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Música / Crítica

A festa sem fim de Charli XCX em “BRAT”

Entre a transgressão e a vulnerabilidade, Charli XCX lança seu sexto disco de estúdio e domina a internet

Ali Prando Publicado em 09/06/2024, às 19h36

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Capa de Brat (Imagem: Reprodução) e Charli XCX (Foto: Harley Weir)
Capa de Brat (Imagem: Reprodução) e Charli XCX (Foto: Harley Weir)

Maços intermináveis de cigarro, ketamina, strobelights, mensagens de texto, fama, auto-estima, redes sociais e after parties: é num clube suarento que se passa o sexto álbum de estúdio de Charli XCX, britânica que "quebrou a internet" com o lançamento de "BRAT". Produzido por ela em conjunto à A. G. Cook, Easyfun, Cirkut, El Guincho, o disco funciona como um retorno às raves ilegais onde Charli começou a performar quando ainda tinha quatorze anos. Evocando um alter-ego chamado Party Girl, através de quinze músicas, "BRAT" oferece letras vulneráveis e conflituosas sem preocupar-se com a régua moral que tem assolado a cultura popular contemporânea - se a regra é que as estrelas pop sejam altamente cleans e relacionáveis, Charli canta livremente sobre sua relação com drogas, a obsessão pelo reconhecimento, niilismo e anseios de uma "artista POP de nicho" como tem sido chamada pela crítica global. Ela ocupa uma posição estranha na indústria da música: para o mainstream, Charli tem uma estética demasiadamente agressiva e histriônica, para o underground, seu universo é lido como excessivamente ultra midiático, no entanto, a verdade é que através de "BRAT", a artista cunha de vez seu status enquanto ícone cult.

Capa de Brat (Reprodução)

Não é possível compreender a importância do trabalho de Charli sem antes passar pela cena onde ela está inserida na última década. Foi através da PC Music, label e espécie de "coletivo artístico" criado por A. G. Cook onde Charli encontrou parceiros que pudesse desenvolver o som que ela tinha em sua cabeça. Antes disso, ela havia feito o soturno "True Romance", um brilhante disco de estreia, e "SUCKER", álbum de POP açucarado onde a gravadora a pressionou por sucessos radiofônicos e altamente palatáveis. A experiência de "SUCKER" ficou marcada para Charli como aquilo que ela não gostaria de fazer em sua carreira. Em "Vroom Vroom", EP lançado em 2016, Charli encontrou a fórmula de POP experimental e de vanguarda que alavancaria sua carreira. Produzido ao lado de SOPHIE (produtora escocesa vanguardista que morreu recentemente, a quem Charli presta homenagem em "So I"), as músicas de "Vroom Vroom" tem texturas metálicas, batidas ágeis e ruidosas e letras irônicas. Por meio da PC Music, a música POP contemporânea foi virada de cabeça pra baixo tornando-se mais experimental e livre. 

Inspirados por eurodance, com referências nostálgicas e a cultura de internet, a PC Music é uma versão agressiva da música do presente, desafiando as dualidades e sensos comuns como o mito do homem contra a máquina, ou o música acústica e eletrônica, com seus artistas marcados por engenharias sonoras ambiciosas, vocais estilizados, e uso forte de auto-tune - algo do qual Charli usa e abusa, criando uma assinatura própria. É possível perceber a influência da PC Music e seu hyperpop por toda a parte - não é a toa que Billie Eilish ou Olivia Rodrigo consigam penetrar as rádios com suas sonoridades atuais ou que artistas como Camila Cabello esteja emulando Charli por aí - e ela sabe disso. "I'm your favorite reference, baby", ela canta em "Von Dutch", primeiro single de "BRAT" que sampleia "Yeah Yeah" de Bodyrox.

Charli XCX (Foto: Harley Weir)

Compositora profícua, Charli tem músicas interpretadas por inúmeras artistas: Selena Gomez, Shawn Mendes, Ryn Weaver, Icona POP e outros, porém agora diz odiar os processos e acampamentos de composição atuais da indústria da música, que mais parecem como sessões de terapia. Ao invés disso, em "BRAT", Charli opta por compor músicas extremamente diretas, como se fossem mensagens de textos enviadas para seus amigos ou para um confidente, aproximando-se visceralmente de seu ouvinte. Em "I think about it all the time", ela anseia pela possibilidade de tornar-se mãe depois de ter visitado um casal de amigos que estavam felizes por seu bebê recém nascido. Em "I Might Say Something Stupid", Charli é confessional, "Não me sinto especial, eu rasgo as minhas meias presas à cadeira, acho que sou uma bagunça, mas disfarço".

Discípula de Duchamp e Andy Warhol, a capa de "BRAT" tornou-se meme e dividiu opiniões quando lançada. Charli decidiu manter-se filosófica em relação à escolha minimalista: "Acho que a constante demanda por acesso aos corpos e rostos das mulheres na capa do nosso álbum é misógina e chata. Por que não estou na capa? O que essa capa significa? Eu quero provocar as pessoas e não estou interessada em ser legal o tempo inteiro", ela desafia. A capa de "BRAT" funcionou como um cavalo de tróia e foi viralizada por toda a internet. Agora o tom de verde utilizado nela é reconhecido como "verde brat". Em poucos dias, milhares de itens como bolsas, camisetas, bonés tem a estampa e a cor de "BRAT". 

