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Afrofuturismo: como essa revolução cultural tomou o mainstream de assalto e chegou inclusive à Marvel com Pantera Negra

O movimento combina ancestralidade com sci-fi e abrange todos os campos artísticos - tudo da perspectiva negra

Vinicius Santos Publicado em 04/06/2020, às 07h00

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Pantera Negra, Janelle Monáe, Sun Ra, Octavia Butler e O Caçador Cibernético da Rua 13, de Fábio Kabral (foto: Montagem)
Pantera Negra, Janelle Monáe, Sun Ra, Octavia Butler e O Caçador Cibernético da Rua 13, de Fábio Kabral (foto: Montagem)

Há pouco mais de 27 anos morria, aos 79 anos, Herman Poole Blunt, ou pelo menos esse nome era o que constava na ficção jurídica que o artista negava. Na verdade, é mais apropriado dizer que Sun Ra, o jazzista negro que pregava que vinha de saturno para difundir a filosofia cósmica, centrada na consciência sobre o ser e na paz entre os povos.

A mensagem nas falas e na música carregada de teclados eletrônicos, sintetizadores e a percussão errática de Sun Ra é tida como um dos casos pioneiros do Afrofuturismo. Esse movimento cultural que mistura as fantasias dos povos negros, africanos e diaspóricos, com o sci-fi e outras formas de ficção especulativa.

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Algumas décadas depois que Ra voltou para o cosmos o qual pertencia, o Afrofuturismo entrava de cabeça no mainstream com Pantera Negra (2018), filme de Ryan Coogler que mergulha no reino de Wakanda, uma nação africana com tecnologia avançadíssima, liderada por T'Challa, o governante e guardião do povo, título chamado de Pantera Negra.

Merecidamente, o longa foi a segunda maior bilheteria do mundo em 2018, ao lado de Vingadores: Guerra Infinita, que também coloca o Pantera Negra em evidência. Além do elenco majoritariamente negro, a produção colocou em voga o Afrofuturismo. Mas a difusão dessa cultura não pode parar por aí. Além de conhecer o termo, é preciso entender as raízes dele e algumas das inúmeras obras que materializam as perspectivas negras.


Ficção para reimaginar o futuro e o passado

Black Panther: Trailer e Data de Estreia - Disney.PT

Apesar do que o termo dá a entender, Afrofuturismo não se trata apenas de imaginar mundos vindouros a partir de idiossincracias negras, mas também de reinterpretar o passado e preencher lacunas de representatividade.

Como o teórico cultural Mark Dery escreveu no ensaio (que inclusive criou o termo Afrofuturismo)Black to the Future (1994): "Parte da resiliência da cultura negra e da vida negra é imaginar o impossível (...) Nessa concepção, certos elementos da cultura afro-americana são reimaginados e transpostos para um nova perspectiva, cósmica e lendária."

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"Como minha esposa me diz sempre, Afrofuturismo é um movimento em movimento", conta Fábio Kabral, autor dos romances Ritos de Passagem, O Caçador Cibernético da Rua 13e A Cientista Guerreira do Facão Furioso (Editora Malê).

"Acredito que uma narrativa, para ser considerada afrofuturista, deve ter como centro os imaginários, cosmologias, cenários, espiritualidade e perspectivas africanos e/ou afro-inspirados", desenvolve Kabral.

"Esse aspecto do movimento se deve a idade dele. Apesar de ter representantes pioneiros, o Afrofuturismo começou mais recentemente a tomar forma real nos últimos anos. Então, os traços que classificam as produções começam a ser delimitados agora", completa.

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"Temos, em minha opinião, quatro fundamentos para uma obra afrofuturista: o protagonismo negro, a autoria negra, a afrocentricidade, ou seja, a autoconscientização de pessoas negras como agentes atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos e, é claro, ser uma ficção especulativa", explica Kabral.

É um movimento que foca o negro, seja com outra visão do passado, que foi ocultada ou omitida dos registros, um futuro pensado por pretos, diferente da maioria de obras sci-fi do mainstream ou acrescentem um elemento novo no presente, que é o caso de Wakanda e o impacto da nação do Pantera Negra no resto do mundo.

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"A meu ver, o mainstream abriu os olhos para o movimento principalmente por que dá dinheiro. O interesse em vender e fazer marketing sempre existe, mas esse interesse é alimentado por uma percepção crescente de que o mundo é plural agora", aponta Kabral. "Não há mais volta da pluralidade e por isso ela começa a ser comercializada."

