dinheiro, de todo modo. E, da última vez que estive com John, ele disse: 'Eu concordei com aquilo'. Mas há um milhão de outros pontos ali. Um milhão inteiro de ângulos diferentes."

"Vou dizer, antes desta turnê", ele continua, "eu fiquei com vontade de ligar para todo mundo e dizer: 'Olhe, é verdade que a gente não vai mais voltar a tocar junto? Porque nós todos achamos que não. E se eu conseguisse escutar de todo mundo: 'Não, definitivamente, não', então eu poderia dizer que não vamos mesmo. Mas eu sei que eu sinto, e acho que sei que os outros sentem, de certo modo, que não queremos fechar uma porta para nada no futuro. Quem sabe vamos gostar da ideia algum dia."

"Mais uma vez, conversando com John antes da turnê, eu estava dizendo para ele: 'Bom, você vai assistir ao show no Madison Square?' Ele respondeu: 'Bom, todo mundo meio que está me perguntando se eu vou. Será que eu devo ir?' E eu respondi: 'Ai, meu deus, mas que chatice, hein? Você nem pode sair para ver o nosso show'. Então, há outros envolvimentos. Se alguém for, sente que precisa ir ao palco. E, se for, nós vamos ter que ser bons. Não dá para ir ao palco e ser só mais ou menos, porque daí vão dizer: 'Os Beatles foram uma bomba na turnê do Wings', ou algo do tipo, Então, veja só quanto tempo eu demorei só para responder a esta pergunta. Meu deus, não acaba nunca. Então, dá para ver por que eu só quis dizer não." E, no entanto, McCartney não consegue simplesmente fechar a porta. "Não falamos mais sobre o assunto", ele diz. "Se John estiver disposto a comparecer naquela noite, beleza, vamos tentar fazer com que suba ao palco. Vamos fazer tudo na boa, sem grandes produções. Vamos ver o que acontece."

Agora são 20h30, os integrantes do Wings estão todos vestidos para o palco e já deviam estar lá em cima, Em vez disso, estão em uma sala do andar de cima do backstage. Ali, eles conseguem lisonjear os executivos da Capitol Records/EMI do Canadá, apertando muitas mãos, aceitando seis discos de platina e de ouro, posam para uma fotografia, dão algumas risadas e pedem desculpas por precisarem sair correndo - tudo isso em três minutos. Mas, no fim, todo mundo fica feliz. Os entrevistadores locais ainda estão em compasso de espera; foram informados de que, depois do show, o Wings vai ter que ir embora rápido porque o jatinho precisa ter decolado da pista até a meianoite para atender a uma regulamentação que proíbe barulho depois de certo horário, Então, eles não têm planos para passar tempo nenhum com McCartney.

Mas, depois do show, Brian Brolly, o empresário, reúne os repórteres locais e faz com que entrem às pressas no camarim, pedindo desculpas por todo o caminho. Eles só vão ter uns dois minutinhos corridos. McCartney, de volta às suas roupas do dia a dia, cumprimenta todos e parece relaxado e interessado. Parece que ele também quer fazer isso direito. Ele mostra um quadro que um amigo fez dele e Linda, e então uma dúzia de perguntas são feitas: a respeito de raízes musicais, da primeira vez que Linda viu Paul (Beatles, Shea Stadium, 1966) e, é claro, os boatos sobre o reencontro dos Beatles em Toronto. Brolly fica agitado e limpa a garganta e o recinto ao mesmo tempo, e o casal McCartney sai correndo para dentro de sua limusine e vai embora cantando pneu. Do lado de fora, um aglomerado de fiéis acena para eles e apresenta uma ovação modificada. Não é exatamente a wingsmania, e também não é, de jeito nenhum, a beatlemania. Mas com toda a certeza tem jeito de rock and roll.