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Como o papa Francisco vem inclinando a Igreja Católica em uma direção menos conservadora, ainda que sem grandes mudanças práticas

Em janeiro,ele se encontrou com Diego Neria Lejarraga, um católico transgênero de Plasencia, na Espanha, e disse a ele: “A Igreja te ama e aceita como é”

Mark Binelli Publicado em 02/11/2015, às 15h31 - Atualizado às 15h49

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O presidente norteamericano Barack Obama esteve com Francisco no Vaticano, em 2014. O papa retribuiu com uma visita à Casa Branca no mês passado - ABLO MARTINEZ MONSIVAIS/AP PHOTO
O presidente norteamericano Barack Obama esteve com Francisco no Vaticano, em 2014. O papa retribuiu com uma visita à Casa Branca no mês passado - ABLO MARTINEZ MONSIVAIS/AP PHOTO

Ouando o papa francisco chegou a Washington, D.C., em 22 de setembro, não foi apenas sua primeira visita papal aos Estados Unidos; foi a primeira vez que esteve no país. Ele já tem 78 anos, mas passou a maior parte do tempo na Argentina, onde nasceu, primeiro como padre jesuíta e depois como car- deal. Além das viagens obrigatórias a Roma para assuntos oficiais da Igreja, o homem que antes era conhecido como Jorge Bergoglio raramente saía de Buenos Aires. As únicas férias de peso que tirou por prazer, uma viagem à Terra Santa, em 1973, foram mal planejadas: ele chegou bem no início da Guerra do Yom Kippur e, por isso, passou a maior parte do tempo confinado no quarto de hotel, em Jerusalém.

Em Washington, Francisco se reuniu com o presidente Obama na Casa Branca e se tornou o primeiro papa a falar a uma sessão conjunta do Congresso, graças a um convite do porta-voz da Casa, John Boehner, um católico devoto. O jornal The New York Times descreveu a visita de Francisco como um “sonho de longa data” de Boehner, que vinha demonstrando sua intenção a Roma havia duas décadas.

Talvez o entusiasmo do porta-voz norte-americano tivesse arrefecido um pouco se o papa tivesse sido capaz de entrar nos Estados Unidos da maneira como queria originalmente: pelo México, atravessando a fronteira em demonstração de solidariedade aos imigrantes.

A ideia não deu certo por causa de dificuldades logísticas e de agenda. Mas o fato de ele ter expressado esse desejo é mais uma ilustração da compreensão brilhante que o papa Francisco tem a respeito de seu próprio poder desestabilizador. Durante os dois anos e meio de seu papado, as palavras e as ações dele, sem roteiro e com frequência radicais para os padrões da Igreja, deixaram tanto crentes quanto descrentes eletrizados, em uma escala de que nenhum outro líder religioso além do Dalai Lama se aproximou. “As pessoas que achavam que a Igreja era a pior encarnação do mal andam me dizendo: ‘Eu adoro o seu papa!’,” conta Michael Sean Winters, colunista do National Catholic Reporter. E, no entanto, muitos norte-americanos católicos conservadores – especialmente políticos – se viram sem chão com a profunda mudança de tom vinda com Francisco.

Durante gerações, a direita religiosa teve permissão para definir os termos do debate no que diz respeito à intersecção entre fé e política nos Estados Unidos – algo que ainda ocorre no Brasil –, colocando uma ênfase em questões como aborto e casamento homossexual que tendia a atrapalhar as intenções dos progressistas. Assim, tem sido um tanto esquisito, para dizer o mínimo, para republicanos católicos com cargos políticos encarar um papa que declarou em entrevista que a Igreja não deveria ficar “obcecada” com “questões relativas ao aborto, ao casamento gay e ao uso de métodos contraceptivos”. Ele não estava mudando a doutrina, mas a mudança de ênfase foi notável – “O ensinamento da Igreja, aliás, é claro, e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário ficar falando dessas questões o tempo todo”, Francisco disse. Em termos de ações, ele foi mais longe. Em janeiro, por exemplo, ele se encontrou com Diego Neria Lejarraga, um católico transgênero de Plasencia, na Espanha, e deu um abraço nele. Apesar de um padre local ter chamado Lejarraga de “filha do demônio”, Francisco disse a ele: “Você é filho de Deus, e a Igreja te ama e aceita como é”.

