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Apocalipse Norte-Americano

James Ellroy, mestre da literatura moderna, finalizou uma obra sobre a história secreta dos Estados Unidos – uma trilogia tão obscura que ele perdeu a cabeça ao escrevê-la

Por Sean Woods Publicado em 20/07/2011, às 19h54

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<b>NOITE PRETA</b> James Ellroy entrou tão de cabeça no universo noir que quase ficou louco - ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES
<b>NOITE PRETA</b> James Ellroy entrou tão de cabeça no universo noir que quase ficou louco - ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

Em uma manhã em Nova York, James Ellroy, o autoproclamado "Demon Dog" (Cão-Demônio) da ficção norte-americana, está de bom humor. "Parece que o peso de uma vida inteira foi tirado das minhas costas", ele diz, acomodado em um quarto de hotel. "Estou com mais de 60 anos e me sinto como um garoto. Tudo o que eu sempre quis era escrever livros bons pra caralho, ter um par de cachorros e transar com mulheres. O que mais existe? Quer dizer, um bom hambúrguer ajuda, mas..."

Ellroy é mestre em chamar a atenção. Em apenas dois minutos, ele é capaz de passar do autoelogio exagerado ("Sou o Beethoven da ficção criminal") e uma admissão pessoal ("Não consigo fazer nada sem cafeína") para a perversão sem meias-palavras ("Sou um demônio sexual!") e a correção bíblica ("Eu sou filho de um pastor escocês e acredito na privação e na responsabilidade pessoal para com Deus"). Mais conhecido por seu clássico Los Angeles - Cidade Proibida, Ellroy acaba de ser lançado no Brasil - ele vem ao país em julho, para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Sangue Errante, lançado originalmente em 2009, é o último volume de sua trilogia Underworld U.S.A. (Submundo dos EUA). O livro completa sua visão árida e perturbadora dos cânceres que sofreram metástase no coração do império norte-americano de meados do século passado - da baía dos Porcos e do Vietnã a J. Edgar Hoover e Howard Hughes -, vistos pelos olhos das tramoias interconectadas e das empreitadas criminosas de agentes do FBI desonestos, policiais homicidas, mafiosos e assassinos de aluguel.

A obsessão de Ellroy, 63 anos, pelo lado obscuro dos Estados Unidos pode ser retraçada aos traumas bem documentados dos primeiros anos de sua vida: o assassinato da mãe, brutal e não resolvido, o pai irresponsável que morreu pouco tempo depois. Voyeur na adolescência, ele invadia casas de mulheres para roubar lingerie. Mais tarde, Ellroy se livrou do exército e passou os anos seguintes vivendo nas ruas de Los Angeles, viciado em anfetaminas e bebida e preso por roubo. Depois de ficar sóbrio, em 1977, e ganhar a vida como carregador de campo de golfe, ele surgiu do nada como autor campeão de vendas com Dália Negra e O Grande Deserto, com estilo único e brutal que um crítico descreveu como "tão bem cozido que queimou a panela".

Mas, à medida que a fama foi crescendo, a vida pessoal de Ellroy foi ficando mais obscura. Dois casamentos se desfizeram e ele se afundou mais no trabalho - e acabou sofrendo um colapso mental em 2001, durante a turnê de lançamento do livro 6 Mil em Espécie. "Voei alto demais, trabalhei com empenho demais", ele diz. "Coisas malucas reprimidas vieram à tona e simplesmente explodiram na minha cara." Oito anos depois, lançou um livro de memórias chamado The Hilliker Curse (A Maldição de Hilliker). Agora, divulga Sangue Errante, um gigantesco noir histórico que fornece o tom romântico à sua série Underworld U.S.A. Os protagonistas, que Ellroy chama de "os quebradores de pernas da direita", buscam a redenção na forma de uma agitadora esquerdista chamada Joan, criando uma atmosfera parecida com tantos de seus livros: três homens obcecados por uma única mulher no decurso de um texto longo e cheio de sangue.

