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Força indomável

Longe das piscinas, Rebeca Gusmão se diz injustiçada. Mesmo depois de muitas quedas, ainda luta para voltar a ser reconhecida: no esporte e, acima de tudo, na vida pública

Por Gustavo Silva Publicado em 11/05/2011, às 15h21

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PATRICK GROSNER
PATRICK GROSNER

O compromisso estava agendado para as 15h, e o relógio já indicava 15 minutos de atraso. "É impossível encontrar uma vaga por aqui neste horário", ela reclama, antes de avistar um espaço vazio. Não está desocupado sem motivo - é uma curva em que outros veículos contornam rumo à saída do estacionamento. Decidida, ela resolve parar ali mesmo. São mais alguns minutos até encontrar o prédio onde está localizada a Administração Regional de Brasília, equivalente à prefeitura da cidade. Depois de explicar à recepcionista o motivo de estarmos ali, chega a hora de efetuar o cadastro para a entrada. "Nome?", a atendente pergunta. "Rebeca Gusmão."

A atendente sorri de modo efusivo, como se estivesse honrada com a presença da visitante. Ela pede uma foto para ficar registrada no sistema, agora não com a falta de empolgação de quem apenas realiza o próprio trabalho e sim com a jovialidade de uma admiradora. Cerca de uma hora depois, não soa estranho que a mesma recepcionista avise na saída: "Sua foto vai ficar aqui, viu?", em tom de quem conta agora com um tesouro a ser invejado.

O nome Rebeca Gusmão tornou-se maior do que a pessoa - o que quer dizer muita coisa em se tratando de uma mulher com 93 kg distribuídos em 1,78 m. Como atleta olímpica, Rebeca foi a esportista mais comentada da natação feminina brasileira na década passada - não apenas por sua performance nas piscinas. Profissional das águas desde os 12 anos, ela tem no currículo três jogos Pan-Americanos (Winnipeg, Santo Domingo e Rio de Janeiro), uma Olimpíada (Atenas, em 2004) e campeonatos que variam de prefixo, indo de municipais a mundiais. Saldo da carreira: cerca de mil medalhas; viagens por todos os continentes; recordes sul-americanos; dois escândalos de doping; um processo criminal; suspensões e, por fim, o banimento definitivo da natação.

O assunto a ser tratado no prédio municipal, contudo, não tem nada a ver com esportes, ao menos não diretamente. "Vou ver se ele me dá uma força", explica Rebeca, referindo-se à reunião com Messias de Souza, atual administrador (ou prefeito, na linguagem do resto do país) de Brasília. Ambos são parceiros de partido político. Rebeca candidatou-se ao cargo de deputada distrital pelo PC do B nas eleições de 2010, mas fracassou. Tenta, agora, um cargo por indicação, mas também por méritos próprios: o objetivo é criar (e assumir) a subsecretaria de esportes de alto rendimento (quando o esportista se especializa em uma modalidade, visando competir por seu país).

A reunião ocorre a portas fechadas. Rebeca usa jeans, sandálias, camisa branca e algo que ninguém ali consegue notar: o maiô de natação. Usa-o porque horas antes estava na academia, onde nadou durante cerca de 1h30. Mas, naquele momento, o traje tem valor simbólico: uma segunda pele ou, no mundo da fantasia, o uniforme de um super-herói. Ela é, naquele momento, uma espécie de Peter Parker real: esconde sua identidade (de nadadora) por trás de uma roupa social, e embora queira se libertar para viver essa identidade, uma série de teias sociais (e legais) a impede. Vive como uma cidadã comum - inclusive com as mesmas dificuldades financeiras que afetam o herói da ficção.

"A grande diferença entre nadar e meditar é: nadar faz você pensar muito", Rebeca filosofa, após finalizar mais um dia de treinamentos na piscina de uma academia em Brasília. São 5 mil metros na água, parte dos quais são cumpridos em um exercício de 30 minutos sem pausas. Observar a atividade tem um quê de tédio, que não combina com o estilo explosivo da nadadora que fez carreira como velocista, disputando provas de 50 e 100 metros. A intenção agora não é mais superar limites, mas algo mais simples: perder peso. Os 93 kg de hoje eram os 103 de um mês atrás e serão 83 em um futuro não muito distante.

