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Em Busca do Tempo Perdido

Aos 40 anos, Alessandra Negrini reflete sobre a passagem dos anos, celebra a nudez, revela angústias e diz que um sorriso na cara é necessário para combater a eterna fama de mulher difícil

Por André Rodrigues Publicado em 03/08/2011, às 21h00

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Daniel Aratangy
Daniel Aratangy

É domingo à noite, e Alessandra Negrini está 20 minutos atrasada. Nosso encontro se dará em um restaurante da moda nos Jardins - há velas acesas em todas as mesas, fazendo com que o ambiente adquira um ar romântico. Sinto o efeito oposto: as sombras na parede e o pesado candelabro no teto indicam mais que estou em uma masmorra, próximo de encarar a forca. Reportagens em outras revistas e depoimentos de colegas jornalistas me levaram a acreditar que em breve estaria diante de Alessandra, a Terrível. Como na história da esfinge, se não decifrasse seu enigma, com certeza seria devorado.

A fama de difícil e inquisidora alimentou um mito em torno dessa atriz de 40 anos, paulistana, criada em Santos. A boataria sobre o lado entojado de Alessandra chegou ao pico há quatro anos, quando protagonizou uma novela das 8 da Rede Globo e pegou logo as duas personagens principais - a gêmea boa (Paula) e a gêmea má (Taís) em Paraíso Tropical, de 2007. Desde então, fez participações em séries, alguns filmes e peças. Como esse tempo longe do centro das atenções teria afetado seu humor? Para enganar a ansiedade, repasso a carreira da atriz e me concentro, como talvez qualquer homem faria, nas cenas em que ela aparece... nua. E são muitas.

Mas Alessandra enfim chega. Toda de preto, jaqueta, bolsa, cabelo, tudo. "Desculpe o atraso... É o trânsito", ela tenta se explicar. Sei que o apartamento que comprou em São Paulo fica muito próximo do restaurante onde estamos, porém nada comento. Ela quebra o silêncio: "É brincadeira! Eu moro aqui do lado", ri como uma garota levada que acabou de pregar uma peça. Mas logo fica séria, afunda o rosto no cardápio e me pergunta gentilmente se quero comer algo. Observo os gestos miúdos, a tranquilidade, e vejo que terei de descobrir se aquele monstro das revistas de fofoca é pura ilusão ou se na verdade Alessandra Negrini enviou uma gêmea boa para dar a entrevista em seu lugar.

Ela havia acabado de voltar de um giro pela Europa, passando pelo Festival de Cannes, onde foi assistir à estreia mundial de seu filme mais recente, O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz - que deve ser lançado no Brasil ainda este ano. Baseado na canção "Olhos nos Olhos", de Chico Buarque, o longa conta a história de uma mulher abandonada pelo marido. "Foi muito difícil. Muito difícil", ela reflete. "Um dia na vida dessa mulher. Você fica muito exposto, né. E se eu errei? Sempre dá uma insegurança." Mudamos de mesa para evitar uma suposta corrente de ar que estaria a deixando ainda mais resfriada. Alessandra pede uma taça de vinho rosé, filé, vegetais na chapa e purê de batata. Como irá confirmar depois, gosta de comer e beber. São prazeres que não sacrifica apenas para manter a boa forma. Além de Abismo..., também aguarda a entrada no circuito de Dois Coelhos, primeiro filme de Afonso Poyart, em que faz uma advogada corrupta. Ela ainda não viu a obra finalizada, mas o trailer indica uma linguagem rápida, com sequências em animação e referências do universo dos quadrinhos para atrair os jovens.