A trilogia Underworld U.S.A. cobre os anos de 1958 a 1972, o período em que você foi mais marginalizado: sem-teto, viciado. Esta é uma das razões por que você quis escrever sobre a época?

A trilogia deriva inteiramente da leitura do romance Libra, de Don DeLillo, em 1988. É narrado em sua maior parte do ponto de vista de Lee Harvey Oswald, e DeLillo faz dele simplesmente o solitário mais maravilhoso e realizado da história dos Estados Unidos. Também foi a primeira vez que eu vi, em literatura, um sujeito de merda, tão maleável e sem inteligência, ser retratado com tanta empatia e complexidade. Eu percebi: "Mas que merda - esta porra deste livro é tão bom que agora eu não posso escrever sobre o assassina to de Kennedy". Mas daí eu comecei a ver que eu poderia escrever uma trilogia que mapeasse todos os percussores do assassinato de JFK e criar uma infraes trutura humana completa de grandes acontecimentos públicos. Depois da [série] Quarteto de Los Angeles, eu não queria escrever nada que pudesse ser categorizado como romance policial. Eu queria explorar um tema que eu chamo de "pesadelo particular da política pública".

Qual é o pesadelo particular?

O contorno da história norte-americana de 1958 a 63 é icônico e bem conhecido: o surgimento do movimento dos direitos civis, a ascensão de JFK, as merdas repressivas do [diretor do FBI] J. Edgar Hoover, a Máfia, a Crise dos Mísseis de Cuba. Depois, a década de revolução na cultura jovem, o pesadelo contínuo do Vietnã, mais bombas, mais merda maluca da CIA, assassinatos políticos. Nós sabemos disso. Essa é a política pública. Mas quem é que está por aí anotando nomes, fazendo grampos, quebrando pernas, sacudindo as pessoas de cabeça para baixo, ganhando um troco com isso - e sofrendo com a moralidade multifacetada disso? Quem é que vai chegar ao ponto em que não pode mais fazer o que faz, e o que causa a mudança? Esse é o pesadelo particular. Isso é Sangue Errante.

Esta trilogia é muito obscura. Para escrever estes livros, você se prejudicou?

Eu me prejudiquei completamente. Eu passei a habitar a alma desses quebradores de pernas. Eu fiquei com eles do ponto de vista moral e espiritual. Mas Sangue Errante fala sobre a necessidade de haver uma revolução e de mudanças. Este livro vai a um lugar inteiramente diferente do dos outros dois.

Vai mais fundo nas consequências morais da violência e da corrupção?

Isso. Sangue Errante é onde as pessoas que passaram pelas merdas de 1958 a 1968 começam a falar sobre o que tudo aquilo significa. Eu vivi toda essa merda. Eu senti acontecendo ao meu redor, mas (a) eu fiquei detonado até 77, e (b) eu era alheio às coisas em muitos aspectos. Eu nunca fui um cara do rock; sempre fui um cara da música clássica. Nunca fui de lutar pela paz; eu era um direitista que queria mais que você se fodesse. Eu tenho uma visão bizarra da história norte-americana que eu considero viável e que me permite espalhar empatia de modo bem uniforme.

Você acha ingênuo acreditar que (o assassino de John Kennedy) Lee Harvey Oswald agiu sozinho?

Seria um triunfo de lógica espacial e pensamento empírico sobre a imaginação acreditar que algo mais não estivesse acontecendo. Eu olho para a teoria do atirador solitário e penso: "Para mim, não faz sentido moral, histórico nem metafísico, então eu simplesmente vou rejeitar". E, do meu jeito, a história é bem melhor, porra. Então, não vou discutir a respeito do atirador solitário - caguei. E daí? Vá se foder. Quem manda no pedaço? Quem tem a melhor história para contar? Adivinhe só: eu.

Um dos seus personagens, um jovem de direita chamado Don Crutchfield, está tão fora de sincronia com a época, de maneira tão deliberada, que parece uma versão sua ficcionalizada.