A natação, aliada a uma pesada rotina de treinamentos, moldou um corpo que impressiona visualmente. Os músculos não são hipertrofiados, mas bem definidos. Uma das tatuagens, duas linhas do salmo 91, em latim ("Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido"), ocuparia as costas inteiras de uma modelo esguia se transferida nas mesmas proporções.

O universo de Rebeca é rodeado de termos que deixam explícita sua grandeza física, que vão dos apelidos (Kong, Muralha, Gigante) ao patrocinador pessoal, a bebida energética Mamute. Os esportes que vieram depois da natação - futebol e levantamento de peso - também seguem no ritmo da força e explosão muscular. Por trás do corpo de colosso, porém, esconde-se uma alma cujos prazeres - maquiagens, vestidos, idas ao salão - e medos (baratas!) são eminentemente femininos. São detalhes conhecidos apenas por um círculo restrito de família e amigos. "Essas pessoas conhecem a Rebeca mulher. Às outras pessoas, que não são desse ciclo, interessa a Rebeca atleta", ela afirma, categórica. "A atleta é uma pessoa competitiva, focada, mais séria, sempre tem uma consideração maior. A Rebeca pessoa é meiga, amiga, carinhosa, que gosta de conversar, de ser companheira", ela mesma define-se. "As únicas características que eu tenho em comum, atleta e pessoa, são as minhas medalhas."

À frente do gravador, é a primeira personalidade que prevalece. Já ao celular, as ligações atendidas por interjeições açucaradas como "mamãe", "painho", "papi" e "pixuquinho" - esta última destinada ao marido - dão contornos adolescentes à Rebeca mulher, reforçados por aspectos visuais como as espinhas no rosto e o piercing com um pequeno dado na orelha.

Não é, no entanto, a imagem de uma Rebeca delicada, incapaz de matar baratas, que ronda o imaginário popular. Divulgado em setembro de 2007, um exame antidoping realizado durante o troféu José Finkel (Santa Catarina), em maio de 2006, apontou positivo para testosterona exógena (não produzida pelo organismo). Dois meses depois, a Federação Internacional de Natação (Fina) tornou público o resultado de outro exame, dessa vez realizado durante os Jogos Pan-Americanos do Rio, que também apontava positivo para a mesma substância.

Os episódios, em conjunto com as imagens que comparavam o físico de Rebeca em tempos distintos - 1999 e 2007 - foram suficientes para a opinião pública declará-la culpada. Cada um dos casos, julgados em períodos diferentes de 2008, rendeu uma suspensão de dois anos à nadadora. O acúmulo das punições teve o desfecho previsto pelas regras da Fina: o banimento definitivo da modalidade, ratificado em novembro de 2009 pela Corte Arbitral do Esporte, a mais alta instância da justiça desportiva mundial.

"O que fizeram comigo foi uma tremenda injustiça. Enquanto eu tiver recursos, vou seguir em frente para provar minha inocência", diz Rebeca. Seus argumentos são fundamentados em provas e contraprovas científicas, e em desvios de conduta do laboratório canadense onde seus exames foram realizados e dos profissionais envolvidos no processo. Os documentos oficiais estão sendo digitalizados e colocados aos poucos no site de Rebeca. Faz parte da diplomacia pessoal da esportista não citar nomes, mas um não escapa: Eduardo de Rose, membro do Conselho de Fundação da Agência Mundial Antidoping (Wada) e diretor do departamento Antidoping do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).

"Em relação ao meu caso, ele se mostrou completamente arrogante, sem ética profissional. As atitudes dele mostravam que ele tinha algo contra mim", ela desabafa, com um tanto de rancor, amparada por declarações à imprensa dadas pelo médico no fim de 2007, quando ele dizia que "tinha de pegar a Rebeca". "A primeira pergunta que meu advogado fez a ele na Suíça, em julgamento, foi se ele deu as declarações nos jornais, e ele negou, disse que foi invenção da imprensa." Os procedimentos adotados no caso levantaram a desconfiança de pessoas ligadas diretamente a ele, como a médica Renata Castro, da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), que pediu seu próprio afastamento da instituição. "Ela me disse: 'Rebeca, eu prefiro sair a saber que ajudei a estragar com a vida de alguém'", relembra a ex-nadadora.