Mas a molecada que atualmente frequenta os cinemas multiplex - e seria o público-alvo de Dois Coelhos - não tem ideia da comoção que os seios de Alessandra Negrini causaram em 1995, quando a minissérie Engraçadinha - Seus Amores e Seus Pecados foi exibida na TV Globo. A personagem de Nelson Rodrigues teve a sua fase jovem interpretada pela atriz, no que foi seu primeiro papel de destaque na televisão. Sua simples presença em cena fazia homens uivarem de desespero. Com um olhar sedutor, provocava, espezinhava e atormentava até mesmo a mente do padre mais resoluto. Quem acha Megan Fox o limite máximo da sensualidade em cena com certeza não viu Engraçadinha em ação. Na época com 25 anos e apenas duas participações em novelas, Negrini virou a "namoradinha sacana" do Brasil. Foi o papel que não apenas a lançou para a grande massa como também a desnudou, o que se tornaria uma constante em sua carreira.

"Todo filme que eu fiz, eu fiquei nua. Mas eu não me sinto nua, mas vestida pela linguagem", ela argumenta. Solteira, prestes a completar 41 anos no dia 29 de agosto, tem dois filhos (Antônio, 14, e Bettina, 6) e é uma das atrizes de sua geração que mais usam o corpo como instrumento de trabalho no meio audiovisual brasileiro. "Talvez eu fosse meio despudorada mesmo. Não me sinto mal em ficar nua. Tem gente que não gosta, né? Eu até gosto", ela fala fitando meus olhos, o que me deixa constrangido, já que alguns minutos antes a imaginei tomando banho num riacho na pele de Isabel Olinto, a perturbada personagem que criou na minissérie A Muralha (2000).

Alessandra faz pequenos silêncios entre as frases, mas continua com os olhos ligados nos meus, sem trégua. Talvez daí venha sua fama de ser intimidadora. "Eu sempre fiquei nua quando achei que a coisa pedia para ficar nua", ela continua. "Eu não ficaria para vender o corpo." Está aberta a brecha para falar sobre a única vez em que fez um ensaio para a revista Playboy, em 2000, hoje considerada um item de colecionador. "Eu me orgulho muito porque tinha um projeto de imagem que eu criei. Foi meu primeiro projeto cinematográfico. Nem acho que é tesuda." Na edição, Alessandra encarna uma prostituta que caminha por inferninhos da Lapa, no Rio de Janeiro. Hoje, diz recusar novos convites para fotos semelhantes, mas confessa que já tem um possível ensaio pronto, que dificilmente virá à tona por ela mesma considerá-lo "muito narcisista".

"Tenho fotos minhas nuas, que eu mesma tirei em vários quartos de hotéis do mundo", ela diz. "Agora, parei de fazer isso. Mas tenho um bom arquivo."

A idade é uma questão, sim", Alessandra Negrini reflete sobre a passagem dos anos, ainda me encarando. "Será que vai dar tempo de fazer tudo o que eu queria fazer? Dá uma vontade de fazer um monte de coisa. Você constata que a vida passa. Você constata que um dia você vai morrer. E agora? Com 40 anos você recomeça. Mas você fala: será que não tá tarde demais? Será que vou conseguir?" Há um equilíbrio entre as frases afirmativas e as interrogações, como se todo esse fluxo de pensamento tivesse sido elaborado com calma. Assim, talvez para conseguir refletir com mais tranquilidade sobre as questões, Alessandra Negrini deseja parar o tempo.

"Ao mesmo tempo, minha vida é muito melhor hoje do que era. Eu não queria voltar. Queria que parasse agora. Aqui está bom. Mas não para, né?" É até possível sondar uma angústia no olhar dela - não aquele desespero de alguns de seus personagens, mas uma preocupação crônica. "Sempre tive isto: não vai dar tempo. É algo que não consigo superar, entendeu? Na verdade, eu tenho um tempo muito próprio. Eu... Ainda tô trabalhando isso. Tanto que o meu livro é À la Recherche du Temps Perdu. É a questão do tempo." Ela cita o título original de Em Busca do Tempo Perdido, do autor francês Marcel Proust, publicado entre 1913 e 1927 e considerado um dos maiores romances da literatura mundial. Alessandra se diz apaixonada pela obra e pelo autor. "Fui agora para Paris no museu do quarto dele, depois fui atrás dos manuscritos... Queria encontrar mais pessoas para dialogar sobre isso."