O que não falta são exemplos da visão afrofuturista em todas as modalidades de artes. Por isso, com a ajuda e orientação de Fábio Kabral, listamos algumas obras importantes para quem quer conhecer e apoiar o movimento cultural.


Literatura -

O Caçador Cibernético da Rua 13 - Fábio Kabral (2017)

Livro da Vez : Caçador Cibernético da Rua 13 - Lucas - Medium

João Arolê é um caçador de espíritos profissional que habita Ketu 3, uma cidade-estado localizada em outro mundo, que foi povoado por homens e mulheres "melaninados", abduzidos da terra-mãe. Qualquer semelhança com a escravidão dos negros e o transporte para o Brasil no enredo da obra de Fábio Kabral não é mera coincidência.

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A narrativa integra espiritualidade e magia com a influência dos terreiros, retratados como grandes corporações, além de tecnologias que modificam profundamente o corpo. Uma visão afro-brasileira sobre a fantasia tecnológica, marcada por profundas críticas e debates que ecoam em nossa sociedade.

Trilogia da Terra Partida - Nora K. Jemisin(2016, 2017  2018)

Essa trilogia com todos os volumes premiados com o troféu Hugo de Melhor Romance fez história. Foi a primeira vitória na premiação para uma pessoa negra depois de décadas de existência e com razão. N.K. Jemisin conta a história de três protagonistas com poderes que a conectam a um planeta que sofre com constantes abalos sísmicos. Uma narrativa que une feminilidade com sustentabilidade e a superação dos preconceitos. 


Cinema -

Rapsódia para o Homem Negro - Gabriel Martins (2015)

Esse curta-metragem conta uma história de dois irmãos numa ocupação em Belo Horizonte, retratando uma resistência apoiada nas crenças e mitologia candomblé. As histórias dos protagonistas se sobrepõem as dos orixás, numa aula de história ao mesmo tempo ancestral e contemporânea.

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Space Is The Place - Sun Ra (1974)

O já citado Sun Ra retorna numa experiência que une a estética e música dele para criar um novo mundo. Uma terra que irá receber de braços abertos todos os negros que forem transportados para lá pela musicalidade. Misticismo e o conceito de exploração interestelar fundidos ao som do Jazz.


Música - 

Afrofuturo - Ellen Oléria (2016)

A cantora natural de Brasília Ellen Oléria sintetiza os sentimentos afrobrasileiros no disco Afrofuturista (2016). Com sensibilidade e muita alegria, ela pinta os valores e elementos do futuro pensados pela ideologia negra, com uma grande dose de ativismo político.

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Django Jane - Janelle Monaé (2018)

Janelle Monáeexibe a visão de mundo com clipes futuristas e apropriando várias referências da cultura pop, além de transitar com naturalidade entre múltiplas modalidades de canto, do rap ao coral. Uma versatilidade incrível, demonstrada também pelas carreiras da artista no cinema e na dança.


Quadrinhos - 

Quem é o Pantera Negra? - Reginald Hudlin (2005)

Reginald Hudlin é considerado o autor que mais construiu o Pantera Negra atual, no qual MCUse baseia. Além de casar T'Challa com a Tempestade, ele definiu os traços principais de Wakanda e da família do herói. Hudlin depois migrou para o cinema e conquistou um Oscar com Django Livre (2012).

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Games - 

Dandara  - Long Hat House (2018)

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Produzido pelo estúdio Long Hat House, de Belo Horizonte, Dandara é um jogo de ação retrô,dinâmica conhecida como Metroidvania. Baseado em Dandara dos Palmares, uma heroína da comunidade quilombola, a protagonista nasce já na idade adulta e com uma missão: acabar com o conflito entre duas facções responsáveis pelo equilíbrio do mundo.


Certo, mas como apoiar o Afrofuturismo?

Se, depois de tantas recomendações e uma introdução sobre o tema, bateu vontade de apoiar o movimento, a resposta, segundo Fábio Kabral é simples: consuma. " É ótimo ver pessoas querendo promover o Afrofuturismo em apoio a cultura negra, mas a verdade é que o maior beneficiário desse apoio é o próprio consumidor."

"Passar uma vida toda lendo apenas produções europeias ou de povos anglo-saxões é limitar o próprio mundo", conceitua o escritor. "Ler autores novos e de outras etnias é expandir a própria humanidade. É um processo natural, crescente e irreversível a caminho da pluralidade."


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