Discutir os casos de doping não altera sentimentos em Rebeca. A entonação na voz muda em certas passagens da história, mas nada que deixe sentimentos de raiva, tristeza ou melancolia explícitos. Pelo contrário: quanto mais se abre ao público, mais ela tem a certeza de que muda a visão das pessoas sobre si própria.

Uma dessas pessoas foi o delegado Marcos Cipriano, uma das figuras principais no caso que mais mexe com os brios da esportista. Em uma noite de novembro de 2007, uma reportagem no Jornal Nacional noticiou que Rebeca poderia pegar de um a cinco anos de prisão por falsidade ideológica por ter supostamente fraudado os exames antidoping no Pan-Americano do Rio - dois DNAs diferentes foram confirmados nos resultados. Após conceder um depoimento de mais de cinco horas, Rebeca diz ter convencido o delegado com seus argumentos. "Eu ouvi da boca dele: eu acho que você é inocente", ela diz.

No âmbito jurídico, o caso foi finalizado em agosto de 2009 com a absolvição de Rebeca. O juiz do caso deu voz à defesa, para a qual as amostras de urina para o exame foram trocadas indevidamente de frasco, sem a presença da atleta ou de qualquer pessoa de sua confiança. Por outro lado, o escândalo da troca de urinas levou a Organização Desportiva Pan-Americana a cassar as quatro medalhas que a nadadora havia ganhado no Pan de 2007 - uma de bronze, uma de prata e duas de ouro, as primeiras da história da natação feminina na competição.

O maior estrago daquela reportagem, contudo, foi causado no ambiente familiar. "Liguei para meus pais, que estavam no Recife", ela recorda, evidenciando um ódio até então inédito no tom. "Quando consegui falar com meu pai, pedindo para não deixar minha mãe assistir ao jornal, eu conseguia ouvir o choro dela ao fundo." A possibilidade de ter uma das três filhas atrás das grades foi o suficiente para que a mãe entrasse em um período de depressão do qual ainda se recupera. O modo como o caso foi tratado, ela acredita, também colaborou para que a avó morresse no ano passado, devido a problemas no coração. Vem daí um ressentimento de Rebeca com a mídia, manifestada em declarações que geram bordões fantásticos, como "dono de jornal e revista vai tudo pro inferno - pode ser católico, espírita, crente, pode pedir perdão, o que for, mas não tem jeito" ou "jornalista e advogado são profissões do diabo".

Ironia, já que uma grande parcela do futuro de Rebeca estará na mão de advogados. Ela estuda processar uma infinidade de pessoas por calúnia e difamação ("Já tenho documentos, várias coisas que servem como prova"). Outro caso jurídico já está em andamento, na Suíça. A ex-atleta olímpica quer rever a decisão dos tribunais e retirar o "ex" de perto do seu nome, quando o assunto é a antiga carreira de nadadora. O resultado do processo, que deve sair até meados de 2012, será o último capítulo de um projeto iniciado há algum tempo: uma biografia, cujo título, Gigante pela Própria Natureza, ela carrega tatuado em seu bíceps. E adianta: "Só vou terminar de escrever quando eu tiver um final feliz".

Voltar a nadar profissionalmente - ou ser novamente uma esportista olímpica, a honramor que reconhece para si mesma - não faz mais parte dos desejos imediatos de Rebeca Gusmão, independentemente do veredicto que obtiver na justiça suíça. Ancorada no ceticismo de quem se diz perseguida por "interesses maiores", ela teoriza que "fazer um esporte individual é muito complexo, porque envolve muita coisa, muito interesse de clube grande". "O esporte, hoje, é uma guerra de interesses, política - é tudo, menos esporte. É business." Suas declarações são envernizadas de uma certeza inabalável, introduzidas por expressões do quilate "é como eu digo" ou a variação "é como eu falo". Mais do que um mecanismo de autodefesa, ela sabe que tudo o que cerca sua história pessoal precisa ser deixado o mais claro possível, porque ela, mais do que ninguém, tem a consciência de que nem tudo é o que parece.