Alessandra quer discutir mais, estudar mais, trabalhar mais, ler mais, saber mais, ver mais filmes de Jean-Luc Godard. Diz que teve muita sorte com seus personagens na TV no passado. Tem diversos hits em novelas (Anjo Mau, Meu Bem Querer, Desejos de Mulher, Paraíso Tropical) e minisséries (Engraçadinha, A Muralha, JK). Fala em sorte como se nada tivesse dependido de seu talento ("Eu me mostrei mesmo com um Nelson Rodrigues. Isso é muito bacana"). Agora, quando o assunto é o futuro, ela se preocupa em tomar as rédeas. "Tenho medo de não ir para a ação e não fazer as coisas que tenho que fazer, de ser menos do que eu posso ser, sabe? Meu medo é esse, de ficar aqui, desperdiçando." Além de criar os dois filhos (Antônio é de sua relação com o ator Murilo Benício; Bettina, de sua união de sete anos com o músico Otto) e fazer filmes, novelas e peças, Alessandra precisa cuidar de dois apartamentos (um no Rio de Janeiro, onde mora, e outro em São Paulo), sair um pouco (adora festas), dormir de oito a dez horas por dia, fazer análise e cuidar da beleza. "É difícil. Salão, unha, cabelo, comprar roupa, ir na ginástica... Eu falo: 'Olha, como você quer fazer outras coisas se está perdendo tanto escapada mental do ambiente do restaurante. Às vezes, dá a entender que faz isso: nos raros momentos em que se distrai da conversa, sua cabeça vai para algum outro canto, mas volta rápido: "Eu poderia estar criando agora. Podia ser muito mais do que eu sou. E por que eu não tô fazendo?" Antes de escutar um "por quê?", ela mesma dá a resposta, de bandeja: "Porque eu sou muito bagunçada, porque eu acordo tarde, porque eu me deixo levar, porque eu saio, porque sou preguiçosa. Eu queria apenas ser mais organizada para fazer coisas na vida que eu ainda não fiz. Isso me angustia".

Desde pequena, Alessandra Negrini lida com uma angústia. Primogênita de uma pedagoga e um engenheiro naval, ela conta que, quando tinha 11 anos, perguntou para a mãe o que era "aquela ausência, aquele negócio esquisito que sentia". A mãe disse que era normal, que o estranho seria se Alessandra não sentisse aquilo. "[A explicação da mãe] Me apaziguou um pouco. Então eu sabia que existia espaço para questionamento, para alguma melancolia."

Pergunto se ela acha que foi uma criança feliz. "Sim. Mas me lembro bem dos momentos de crise, de angústia. Sempre me achei meio estranha, em geral. Por que eu pensava tanto?", continua, deixando claro que não fez o tipo jovem-deprimida-trancada-no-quarto. "Eu brincava muito, muito." Na adolescência, sua percepção do mundo deu um salto quando fez intercâmbio nos Estados Unidos e pôde "conhecer novas pessoas, explorar outros sentimentos". Hoje, ela acha que ainda carrega aquele olhar estrangeiro e a curiosidade em desbravar novas culturas.

"E eu serei assim até morrer", ela diz, séria.

Após o fim do intercâmbio, Alessandra Negrini retornou para sua cidade natal, São Paulo, para estudar e dar aulas de inglês. Abandonou o curso de jornalismo após um ano e fez mais dois de ciências sociais ("O ser humano sempre me interessou"). Largou a pretensão de pegar um diploma depois que ser atriz virou seu ofício. "Sempre foi a vocação. Eu resistia um pouco. Não sabia que isso ia dar certo. Mas vocação é tão forte que você não consegue fugir. Tentei um pouco. Mas não consegui." Até quis aprender violão e guitarra. "Era uma merda, entendeu? Então eu parei. O mundo tem que te responder positivamente. Você tem que saber ler os sinais que a vida te dá", teoriza.

