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As crônicas de Dookie

Vinte anos depois, o Green Day faz uma retrospectiva do álbum que levou o pop punk da sarjeta para a MTV

David Fricke | Tradução: Lígia Fonseca Publicado em 09/05/2014, às 13h24 - Atualizado às 13h29

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<b>Mantendo as raízes</b> O trio em Berkeley, em 1992, muito antes do sucesso de Dookie;  - Cortesia de Rob Carvalho
<b>Mantendo as raízes</b> O trio em Berkeley, em 1992, muito antes do sucesso de Dookie; - Cortesia de Rob Carvalho

Em 1º de fevereiro de 1994, o Green Day comemorou o lançamento do terceiro disco da banda, Dookie, no clube Slim’s, em São Francisco (Estados Unidos). O vocalista Billie Joe Armstrong estava nervoso naquela noite, mas não tinha nada a ver com o fato de que Dookie era o primeiro álbum da banda em uma grande gravadora, a Reprise – era porque o Green Day iria tocar na mesma noite que o Dead Milkmen, uma banda de punk cômico famosa nos anos 1980 graças a sucessos que se tornaram cult, entre eles a música “Bitchin’ Camaro”. “Lembro que pensei: ‘Não quero tocar depois desses caras – eles têm músicas boas’”, conta Armstrong.

Na verdade, naquele momento, o Green Day – Armstrong, o baixista Mike Dirnt e o baterista Tré Cool, todos com 21 anos – tinha as melhores faixas: as 14 canções incendiárias de Dookie, incluindo a histeria em alta velocidade de “Basket Case” e os hinos do tédio “Burnout” e “Longview”.

A reação dos 500 espectadores no Slim’s foi imediata e um pouco assustadora, uma euforia desengonçada de moshs e rodas de pogo flagrada em um videoclipe para o single “Welcome to Paradise”, filmado naquela noite. “As pessoas estavam genuinamente explodindo de energia”, relembra Armstrong, agora com 42 anos, “como se quisessem fazer parte de algo que ninguém sabia o que era. Nem nós”.

Hoje, Dookie é um dos álbuns mais bem-sucedidos já lançados da banda, com mais de 10 milhões de cópias vendidas só nos Estados Unidos, e o Green Day é o maior nome do punk norte-americano. Os 11 discos de estúdio do grupo, incluindo a bombástica ópera-punk American Idiot (2004), venderam um total de 75 milhões de cópias no mundo inteiro.

“Não tínhamos ideia de que estávamos cimentando o caminho para o resto de nossas vidas”, alega Dirnt, de 41 anos. “Estávamos pegando as dicas de nossas bandas preferidas dos anos 1960, como The Who e Kinks – descubra sua próxima jogada, mantenha as músicas o mais vivas possível.”

Dookie pode ser a melhor história de sucesso inesperado do rock alternativo dos anos 1990. Rob Cavallo era um representante júnior do departamento de A&R (Artistas & Repertório) na Reprise, subsidiária da Warner Bros., quando contratou o Green Day e, depois, coproduziu o álbum com a banda no segundo trimestre de 1993. “Havia gente na Warner Bros. que dizia: ‘Por que você quer contratar uma banda punk? O punk nunca vendeu muito’”, conta Cavallo. “Aquela era a época do grunge, caracterizada por muita bateria, ritmo lento e muita reverberação” – enquanto Dookie era rápido, límpido e seco.

“Percebi que havia uns 100 mil moleques legais que gostavam de punk”, afirma o produtor, hoje chairman da Warner Bros. Ele errou por dois zeros à direita. “Fomos a primeira banda de pop punk a estourar.”

Em uma era definida pelo peso de Seattle e pela tristeza do Nirvana e do Alice in Chains, músicas como a lembrança adolescente de Armstrong em “Welcome to Paradise” e a alegremente vingativa “Having a Blast” combinavam o minimalismo do punk clássico, o barulho pop dos anos 1960 e introspecção impávida, forjados nos ideais deslocados do underground da região de East Bay, em São Francisco. Armstrong e Dirnt, amigos de infância que começaram a tocar juntos aos 12 anos, batizaram a banda de Green Day pelo apreço comum por passar dias sentados só fumando maconha. Na van que eles usavam para sair em turnê, “dookie” era um eufemismo para a diarreia causada pela comida ruim na estrada; quando questionado sobre o nome do álbum, Armstrong responde: “Era uma coisa de maconheiro”.

Essa desculpa surge com frequência quando o Green Day fala sobre Dookie hoje em dia. Como era ser o centro de uma guerra entre grandes gravadoras? Dirnt diz: “Estávamos muito chapados na maior parte do tempo”. Como Cool acabou cantando a faixa bônus engraçadinha “All by Myself”? O baterista fala: “Não lembro. Provavelmente estava chapado”. Como decidiram assinar o contrato com a Reprise? Armstrong confessa: “Provavelmente estávamos chapados. Tenho de dizer, sempre estávamos chapados”. Ele dá um suspiro honesto de alívio. “Graças a Deus as coisas acabaram desse jeito.”

“Só tenho um arrependimento”, continua Dirnt, em retrospectiva, “que é ter ficado chapado demais por tempo demais”.