Em abril, dois anos antes do esperado, Francisco colocou fim a uma investigação a freiras que tinha sido iniciada sob seu predecessor, o papa Bento XVI. Elas tinham sido acusadas de transitar em “temas feministas radicais” e de se afastar dos ensinamentos católicos. Francisco convocou quatro integrantes do grupo para irem ao Vaticano e expressou apreciação pelo trabalho delas em um encontro de quase uma hora. “A iniciativa conservadora de controlar a Igreja durante papados anteriores foi muito eficiente”, observa a irmã Simone Campbell, diretora executiva do grupo católico de lobby progressista Network. “Criaram um fator de medo entre as lideranças moderadas, que temiam serem delatadas a Roma. O papa Francisco as libertou do medo.”

O papa também tem mantido concentração incansável em suas próprias obsessões – os pobres e despossuídos do mundo, e como a vida deles é aniquilada pelo capitalismo desenfreado, a cultura de consumo grotesca e insaciável, as mudanças climáticas, a globalização –, e isso em uma linguagem simples e muito forte. Porém, talvez ainda mais desorientador para a direita norte-americana, Francisco também se referiu diretamente ao aquecimento global causado pelo homem em uma impressionante encíclica de 180 páginas intitulada Laudato Si, ou “Louvado Sejas” – basicamente, um apanhado geral a respeito das políticas ambientais míopes e voltadas ao lucro que ameaçam nosso planeta. O tema não era novo para Francisco: como arcebispo de Buenos Aires, ele tinha sido um dos autores de um documento de 2007 lançado por bispos latino-americanos e caribenhos que colocava a “destruição ambiental” no centro da discussão, denunciando a “exploração irracional” dos recursos naturais.

Em Laudato Si, com a ajuda de um assessor científico, Francisco descreve metodicamente a crise de “deterioração ambiental global” e coloca toda a culpa na cobiça e na “cultura do desperdício que afeta os excluídos com a mesma velocidade que reduz as coisas a lixo”. Pelo texto, Francisco recebeu elogios de pesquisadores do clima da Nasa e do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos, além de Naomi Klein, Neil deGrasse Tyson e Al Gore (sendo que este último observou: “Eu poderia me tornar católico por causa desse papa”).

Nos estados unidos, o domínio católico é dos irlandeses, que importaram consigo a obsessão pelo pecado e pela moralidade sexual. A eleição de Ronald Reagan, em 1980, dois anos depois de João Paulo II se tornar papa, abriu a porta para uma nova geração de intelectuais católicos conservadores como George Weigel e Michael Novak, que promoveram sinergia entre o catolicismo e o livre mercado. João Paulo II era originário da Polônia da época soviética e opositor ferrenho tanto do comunismo quanto da teologia da libertação católica radical que tomava conta da América Latina, e ele e Reagan logo se tornaram aliados naturais. Quando os dois se encontraram pela primeira vez, na biblioteca do Vaticano, em 1982, se aproximaram pelo fato de terem sobrevivido a tentativas de assassinato ocorridas com seis semanas de diferença, em 1981. Como Carl Bernstein escreveu na revista Time, “ambos acreditavam que Deus os tinha salvado para uma missão especial”.

“A oposição do Vaticano à teologia da libertação se encaixava bem nos objetivos políticos dos republicanos”, diz Michael Lee, professor de teologia da Universidade de Fordham. “Se as pessoas pudessem pensar que Reagan e João Paulo II estavam derrubando o Muro de Berlim juntos, seria uma vantagem, principalmente quando a intenção era atrair católicos, tradicionalmente eleitores democratas, para o Partido Republicano.”

De fato, certos conservadores distorceram o ódio de João Paulo II pelo totalitarismo marxista e o transformaram em uma defesa completa do capitalismo, deixando a condenação que ele fazia de seus excessos em segundo plano. “A Igreja Católica sempre se recusou, e continua a se recusar, a fazer com que o mercado seja o regulador supremo [...] da vida social”, João Paulo II declarou em 1991. “Existem coisas que são de direito do homem apenas pelo fato de ele ser homem.” Dois anos depois, ele observou que a Igreja sempre “se distanciou da ideologia capitalista, considerando-a responsável por graves injustiças sociais”.