Longe das novelas desde Paraíso Tropical (aquela das gêmeas), Negrini jura não se sentir pressionada para voltar a uma grande produção. No primeiro semestre, ficou em cartaz em São Paulo com a peça A Senhora de Dubuque, de Edward Albee. Gosta de teatro e já levou para os palcos personagens de autores consagrados, como Strindberg e Tchekhov, mas sabe da importância da televisão na cultura nacional. "Quero voltar. E eu tenho um sonho na TV: fazer comédia. Ainda não aconteceu, mas fazer o quê? Ainda não me deram essa chance." Nos cinemas, até flertou um pouco com o gênero em Sexo, Amor e Traição, de 2004. Mas, desde que começou sua parceria com o cineasta Júlio Bressane, ganhou o título de "musa de cinema de autor", com toda a seriedade que o emblema carrega, inclusive alguma dose de preconceito - será que uma personalidade bonita, sexy e de sucesso na TV teria direito a ser boa atriz? Cleópatra, filme de 2007, de Bressane, foi sua resposta. Na biografia da rainha do Egito escrita por Stacy Schiff, consta que o filósofo grego Plutarco definiu assim a famosa figura histórica: "Sua beleza não era em si tão notável que não houvesse comparação ou que não se pudesse vê-la sem ser tocado; era mais o contato de sua presença [...], que era irresistível". Por causa de sua Cleópatra, Alessandra ganhou diversos prêmios e chegou a prestigiar a exibição do filme no renomado Festival de Veneza. "O filme foi massacrado no Rio de Janeiro e ficou pouco tempo em cartaz. Até pensei: 'Será que fiz alguma coisa errada?' Revi agora em Portugal, com distanciamento, e é uma força de cinema", diz.

Alessandra tira o casaco preto, revela uma regata branca e a tatuagem no braço direito ("Amor", escrita por cima de uma antiga, "Otto", homenagem ao então marido). Com a sessão de fotos para a reportagem marcada para o dia seguinte, essa era a nudez mais próxima que eu havia observado até então. Como se tentasse hipnotizar quem estivesse ao redor, ela balança constantemente a correntinha em seu pescoço. Mesmo tranquila, sempre há uma desconfiança em seu olhar, como se tudo pudesse desmoronar em poucos segundos. Mas em nada lembra aquela aterrorizante Medusa pintada por alguns veículos e colegas. Como não virei uma estátua de pedra, vale a pena arriscar e perguntar se ela sabe que muitos a consideram antipática.

"Eu sei, eu ouço falar", ela gargalha, mostrando incompreensão. "É mito. É puro mito. Parte da minha fama de ser difícil é porque eu sou muito séria no trabalho, muito concentrada, muito exigente. Hoje consigo estar mais relax um pouco. Antes não conseguia. Chegava no primeiro dia para gravar uma novela, estava tão concentrada que não conseguia chegar e 'oi, tudo bem?' Agora já sei que tenho que fazer isso, porque melhora." Claro que estou diante de uma atriz, e a possibilidade de estar sendo enganado é infinita. Mas Alessandra Negrini acha que ainda me deve mais algumas explicações: "Não sou uma pessoa muito política. Essa é uma lacuna. Hoje eu sou melhor do que eu era. Já sei que é melhor chegar sorrindo do que ser tão autêntica. São traquejos para você viver".

Na minissérie que a revelou, sua personagem, quando adulta, foi interpretada pela atriz Cláudia Raia. Essa possibilidade de envelhecer sem passar pelas dores da transição, escapando de um corpo e entrando em outro, é um recurso que só a ficção proporciona. Negrini sabe que não tem essa opção, e que o jeito de lidar com as transformações vividas é refletindo sobre elas. "Não vou conseguir te explicar tudo como eu sou agora, né? Nem eu mesma sei explicar", ela arrisca uma conclusão.

"Continuo com algumas questões, mas tô melhor", conclui. "Sou só um pouco confusa."