Sou eu: um sujeito alto com cabelo bem curto e calça de corte reto no Verão do Amor, perguntando a si mesmo por que não consegue mulher. "Bom, talvez, se você parasse de bater punheta e fosse ouvir rock em vez de Beethoven, quem sabe fosse mais desejável." No livro, Crutchfield não sabe o que fazer no Natal. Ele nunca foi para a cama com ninguém, tem 23 anos e é solitário. Ele gosta de espiar, e tem duas opções: ir à missa da meia-noite na igreja luterana ou ir espiar mulheres negras na região centro-sul de Los Angeles. É um resumo da minha pessoa.

Você ainda tem essas tendências de direita?

Tendências de direita? Eu faço isso para foder com as pessoas. Eu acho que o Bush era um canalha e que foi o presidente mais desastroso dos Estados Unidos em tempos recentes. Eu votei em Obama. Ele é muito parecido com Kennedy - os dois têm orelhas grandes e sorriso contagiante. Mas Obama é um sujeito mais profundo. Kennedy era um sujeito de apetite. Ele queria boceta, hambúrguer, bebida. Jack usava muita droga.

Então por que você ainda parece se identificar com os idiotas de direita que cria?

Eu sou cristão, e os meus livros são histórias de redenção. Eu mostro para você as consequências cármicas de feitos pavorosos. Com mais frequência do que não, eu quero que você adore os meus personagens no final, porque eles transcenderam. Eles encontraram algo maior, mais profundo, com mais força moral do que eles mesmos.

A sua vida foi muito desastrosa durante um longo tempo. Você alguma vez pensou que ia conseguir se dar bem?

Eu sempre buscava sair fora, e tive um período de azar muito pronunciado. Mas, por mais fodido que estivesse, sempre tive fé. E eu adorava dar risada. Eu sempre podia ir para um canto, coçar o saco, bater uma punheta, aplicar um golpe besta, como pedir uma comida em um restaurante e fugir sem pagar a conta. Eu precisava achar o meu caminho no mundo, porque o meu pai era completamente fodido. Eu nunca fiquei puto com isso. Eu nunca me senti daquele jeito: "Aah, eu não tenho família". Eu sempre quis ter família.

Isto é surpresa. Levando em conta os seus livros, é fácil acreditar que você enxerga o mundo como um lugar implacável.

Não, não, eu não sou um misantropo. Sou otimista. Caramba, eu acho que os seres humanos são capazes de evoluir com o tempo. Eu gosto de gente - de um modo distanciado [risos]. Indivíduos que têm proeminência sobre a psique podem se libertar de estados terríveis de existência à medida que o mundo se transforma em merda ao redor deles. E eu escolhi fazer isso.

No seu livro de memórias, The Hilliker Curse, você expressa arrependimento por ter vendido livros ao se aproveitar do assassinato da sua mãe.

Eu era jovem e insensível. Mas agora eu percebo que a minha mãe e eu não somos uma história de assassinato. Nós somos uma história de amor. E a história central que eu tenho a contar é sobre mulheres. Eu sabia que se aplicasse o meu talento e o meu poder cerebral de maneira consciente à personagem da minha mãe, isso me levaria a ser mais receptivo às mulheres de modo geral.

Nas memórias, você também escreve sobre o tesão incontrolável pelas mulheres. Mas, em outro nível, você é muito puritano.

Eu quero mulheres. Mas de um jeito perspicaz, terno. Não vejo o sexo como uma coisa esquálida em seu aspecto inerente - vejo a comercialização da sexualidade e a vulgarização do sexo como algo depravado. Uma coisa santa e sagrada foi desnudada e transformada em algo comum. Nós precisamos voltar a investir no sexo, fazer menos sexo, esperar até o oitavo encontro antes de foder e chupar.

Em Sangue Errante, você parece obcecado com Joan, a ativista judia de esquerda.

Eu escrevi este livro para uma mulher chamada Joan por quem eu estava apaixonado. Foi a primeira vez que eu fiz isso. Comecei a seguir mulheres que se parecem com Joan, de modo involuntário. Daí você anda dez metros e não é ela.