Um exemplo desse exercício: Rebeca sofre de ovários policísticos. Entre os sintomas da síndrome, estão a produção em excesso de testosterona e intervalos maiores (ou ausência) da menstruação. Ainda no campo fisiológico, foi constatado, por meio de exames, que a idade óssea de Rebeca não acompanha sua idade biológica. Em termos práticos, isso representa mudanças físicas bem peculiares: "Quando eu tinha 19 anos, cresci dois centímetros", ela explica, sendo esta a mesma idade quando teve a segunda menstruação na vida - a primeira veio aos 16 anos. O metabolismo da atleta também é diferenciado, para efeitos diversos - ela perdeu 10 kg no último mês apenas com exercícios aeróbicos, mas viu a panturrilha crescer sete centímetros desde que começou a jogar futebol. Por um lado, "técnicos dizem que tenho o corpo que qualquer atleta gostaria de ter". Já médicos afirmam, segundo a própria, que ela "é um enigma da medicina". A conclusão pessoal: "É por isso que eu falo: você julgar alguém é muito fácil. Agora você conviver, querer saber por que ela é assim, ninguém quer saber".

Isso, claro, quando a lógica sozinha não cumpre o papel de persuadir. Até o momento, Rebeca gastou mais de R$ 100 mil em processos jurídicos. "Se eu fosse culpada, jamais teria gasto metade desse dinheiro", raciocina. O sofisma, no caso, reverbera nas urgências da vida real. "A minha vida financeira mudou radicalmente. Hoje vivemos praticamente da renda do meu marido." Gutemberg Amaral, do alto de seu 1,90 m, é cantor de ópera e trabalha como regente de um coral em Brasília. O salário do último mês, contudo, não foi depositado. Pelo celular, Rebeca teve de apelar ao pai os R$ 900 do aluguel do apartamento nada ostensivo na capital federal.

Decisões simples, mas não fáceis, norteiam o futuro da atleta. Amaral, a quem conheceu na escola ("Ele foi meu professor na 7ª série") e com quem está casada há quatro anos, tem planos de mudar para o Rio de Janeiro. Ela, por sua vez, deseja terminar neste ano a faculdade de educação física em Brasília. Há, ainda, o sonho de ter filhos- plano em inércia até que a estabilidade financeira seja atingida. Para tal, Rebeca corre em busca do primeiro emprego com carteira assinada. Logo deve constar em seu currículo outra experiência: corretora de imóveis.

O esporte, por sua vez, já não tem mais o peso em sua vida como antes. O que não quer dizer que ela ainda não se dedique - e atraia a atenção - por suas práticas esportivas mais recentes.

"Comecei no futebol como uma terapia", relembra sobre o início da nova carreira, em 2008. De lá para cá, passou por três clubes em Brasília, alternando em competições de campo e salão. Com medo de lesões mais graves pela combinação peso versus desgaste, optou por se concentrar apenas nas quadras. Pivô, tem vocação para artilheira no time atual, o UniCEUB (Centro Universitário de Brasília), onde cursa como bolsista o último ano da faculdade. Além de marcar gols, auxilia na função de atrair a marcação. "Geralmente, vêm umas duas, três meninas para tentar roubar a bola de mim, e aí tem sempre gente livre no nosso time." Uma ou outra adversária arrisca lhe dar pontapés, mas ela não se estressa. "Eu sou tranquila, não me meto em confusão."

Só um tipo de situação faz Rebeca perder a cabeça: quando mexem com sua família, que é grande em todos os sentidos - só por parte de mãe, são 13 tios, com todos na média de 1,70 m. Na falta de filhos, adota o de uma irmã e dos cunhados como "minhas crias". Uma sobrinha de 3 anos já usufruiu dos privilégios de ter a tia em um momento exaltado. "Ela queria ir ao parquinho do restaurante e uma outra menina não deixou ela brincar." Diante da situação, tia "Beca" interveio e foi tomar satisfações com a criança: "Você vai sair daí, sua pirralha mimada! Quero ver se você não sai daí. Sua chata!"