Já Francisco, ao falar com tanta clareza sobre o assunto – quase sempre deixando de lado o texto preparado, para que ninguém leve a culpa por suas palavras –, “não tem como ser distorcido”, diz Michael Sean Winters, do National Catholic Reporter. “Simplesmente não tem como. O que ouvimos são tentativas de manipular e cortar o que ele está dizendo, de uma maneira que só posso caracterizar como racista: ‘Ah, o coitado do argentino não compreende como nós, norte-americanos, somos maravilhosos’.”

Agora, é importante nos lembrarmos, mais uma vez, de que Francisco, apesar de todo o liberalismo de suas mensagens econômicas e ambientais, ainda encabeça uma organização com diversas posições medievais em relação às mulheres e à sexualidade. Em sua encíclica do clima, Francisco liga o aborto à cultura de consumismo perdulário que ele condena. Além disso, reafirmou a oposição da Igreja ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na passagem pelos Estados Unidos, se encontrou secretamente com Kim Davis, funcionária de um cartório em Kentucky que foi presa após se negar a fornecer licenças matrimoniais a qualquer casal, mesmo heterossexual, depois que a Suprema Corte norte-americana determinou que o casamento entre homossexuais seria legal em todo o país. Segundo Kim, durante o encontro com o papa, ele a teria encorajado a manter sua convicção.

“A maior parte de nós tenta enquadrá-lo em uma lógica norte-americana, no sistema binário esquerda-direita, e isso simplesmente não funciona”, diz Rod Dreher, editor sênior da revista The American Conservative, que escreve com frequência a respeito de religião. Dreher não é mais católico – ele se uniu à Igreja Ortodoxa oriental depois dos escândalos de pedofilia –, mas se lembra que, um verão antes de sua conversão, ele estava saindo da redação da revista National Review, onde trabalhava na época, e mencionou a uma editora que precisava pegar uma encomenda da CSA (Agricultura com Apoio Comunitário, em português). “Ela disse: ‘Nossa, mas isso é tão de esquerda!’”, Dreher lembra. “Eu pensei: ‘Que coisa estranha. O que tem de tão de esquerda em comprar alimentos de agricultores locais?’ Fez com que percebesse que, se você for ser um católico fiel, isso te coloca em atrito tanto com o liberalismo quanto com o conservadorismo convencional.”

Tendo mantido uma postura menos radical, Francisco assinalou que está aberto a discutir mudanças de doutrina mais sérias. Este mês, um sínodo – encontro eclesiástico oficial convocado para discutir a doutrina – proposto por Francisco reúne bispos do mundo todo para debater questões ligadas à família; um esboço de um encontro inicial no segundo semestre do ano passado incluía uma sessão intitulada “Boas-vindas a pessoas homossexuais”, observando que “os homossexuais têm dons e qualidades a oferecer à comunidade cristã”, e também recomendava maior tolerância ao divórcio e à coabitação fora do casamento. Esses parágrafos não foram aprovados pelo sínodo e foram retirados do texto. Mas o professor Michael Lee avalia o debate como “inacreditável. O mais inacreditável, talvez, seja o fato de que o público teve permissão para ver a discordância. Isso nunca teria acontecido na época de João Paulo II ou Bento”.

Lee observa que Francisco falou de maneira crítica das próprias tendências “autoritárias” quando serviu como superior provincial jesuíta, em Buenos Aires. “A humildade dele e sua ideia de como deve ser a liderança vão contra esse autoritarismo”, diz Lee. “É uma lição que ele deve ter aprendido na Argentina, e em parte acho que ele está falando daquela versão de si mesmo de 36 anos quando permite que esses debates abertos aconteçam. Ele não mudou a doutrina, não. Mas a Igreja existe há 2 mil anos! Essa mudança acontece em um certo ritmo. E a mudança não pode acontecer sem discussão.”