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Como Dark 3 encaixou cada grão de areia de uma ampulheta temporal - e criou ficção científica quase perfeita [REVIEW]

A série teve o final previsto - e abraçou tudo o que prometia, sem tentar ir além - provavelmente, a melhor decisão

Yolanda Reis Publicado em 30/06/2020, às 07h00

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Jonas em Dark (Foto: Divulgação / Netflix)
Jonas em Dark (Foto: Divulgação / Netflix)

[ATENÇÃO COM SPOILERS DE DARK]

A ficção científica é apaixonada por viagem no tempo-espaço. São inúmeras as fantasias criadas por mentes brilhantes nas quais pessoas vão e voltam na dimensão temporal, criando mudanças ou tentando fazê-las acontecer. Mas, provavelmente, nenhuma fez isso de modo tão conciso e lógico quanto Dark, da Netflix.

É comum para séries temporais perderem-se dentro de si mesmas. Os motivos para isso são diversos: histórias longas demais, com paradoxos e “regras” que funcionam para um momento da trama, mas não para outro (o famoso "quebra galho"); regras da física absurdas e irreais (ou tão falsas possam parecer numa viagem no tempo); vertentes tão complexas sem explicações satisfatórias - ou preocupação de tentar inventar uma desculpa - etc.

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Mas Dark não fez isso. A produção da Netflix soube se encontrar na própria teia, e não grudar em pontos sem nó nem perder um só grão de areia dentro de uma ampulheta. Uma boa ideia da série foi começar sabendo quando acabar: três temporadas, nada mais, contando a história de um grupo de pessoas - os habitantes da fictícia Winden, cidade alemã - e as consequências brutais que a viagem no tempo trouxe para a cidade. Só isso - simples, mas complexo.

Como prometeu desde o início, Dark fechou um ciclo de história. Houve o começo. Então, o meio. Daí, o fim. Cada parte apresentada em uma temporada - e cada pedacinho ampliando um pouco mais um mundo complexo de passado, futuro, linhas do tempo, destino e universos alternativos. A explicação e introdução gradual tornou a produção praticamente perfeita: não houve emaranhados - e tudo foi facilmente digerido em pequenos passos.  Não apresentaram nada além do que conseguiriam abraçar.

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Isso fez toda a diferença para uma ficção científica coesa. Em uma jornada épica e curta pela televisão, prezou-se a qualidade à quantidade - algo que faz falta em tempos de séries com 10 (ou 15, ou 20...) temporadas, que acabam perdendo-se dentro de si mesmas tamanha "enrolação."

A verossimilhança da Física

Outro ponto inteligente de Dark foi manter-se dentro de conceitos temporais explorados, anteriormente, por outras séries - ou apresentados pela ciência. Mas dar um toque totalmente imaginativo a cada um deles. Desde a primeira temporada, somos apresentados à ideia do tempo como círculo (o começo é o fim; o fim é o começo) e ao fatídico Ouroboros, a cobra que come a própria cauda.

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Ouvimos Franciska (e depois H. G. Tanhaus) comentar sobre a explosão estelar que forma um buraco negro. Explicam como isso gera um “túnel” que conecta dois pontos no espaço-tempo. Isso, porém, foi um deslize, pois essa é a descrição de um buraco de minhoca. Um buraco negro, na verdade, atrai e destrói quaisquer objetos próximos - não teletransporta nada.

Explora-se, também, a existência da "Partícula de Deus" (ou bóson de Higgs) - e como a “estabilização” dessas partículas subatômicas permitiria essa viagem no tempo. Aqui, a série fica, ao mesmo tempo, mais científica e mais fantasiosa. Dark aproveita as denominações e ideias básicas de várias teorias de física, química e mecânica quânticas para criar a história. Mas escolhe ignorar a parte prática de algumas teorias.

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Na lógica de Dark, estabilizar essa partícula permitiria criar um buraco de minhoca e controlar a viagem no tempo - e até viver num mundo sem tempo algum, como Adam define o paraíso. Tudo isso, claro, é uma releitura fictícia dos criadores - pois, além da estabilização da partícula não poder acontecer de verdade, os cientistas da vida real ainda não conseguem criar buracos de minhoca e usá-los para navegar no tempo-espaço. Mesmo na teoria, vale lembrar, o teletransporte só funcionaria com partículas subatômicas - transportar um corpo humano é, teoricamente, impossível. 

A série também fala muito da matéria escura - mas, também, de modo fantasioso. Essa matéria - componente de 85% do nosso universo - ainda esconde muitos mistérios. É alvo de muitas pesquisas de cientistas, que tentam descobrir como ela se comporta.

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Há, além da viagem no tempo, a viagem entre universos distintos - mas parecidos. A ideia de universos paralelos é amplamente explorada em várias séries - e, em Dark, cria uma forma mais fiel à Interpretação dos Muitos Mundos do que De Volta Para o Futuro, por exemplo. No filme dos anos 1980, os efeitos do passado afetam o futuro. Na série da Netflix, não: cada universo tem uma linha temporal fechada (então, o passado não afeta o futuro), mas existem várias dimensões dos mesmos universos - e, em cada uma, há eventos levemente diferentes - como a morte de Jonas, ou a não existência dele, ou o nascimento de um personagem diferente em cada universo.

Mas, então, se Darknão honra as leis e teorias da natureza, mas usa os “nomes” de propostas quânticas, poderia mesmo ser uma história realmente boa? A resposta, dentro de todo o aspecto da ficção científica, é: Claro!

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O que faz uma ficção-científica ser divertida e memorável? Se tomarmos como exemplo alguns dos maiores clássicos da literatura, televisão e cinema, percebemos a verossimilhança com a ciência - ou seja, apresentam uma história que não é, necessariamente, verdade, mas com certeza parece ser. Como Blade Runner, por exemplo, e os carros voadores, andróides, e poeira tóxica destruindo a Terra. Ou, então, a sociedade dividida (e nunca triste) de Admirável Mundo Novo - e, nas telonas, as aventuras espaciais de 2001: Uma Odisséia no Espaço. Nenhum desses é verdadeiro - mas todos eles pareciam, à época, potencialmente possíveis (principalmente com uma "flexibilizada" nas leis da Física).

Dark conseguiu firmar-se, em três anos, como uma das melhores obras de ficção científica: é totalmente complexa, mas plenamente entendível; completamente fantasiosa, mas possivelmente real. Também é cativante, apaixonante, aterrorizante. E original.

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A originalidade de Dark é forte aliada. A série surgiu num mundo onde uma das séries mais antigas do mundo, Doctor Who, mostra viagens no tempo e no espaço há mais de 50 anos. Numa fase em que ficção científica perdeu muito do brilho que teve há algumas décadas. E em momento em que boa parte do público nunca nem ouviu falar em Twin Peaks - ou de buscar respostas nas entrelinhas de uma verdadeira trama.

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A temporada três encerra Dark da mesma maneira a temporada um a apresentou: com um estrondo de abalar os mundos. Não sabemos bem o que fez dela uma das séries mais populares da Netflix. Talvez, seja a reimaginação de viagens no tempo. Talvez, a introdução a temas mais complexos - e ideias de virar a cabeça. Poderia, também, ser a “nova” forma complexa de abordar uma historia, ou quem sabe o velho elemento da fantasia-verossímil. Mas algo é certo: essa é uma produção digna de atravessar gerações - e ser assunto de 1888 até 2052, ou um pouco mais...


Agradecimentos à consultoria de Dra. Gabriela Bailas, PhD em Física Teórica de Partículas e responsável pelo canal Física e Afins, para desenvolvimento do "certo e errado" nos termos científicos usados em Dark.