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Arquitetura da Destruição

Intimidações armadas, desapropriações truculentas e incêndios suspeitos se tornam as ferramentas da desenfreada especulação imobiliária para banir as favelas de São Paulo

Por Ana Aranha e Maurício Monteiro Filho Publicado em 16/06/2011, às 10h35 - Atualizado em 30/12/2011, às 01h38

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Indio San
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"Quando nóis fiquemo sabendo, nem fiquemo acreditando. Mas a família confirmô." Quando Gilsicleide dos Santos fala, com o corpo apoiado no batente da porta, suas frases soam como versos do sambista paulistano Adoniran Barbosa. Mas, na guarda da entrada de seu barraco, um dos últimos a cair na demolição de parte da favela Real Parque, sua voz não apresentava melodia. No intervalo das marretadas, o único som que se ouvia vinha dos passos apressados pelas vielas. Em um fluxo calado, moradores sem camisa carregavam colchões e estrados de cama na contramão de funcionários com marreta na mão, uniforme e capacete, contratados para derrubar mais uma favela no centro financeiro da Zona Sul de São Paulo. O ar estava carregado de pó e o entulho dos barracos já demolidos se misturava a cadernos de escola, sofás rasgados e sapatos sem sola. Crianças desbravavam as ruínas de quartos e cozinhas, mas nem elas faziam barulho. Habituada a discussões de vizinhos por causa dos raps ou funks no último volume, a favela de onde Gilsicleide resistia em sair estava, enfim, em silêncio.

Essa é a segunda vez que a história de Gilsicleide remete à "Saudosa Maloca", não só na ausência de plurais da narrativa, mas em seu conteúdo. Em 2005, ela já havia assistido à demolição de sua casa na favela do Jardim Edite. Foi quando recebeu a notícia com espanto, aquela em que só acreditou quando a família da vítima confirmou: um de seus vizinhos havia morrido debaixo dos entulhos. Seu Mané, como era conhecido, era carroceiro e tentava tirar um pedaço de latão dos restos de um barraco quando uma parede caiu sobre ele. A empreiteira pagou pelo caixão.

"Ele estava bêbado", é a explicação dada ao caso por Elisabete França, superintendente de habitação popular da Secretaria Municipal de Habitação, logo depois de garantir que nunca um morador saíra ferido das ações de remoção. A prefeitura contrata a consultoria Ductor para fiscalizar as normas de segurança. A empresa não deve ter notado que, nos últimos dias do prazo para a saída do Real Parque, uma família com três crianças ainda morava no 2º andar de um sobrado que tinha sua estrutura abalada pela derrubada das paredes do primeiro andar.

Na visão da prefeitura de São Paulo, descaracterizar a fachada das casas vazias é o procedimento para impedir que outras pessoas reocupem o lugar para exigir a compensação financeira. Mas nem sempre o funcionário contratado para fazer o serviço tem o cuidado necessário com as famílias que ainda estão lá. Em um caso específico, um funcionário excedeu na marreta e pegou um quarto ainda habitado por um casal. Em outro, os moradores tiveram de tomar a marreta das mãos do operário. "Ele estava no andar de cima de um sobrado e batia com tanta força que as paredes do térreo começaram a rachar", diz o vizinho, que correu para evitar a briga. "Tive que pegar a marreta da mão dele e fazer eu mesmo: bati de leve no entorno da janela. Eles fazem de propósito para intimidar quem não saiu." Ainda dentro de sua casa, que também estava com as paredes rachadas e já não tinha água ou luz, esse morador estava decidido a ficar até o último dia da remoção.

Remoção, aliás, é uma palavra banida pela prefeitura paulistana. "Quem acha que a gente faz remoção é um ignorante de pai e mãe. A gente não desaloja ninguém. A gente constrói para eles", diz o secretário da habitação Ricardo Pereira Leite. Ele afirma que, de todas as famílias que moram nas favelas em processo de urbanização, 90% ficam na mesma casa, que é reformada. "Só saem quando estão em área de risco. Nós ajudamos as pessoas. Remover, nunca. Essa palavra está proibida." Qual seria, então, o termo adequado para o momento em que as famílias têm de sair de seus barracos? "Eu chamo de upgrade", ele responde. "Eu chamo de ganhar na loteria", completa Elisabete.