Mas você continua fazendo isso?

Eu acabo recobrando a noção. Com toda a certeza é uma porra de um clique no cérebro.

Você ainda espia mulheres?

Espio. É, eu espio sim. Eu não saio nos feriados. Eu moro em um prédio art déco nos limites de Hollywood. Em um feriado, eu estava espiando uma ruiva de bunda grande. Ela estava fritando hambúrguer, e a blusa dela subia, e ela puxava para baixo. Ela se abaixava bem, e dava para ver a alça do sutiã dela. Daí um amigo meu ligou e disse: "O que você está fazendo, Ellroy? Vem para cá, estamos preparando uma comida". Eu respondi: "Não quero saber de comida; estou espiando. Me deixe em paz, porra".

Você se sente culpado com isso?

Não.

Por que não? Considera isso como uma forma de apreciação?

É, você quer ser salvo. Você é geneticamente programado para a salvação, e as mulheres são os nossos chamarizes para a luz.

E isso não lhe parece estranho?

Eu fui absolutamente feito para ficar em quartos escuros falando com mulheres ao telefone e trabalhando. Um amigo meu ligou há pouco tempo e disse: "Ei, nós temos uma entrada extra para o show do Fleetwood Mac". Mas que porra é essa? Eu prefiro assistir a moscas trepando no Alabama. Eu vivo em um vácuo, de modo que eu posso voltar e viver de maneira mais assídua em bolsões da história norte-americana.

Esse é o segredo do seu sucesso?

Existem grandes escritores por aí, e mais escritores de talento. Eu sou uma máquina de pensar. Eu me vejo como sendo emblemático de vontade e ambição e concentração extremas. Isso me deu uma hiperacuidade. Eu posso escrever igual a um filho da puta, e, cara, eu realmente penso com rigor sobre as merdas e sobre o que tudo significa.

O que o levou ao seu colapso mental?

Eu passei por um período de meses e meses em que estava apaixonado por uma mulher casada que nunca iria abandonar o marido. Eu simplesmente estava rodeado por aquele enorme nada cósmico de merda. É possível dizer que é a questão de não poder ficar com a mulher que você ama. Mas, mais do que qualquer outra coisa, era simplesmente estar sozinho no cosmos e saber que você vai morrer.

Você percebeu que isso ia acontecer?

Era como se a merda de uma vida inteira simplesmente estivesse emanando das palmas das minhas mãos. Estresse físico, trabalho demais, inconsciente fissurado, tédio, desleixo. Energia mental demais em excesso gasta durante anos demais. Ataques de pânico aterradores e episódios horríveis de insônia. Eu simplesmente desapareci. Eu estava muito fora das minhas emoções - a merda rodava dentro de mim a 1.000 RPM. Eu não conseguia segurar nada. E eu não conseguia controlar nada por meio da narrativa. Foi a pior época da minha vida.

Você acabou sendo internado, certo?

É, passei por várias instituições. Uma noite na ala dos loucos em Monterey, uma noite na ala dos loucos em Tucson. Não tinha mangueira de borracha, mas eu estava detonado, o que posso dizer? Antes que eu me desse conta, eu estava de volta ao hotel Beverly Wilshire, batendo punheta na frente de fotos de Anne Sexton - de roupa! Uma poetisa morta! Eu sou ferrado assim! [Risos]

Você aprendeu alguma coisa com o fato de ter perdido a cabeça?

Eu aprendi muito com aquela ruptura. Eu queria escrever grandes livros e ser bom para as pessoas, e me promover sem vergonha. Mas não há nada pior do que uma pessoa ambiciosa sem controle. Alguém que atropela qualquer um, de maneira vergonhosa. Ninguém quer ter algo a ver com gente assim.

Então, isso fez de você um escritor melhor?

Eu quero continuar a escrever livros do caralho, fodões, profundos. Eu sou arrogante, e eu sou medroso. Mas não tão medroso quanto costumava ser. A ruptura levou muito do meu medo embora.