Explosões de fúria mais intensas são canalizadas para o levantamento de peso. De cinco torneios disputados - alguns dos quais sendo a única participante feminina - desde dezembro de 2009, Rebeca saiu vitoriosa em todos. O atual recorde sul-americano pertence a ela, capaz de erguer 150 kg. A meta para 2011 é chegar aos 200 kg. A adversária a ser batida é a xará americana Rebbeca Swanson, dona do recorde mundial (272,5 kg), com quem deve se encontrar em um campeonato em novembro, em Dublin ou em Las Vegas. "É muita ousadia esse recorde", ela admite, com a voz resignada de quem nunca irá chegar a essa carga - menos por seu físico e mais pelo estresse inerente ao esporte. Aqui, o inimigo é outro: o próprio supino. "Você sabe que se aquele negócio cair em cima de você, você morre."

Rebeca sempre soube aproveitar as virtudes do corpo para se dar bem em tudo o que praticou. A força física, seu maior triunfo, mostrou-se pouco útil na atividade política. Por outro lado, descobrir pelas próprias experiências que "esporte é política" a calejou para os vícios do exercício pleno do segundo, que exerceu quando se candidatou à deputada distrital no DF, no ano passado. "Decidi me candidatar muito tarde, no último dia, um mês antes de começar a campanha", ela aponta como uma das causas pelos 437 votos que conseguiu. "E, mesmo durante minha campanha, muitas pessoas quiseram me prejudicar."

Uma dessas pessoas tem nome: Durvalina Maria, que entrou com um pedido no Ministério Público Eleitoral para barrar a candidatura de Rebeca. O órgão acatou o pedido, baseado na Lei Ficha Limpa, que veta candidatos "excluídos do exercício da profissão por decisão do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional". O caso foi julgado pelo TRE-DF e o parecer foi favorável a Rebeca, por cinco votos a quatro. "A gente sabe quando alguém é um 'laranja'", Rebeca diz sobre Durvalina, uma ilustre desconhecida. "Com certeza, foi algum candidato que, por se sentir ameaçado, pagou para alguém ir lá fazer a denúncia." Apesar da experiência (positiva, na sua visão), Rebeca não acha que a população a puniu nas urnas por sua carreira na natação.

"Hoje, meus sonhos, meus objetivos, são outros. Mas são outros porque eu não posso fazer o que eu amo", diz, envolta pelo roupão oficial da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos. Rebeca não sabe se um dia voltará a nadar - mas sabe como se sente, e dá a pista de como deverão se sentir aqueles que vierem a ser novamente seus adversários. "Sou como um leão que ficou enjaulado por tempos sem ser alimentado", define.

Depois de mais uma manhã de treinos na piscina, Rebeca está com fome. Na cantina da academia, pede a opção mais simples: arroz, feijão, fritas, frango grelhado, alface e tomate - por questão de um ovo, o prato não faz parte da sua lista de preferidos. Em meio a conversas triviais sobre música ("Sou eclética, gosto de tudo um pouco") e cinema (é fã da saga Harry Potter), a inconfundível música do Plantão da Globo explode na televisão. A emissora interrompe a programação e a nossa conversa.

Imagino a morte de alguém importante - mentalmente, penso no ex-vice-presidente José Alencar. Rebeca, por sua vez, vai além: "Vai ver que acharam o Ulysses Guimarães", o político morto em um acidente de helicóptero em 1992. Estamos errados. O locutor divulga que o (agora ex-) presidente do Egito, Hosni Mubarak, anunciara a renúncia do cargo que exerceu por quase três décadas.

"Viu só? Quando o povo se une, consegue o que quer", ela analisa, com um ar lacônico em sua reflexão. Nas entrelinhas, percebe-se que o comentário tem menos a ver com política e mais como um desabafo pessoal às avessas - enquanto milhares derrubaram um homem, ela é apenas uma (cuja vontade comum une duas personalidades, de atleta e mulher) na luta contra a percepção de milhares e um sistema implacável que a mantém distante das águas. A esperança de Rebeca é a de promover sua própria revolução.

"Eu posso estar com 70 anos, mas eu sei que ainda vai aparecer uma pessoa que vai mostrar tudo, vai esclarecer", diz. "Vai ter alguém que tenha um senso de justiça e de honestidade e vai falar 'não, peraí, tá errado isso aqui'."