Se a visão da Secretaria sobre o assunto for precisa, pode-se dizer que as famílias que ocupavam 17 barracos da favela do Sapo (localizada na Zona Oeste de São Paulo, entre as pontes do Limão e da Freguesia do Ó) ganharam na Mega-Sena acumulada. Em 10 de fevereiro, as moradias foram derrubadas com o suporte de um verdadeiro aparato de guerra: tratores e integrantes da Guarda Civil Metropolitana e da Tropa de Choque da Polícia Militar. Segundo o vereador Carlos Néder (PT), a ação ocorreu sob o pretexto de respeito ao meio ambiente. Como a favela se localiza às margens de um córrego que deságua no rio Tietê, a remoção seria uma exigência do programa Córrego Limpo, conduzido pela Sabesp, que pretende reverter a degradação desses cursos de água.

Mas, de acordo com relatos, a estratégia de choque e terror não ficou a cargo das forças policiais presentes no local. Durante toda a semana que antecedeu a derrubada dos barracos, um funcionário a serviço da Secretaria, Francisco Evandro Ferreira Figueiredo, visitou a favela, armado e coagindo os moradores. Evandro é terceirizado da empresa BST Transportes, que foi contratada pela prefeitura, fato confirmado por Elisabete. Era ele quem coordenava as ações naquela quinta-feira de fevereiro, agindo com truculência contra quem contestasse a derrubada das moradias, como um autêntico jagunço.

Evandro não foi localizado pela reportagem para comentar o caso. Mas, segundo Néder, a própria Elisabete França explicou, durante uma reunião para discutir a situação realizada na sede da Secretaria, qual era sua função exata no despejo. "Segundo Elisabete França, Evandro foi contratado para derrubar as casas, para tirar as pessoas da favela", atesta o vereador. "Ela falou isso na frente de dezenas de testemunhas. É um absurdo que a municipalidade use a violência, a intimidação e a truculência como uma praxe administrativa", completa.

Ao fim da operação, que foi interrompida devido à pressão popular, os entulhos dos barracos demolidos acabaram empilhados dentro do córrego, em pleno auge da temporada de chuvas na capital paulistana.

Aquela não era a primeira vez que moradores da favela do Sapo viam suas casas se tornarem escombros. Já em 2009, a urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia adequada, constatou o medo e a desorientação dos moradores do local após uma rodada de remoções. Ela chegou a manifestar sua preocupação em uma carta enviada a Elisabete França. "Pelo que pude verificar durante minha visita, as maiores vítimas do conflito que ali se instaurou são mulheres e crianças. De forma geral, a população pareceu-me bastante assustada por desconhecer os projetos exatos da prefeitura para aquele local, assim como por desconhecer os planos para sua remoção", escreveu ela em 23 de agosto de 2009. Na resposta, a Superintendência de Habitação Popular declarou reconhecer a importância da denúncia, mas também afirmou que, com "a divulgação da notícia de intervenção na área (...), a favela sofreu uma invasão que fugiu dos padrões". No entender do órgão, o interesse desses novos moradores era "furar a fila das prioridades estabelecidas nos programas da prefeitura de São Paulo".

A lógica faz algum sentido, porque, a rigor, as famílias não são exatamente despejadas - como aconteceu com Mato Grosso e Joca, personagens da canção de Adoniran Barbosa. Não chega a ser um bilhete premiado, mas eles saem com direito a R$ 300 ou R$ 400 mensais para alugar outra moradia enquanto a prefeitura constrói o prédio definitivo. A promessa é que, quando ficar pronto, as famílias terão direito a financiar um apartamento no local. Para a Superintendência de Habitação Popular, foi visando o benefício que muitas famílias instalaram seus barracos na favela do Sapo. No entanto, a própria Secretaria assume que esses valores são insuficientes. O destino certo para as pessoas que dispõem dessa verba, numa cidade cara como São Paulo, será outra favela.

Quando saiu do Jardim Edite, Gilsicleide dos Santos e seu marido não acreditaram na promessa do apartamento financiado. Abriram mão da oferta para receber R$ 8 mil pelo barraco. Eles não se arrependem, já que, seis anos depois, a construção ainda não começou.