Numa época onde o feminismo tem sido cada vez mais commodificado, a artista opta por disputar outro tipo de jogo. No disco, ela trata do tema explicitamente em "Girl, so confusing", onde supostamente comenta sobre como se sente a respeito da neozelandesa Lorde, com quem dividiu os holofotes logo no início de sua carreira: “Ultrapassamos o ponto em que a mídia sempre coloca as mulheres umas contra as outras. Em meados dos anos 2000, o que literalmente vendia revistas e jornais eram coisas como: ‘Britney versus Christina’, ‘Paris versus Lindsay’. Na indústria da música, foi destilado a ideia de que se você apoia as mulheres e gosta de outras mulheres, então você é uma boa feminista. O inverso disso é: se você não gosta de todas as outras mulheres que existem e respiram nesta Terra, então você é uma péssima feminista. Se você não é uma garota das garotas, então você é uma mulher má", declarou Charli ao The Guardian, advogando por uma maior complexidade tanto das pautas feministas, quanto dos afetos que nos fazem falhar e nos fazem por fim humanos.

Charli XCX cresceu subindo as suas músicas no MySpace, e quando criança, era fã Spice Girls, Nirvana e Britney Spears, como poucas artistas na indústria, ela compreende a criação da mitologia na cultura POP, embora ela tenha mudado radicalmente dos anos noventa até os dias atuais. Em "BRAT", ela ri do efeito do tiktok na música, onde uma tendência é substituída pela outra em questão de segundos: então como criar obras duráveis em um universo tão efêmero? Charli retorna aos clássicos de música eletrônica e cria seu disco mais coeso até a data. 

Para o videoclipe de “360”, segundo single do álbum, ela reuniu as “garotas mais comentadas” da internet: Julia Fox, Rachel Sennott, Emma Chamberlain, Gabbriette, Chloe Cherry, Isamaya Ffrench, Salem Mitchell, Hari Nef, Richie Shazam, entre outras. A aparição mais icônica, no entanto, fica com Chloë Sevigny, atriz que tem status cult depois de ter protagonizado filmes como “GUMMO” e “KIDS”. Charli sabe o que funciona e o que não funciona na cultura da internet: “Hoje em dia, as gravadoras estão realmente desesperadas para que seus artistas sejam “gostados” (cultura do “like”), e a moeda da gentileza é muito importante na venda de discos, caso contrário você será mal, problemático e errado”, diz ela. “Você não pode se separar de seus fãs. A menos que seja extremamente drástico e distante – e então isso quase se torna a própria cultura”, Charli reflete.

“BRAT” é também um álbum que incide sobre crises, tanto as pessoais da própria artista, que dialoga sobre seus dramas millennials e a chegada dos trinta anos, quanto também a crise da própria cultura POP, onde os artistas que antes pareciam deificados no Olimpo - de Britney Spears à George Michael, Prince e Madonna, agora são facilmente confundidos e hibridizam na cultura do mercado de influência. O disco então ressoa a crise econômica da música POP, e ao contrário de suas concorrentes de mercado, Charli permite-se lamentar e demonstrar ressentimento pelo fato de não ter ficado tão rica e famosa quanto o modelo de superstar que cresceu assistindo na época de ouro da MTV.

Como um Michael Alig contemporâneo, ela aproxima-se de sua fanbase comunicando-se diretamente com eles - às vezes respondendo à críticas afiadas em sua conta no Instagram ou Twitter, depois convidando fãs para serem “consultores” de músicas que devem ser lançadas ou não, e outras vezes promovendo festas onde os fãs podem dançar às suas discotecagens e oferecer cigarros pessoalmente a ela. Charli cria uma sensação de que ela poderia ser aquela garota que você encontra no banheiro de uma festa, com quem conversa por cinco minutos e tem epifanias que mudarão a sua vida. A experiência "PARTY GIRL", uma espécie de happening onde ela convida amigos e produtores para discotecagens, desembarca em São Paulo na ZIG Club no dia 22 de junho, depois de ter passado por Barcelona, Londres, New York, Chicago, Los Angeles e México. 

Passional, inventiva, visceral e provocativa, os mais conservadores podem até torcer o nariz para Charli, mas com "BRAT" ela prova que veio para ficar a mudar a cultura pop para sempre.

Ali Prando (@aliprando.exe) é filósofo, curador e artista. Criou o Festival Transforma Música, discutindo representações queer no mercado audiovisual brasileiro. Lançou o álbum 'GLITCH' e apresentou 'ALGORITMOS', uma ópera eletrônica sobre uma IA que questiona sua existência ao interagir com humanos. Suas pesquisas filosóficas foram levadas a festivais e importantes instituições acadêmicas e culturais do Brasil, abordando corpo, sexualidade e cultura pop.