Foi a prefeitura que fez a mudança da família dela do Jardim Edite para o Real Parque, em 2005. Em 2010, quando a assistente social bateu a sua porta para dizer que aquela era uma área de risco, ela disse: "De novo, fia? Até quando vou ficar com vocês me mandando de um lado para o outro?" Em fevereiro, o caminhão da prefeitura levou seus pertences para a favela de Paraisópolis, onde Gilsicleide aluga atualmente um quarto e cozinha com o valor do aluguel social.

O périplo da família pelas favelas da Zona Sul, financiado pela prefeitura de São Paulo, é um espelho dos descaminhos da política de planejamento urbano da capital mais rica do país. A secretaria gasta, por mês, R$ 4,5 milhões com o aluguel para famílias que aguardam a construção de prédios. Existem, hoje, 15 mil famílias recebendo esse benefício na cidade. São Paulo tem 800 mil famílias morando em favelas e assentamentos precários, o equivalente a um terço da população da capital.

De acordo com Raquel Rolnik, a política habitacional levada a cabo pela prefeitura é "uma máquina de produzir novas precariedades". "São Paulo está vivendo em função do desenvolvimento", ela avalia. Megaeventos como a Copa do Mundo e grandes obras de infraestrutura, como o Rodoanel, são responsáveis por remoções e despejos realizados sem nenhum respeito. "Às vezes, as famílias acabam em bairros piores, a 30, 40 quilômetros de suas moradias originais, quando o correto é que a condição nova seja sempre melhor", critica.

Seguindo o rastro dessas grandes intervenções urbanas, é possível cravar no mapa da cidade onde estão os maiores conflitos por habitação. E, para Raquel, em grande parte dos casos, essas regiões coincidem com as áreas de maior valor no mercado imobiliário.

O caso do Jardim Edite é emblemático nesse sentido. A pressão da especulação imobiliária é uma das principais forças enfrentadas pelos moradores da área. Na esquina das avenidas Jornalista Roberto Marinho e Engenheiro Luís Carlos Berrini, centro financeiro da cidade, a favela era vizinha do hotel Hilton (onde ficou hospedado o ex-presidente norte-americano George W. Bush, em 2007) e da central de jornalismo da TV Globo. Segundo a urbanista Mariana Fix, que acompanha o caso desde o início, o metro quadrado da região valia US$ 100 há 30 anos. Hoje, o valor chega a até US$ 4 mil. Em seu livro Parceiros da Exclusão, ela afirma que os investimentos na ponte estaiada Jornalista Octávio Frias de Oliveira (vista obrigatória a partir dos escombros dos barracos do Edite) e na retirada da favela seguem mais a lógica de estímulo ao mercado imobiliário do que uma real demanda da cidade de São Paulo.

Desde quando começou a negociar a saída dos moradores e a construção dos prédios no mesmo local, o líder da associação dos moradores, Gerôncio Henrique Neto, recebeu propostas de imobiliárias para que abrisse mão da militância pelo terreno. "Eu não quis nem ouvir o que tinham a oferecer. Meu compromisso é com os moradores", diz ele. Nas negociações com a prefeitura para a remoção, diferentes valores foram oferecidos. "Em 2001, era R$ 3 mil pelo barraco ou rua. Subiu para R$ 5 mil para quem quisesse voltar para seu estado de origem. Depois, ofereceram um apartamento na periferia ou R$ 8 mil. Eu não aceitei. A lei diz que temos direito a um apartamento no mesmo lugar onde moramos."

A briga dele, agora, é para garantir que o projeto não sofra alterações por causa da pressão imobiliária. No projeto original, havia dois terrenos. Em um deles, estão os prédios para moradia popular; no outro, uma área de lazer, uma escola e o posto de saúde. Recentemente, o projeto foi adaptado para caber em apenas um terreno, onde a área de lazer foi colocada no teto da escola e do posto de saúde. Segundo Gerôncio, a alteração foi feita sem um acordo prévio com os moradores. Elisabete admite que a mudança realmente ocorreu. "Outros proprietários desse segundo terreno ganharam o direito de receber pela desapropriação e isso encareceria muito os valores do projeto", ela explica.

O Real Parque fica a cerca de 1 quilômetro do Jardim Edite, só que do outro lado do Rio Pinheiros. Entre eles está a ponte Jornalista Octávio Frias de Oliveira, construída com o dinheiro da Operação Urbana Água Espraiada, a mesma que financia a urbanização do Jardim Edite. O projeto, que prevê construção de três prédios com 240 apartamentos, uma escola e um posto de saúde, custou R$ 43 milhões. A ponte custou R$ 260 milhões. Inaugurada em 2008, virou o novo cartão-postal da cidade e, de quebra, serve como cenário de fundo para os telejornais da TV Globo.

A ponte só não serve para o filho de Gilsicleide ir para a escola. Depois que a família fez a primeira mudança, o menino de 13 anos passou a fazer longas caminhadas para estudar, pois o colégio ficou do outro lado do rio. Embora cravada entre as duas favelas, a ponte foi feita apenas para carros e motos. Impedido de fazer o caminho reto de 1 quilômetro, ele tinha de voltar mais de 1 quilômetro até a ponte vizinha, atravessá-la, e caminhar a mesma distância do outro lado. Agora que a família está em Paraisópolis, são 8 quilômetros para chegar à escola. O jeito é passar por baixo da catraca do ônibus.

Em 2010, se o problema já parecia distante de qualquer solução definitiva, um fator veio literalmente incinerar a possibilidade de diálogo. Enquanto em 2008 e 2009 o número de ocorrências de incêndios em favelas era inferior a 80, de janeiro a setembro do ano passado, a cifra pulou para 95. E, em 2011, o corpo de bombeiros já registra 99 casos. Muitos acontecem em áreas que passam por litígio ou urbanização.

A remoção dos moradores do Real Parque foi precipitada pelo fogo que queimou 354 casas em setembro passado. Os focos se alastraram pela área onde já havia negociação para remoção dos moradores. "Essa é a história do Real Parque", diz um mestre de obras que mora no local há mais de 30 anos e não quis se identificar. "Aqui tem projeto de urbanização desde 86, mas eles só conseguem tirar os moradores depois que acontece um incêndio." O primeiro foi logo antes do então prefeito, Paulo Maluf, começar a construir os prédios do Projeto Cingapura, em 1992. "Foi uma boa ajuda para convencer o pessoal que não estava querendo sair, né?" Depois, em 2007, outro incêndio ocorreu em um terreno que estava em litígio com o proprietário. As pessoas que perderam suas casas foram para um alojamento provisório. O mesmo lugar em que, depois de tentativas de negociar a saída dos moradores, houve o incêndio de setembro do ano passado. "Ninguém pode provar nada. Mas quem está aqui há muitos anos, como eu, desconfia."

O modo como o fogo começou e foi combatido levantou ainda mais suspeitas. O primeiro foco foi de madrugada e os próprios moradores o controlaram. Às 9h20, o fogo voltou, em um ponto distante do inicial. "Foi criminoso, temos certeza", diz uma moradora que perdeu a casa. Ela afirma que os bombeiros demoraram mais de uma hora para comparecer e, quando chegaram, estavam com pouca água. Outros moradores relatam que as mangueiras estavam furadas e as pessoas tiveram de trazer roupas para tentar conter os vazamentos. Alguns dizem ainda que os bombeiros não tentaram conter o fogo, apenas controlaram para que ele não se alastrasse além daquela área. O corpo de bombeiros não respondeu ao pedido de entrevista.

Na noite do incêndio, os moradores não tinham onde ficar. Alguns conseguiram pouso nas casas de parentes e vizinhos. Para os que ficaram na rua, o socorro veio do tráfico. Foram os gerentes do tráfico de drogas local que deram a ordem: os moradores com garagem em casa deveriam tirar os carros para receber as famílias desabrigadas. Por duas semanas, o tráfico distribuiu comida em quentinhas para as famílias desabrigadas e leite achocolatado para as crianças.

Mas, algumas semanas depois, veio a conta. Ao perceber que a devastação do fogo serviria para a prefeitura começar as obras de urbanização, o tráfico começou a fazer ameaças. Eles seriam contra a construção dos prédios, pois, com a regularização das ruas e a entrada de funcionários públicos e polícia, poderiam perder o ponto com localização privilegiada. Espalhou-se a ameaça de que as famílias que pegassem o aluguel teriam o mesmo destino de uma jovem dependente de crack que tentara roubar algumas casas durante o incêndio - ela foi espancada até a morte. A ameaça se estendeu aos líderes locais que negociavam o projeto de urbanização com a prefeitura. O resultado foi o esvaziamento do conselho que representa a comunidade nas reuniões com a Secretaria de Habitação.

Apesar de não reconhecer o aumento de casos de incêndio em assentamentos precários, a prefeitura determinou a criação da Câmara Executiva de Prevenção e Combate a Incêndios em Favelas, justamente para evitar que o problema se alastre. A iniciativa será desenvolvida em 50 comunidades e envolverá 21 subprefeituras.

Em um domingo ensolarado de abril, na região sudeste da capital, dezenas de moradores se reuniram na favela da Paz, localizada nas imediações do Parque Bristol, próximo ao Jardim Zoológico. O tema da reunião era a nova pintura dos barracos ao longo da principal rua da comunidade. As fachadas da via pareciam obra de pichadores nada familiarizados com a evolução da arte urbana nos últimos anos. Em várias delas, lia-se a inscrição "AI", em spray preto sobre alvenaria, seguida de um número. Logo acima, a assinatura que delatava a autoria das pinturas: PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo. Foi assim, com pichações sem qualquer aviso prévio, que os moradores da área souberam que suas casas seriam derrubadas. "AI" significa Auto de Interdição. E os pichadores eram funcionários da própria prefeitura.

Rumores sobre a chegada daquele dia pairavam sobre a comunidade havia anos. Neuza Leocádia estava em casa quando ele bateu à sua porta. Junto com a nova fachada, ela recebeu os documentos referentes à interdição de sua residência e um chamado para comparecer à Secretaria. "Eu estava quieta, mas vieram pichar meu barraco...", diz ela. Agora, vai ser difícil que ela volte a ficar calada. Moradora da Vila da Paz desde 1991, ela integra o comitê da comunidade que dialogará com a prefeitura paulistana.

Neuza e vários líderes de movimentos de moradia coordenam o encontro na rua. Contando com um sistema de som, eles atraem os passantes e combinam a estratégia para lidar com a ameaça de remoção. A principal ação é negar qualquer oferta de dinheiro por parte das autoridades. Quando alguns moradores disseram ter recebido R$ 1.200, a multidão exclamou em coro: "Devolve! Devolve o cheque-despejo!".

O motivo alegado pela prefeitura para a derrubada das casas é o fato de elas terem sido incluídas num mapeamento de áreas de risco feito em 2010, em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas. O órgão identificou 407 regiões da cidade ameaçadas por deslizamentos ou enchentes. E a Zona Sul lidera o ranking, com 176 comunidades na lista. Alguns moradores não reconhecem a ameaça. "Isso aqui não é área de risco. Eu pago água, luz e telefone. Minha casa nunca encheu", diz um deles. Neuza, que mora ao lado de um córrego, reconhece que, quando chove forte, a água sobe bastante. A discordância dela tem muito mais a ver com a questionável estratégia da prefeitura na abordagem do problema.

Para Dito Barbosa, líder da União dos Movimentos de Moradia, o que está ocorrendo pode ser definido como bullying social. "Estão criminalizando a pobreza", afirma. "Até o laudo do IPT, tudo foi feito de forma legal. Mas, daí pra frente, é tudo ilegal, as pichações, a intimidação... Se existe risco, qual o plano de reassentamento? Não se pode aproveitar essa situação pra fazer limpeza social."

Segundo Barbosa, a falta de transparência e debate tem a ver com o que ele chama de "militarização das subprefeituras". "A maioria desses órgãos é controlada por coronéis de postura extremamente conservadora. Essa é a coisa mais grave da repressão aos movimentos sociais", diz.

E alfineta: "Se a prefeitura defende o programa Cidade Limpa, por que picha a casa das pessoas?"