Tré cool, hoje com 41 anos, cita um modelo improvável para Dookie: Please Please Me, dos Beatles, que tocava em alta rotação na van do Green Day. “Queríamos gravar um disco que fosse ótimo de ouvir do começo ao fim”, afirma ele. “Um disco que fizesse você querer trocar o lado da fita várias vezes.”

Os dois primeiros álbuns do Green Day – 39/ Smooth (1990), gravado com o baterista original, John Kiffmeyer, e Kerplunk (1992) – foram lançados pelo pequeno selo Lookout! Records, de Berkeley. Quando o Green Day assinou com a Reprise, a reação foi rápida e cruel. Armstrong conta uma história desse período confuso, quando tinha contrato com uma grande gravadora, mas ainda nada do dinheiro. Ele foi a uma festa em uma casa invadida em Berkeley com a então namorada (imortalizada em “She”, de Dookie), carregando várias latas de cerveja e pães que encontrou em uma lixeira. “Entrei e um cara disse: ‘Este é aquele filho da puta do Green Day. Ele assinou contrato com uma corporação. Você é um fascista do caralho’”, ele relembra. Armstrong acabou em uma briga com o acusador. “Deixei os pães, peguei a cerveja e fui embora. Estava enfurecido.”

Dirnt afirma que o Green Day não teria assinado com uma grande gravadora “se não fosse por nós três estarmos tentando sobreviver”. “Ser um vendido, pessoalmente, seria ter voltado a fritar hambúrgueres, instalar aquecimentos e pintar. Quero ter uma vida na qual me importo com alguma coisa ou na qual todos ao meu redor também estão deprimidos?”

“Foi isso”, o baixista declara firmemente. “Sobrevivência do coração.”

Já Armstrong confessa animadamente que eles “acabaram com todo o sangue das gravadoras”, lembrando os inúmeros jantares grátis, as bebidas, as viagens de avião até Los Angeles e a baderna geral que o Green Day aproveitou enquanto era cortejado por grandes selos. Mas o grupo era sério quando precisava ser. Dirnt conta que, durante uma reunião, o dono de gravadora David Geffen afirmou: “Kurt é como um filho para mim”, falando sobre Kurt Cobain, do Nirvana. “Falei: ‘Que seja, cara’, mas lembro que pensei: ‘Não quero ser o

segundo filho, o outro filho. Se ele significa tanto, para que você me quer?’”

A banda assinou com a Reprise por um adiantamento modesto de US$ 215 mil. Metade desse valor foi usada para gravar Dookie no Fantasy Studios, em Berkeley. O restante foi para novos equipamentos, uma nova van de turnê e menos preocupação com aluguel e comida.

Criado em Rodeo, na Califórnia, caçula de seis filhos, Billie Joe Armstrong tinha 10 anos quando o pai, músico de jazz e caminhoneiro, morreu de câncer, uma perda que ainda o assombrava quando ele compôs “Wake Me Up When September Ends”, de American Idiot (2004). Ele abandonou a escola depois de formar com Dirnt – nascido em Oakland como Michael Ryan Pritchard – a primeira banda dos dois, Sweet Children. Por um tempo, os amigos viveram em uma casa invadida em Oakland que inspirou “Welcome to Paradise”, gravada pela primeira vez para o disco Kerplunk.

“Basket Case” e “When I Come Around” também eram autobiográficas. “Tive ataques de pânico minha vida inteira”, conta Armstrong sobre a primeira. “Eles vinham no meio da noite, quando eu estava dormindo. Ficava andando no meu bairro por uma hora para me acalmar.” A insônia do vocalista, aliada a remédios controlados e bebedeiras, teve um clímax dramático em setembro de 2012, quando ele teve um colapso nervoso público durante um show em Las Vegas. Armstrong procurou tratamento e está sóbrio desde então.

O frontman compôs “When I Come Around” sobre outra ansiedade: suas longas separações da então namorada, Adrienne. Os dois se conheceram em um show do Green Day em 1990, ficaram anos separados, casaram-se em julho de 1994, nomeio da turnê de Dookie, e têm dois filhos adolescentes (Dirnt é casado e tem três filhos; Cool, nascido Frank Edwin Wright III, ficou noivo em janeiro e tem dois filhos de casamentos anteriores).

Todas essas canções eram como uma espécie de diário para Armstrong. “Vejo essas músicas assim: ‘Se conseguir botar no papel o que estou sentindo, pelo menos saberei o que está acontecendo comigo’.” Ele cita o primeiro verso de “Burnout” – “I declare I don’t care no more” (Declaro que não me importo mais) – e reconhece as tendências suicidas em “Having a Blast”, “uma faixa sobre querer se dar um tiro porque você está passando por alguma espécie de tormento”.

“Eu estava contra tudo”, diz Armstrong estoicamente, “inclusive contra entrar para uma grande gravadora. Fico feliz por termos feito isso – mas eu estava me sentindo torturado na época. Sabia que estava tomando uma decisão e não podia voltar atrás. Seríamos uma banda enorme – ou não”.

Registrar todo esse tormento no disco foi fácil. O Green Day ia de bicicleta para o Fantasy Studios e trabalhava do meio-dia à meia-noite, seis dias por semana. Eles abandonaram a maconha durante as sessões – estavam “encantados pela experiência de gravar”, diz Dirnt. “Além disso, já tínhamos gravado um disco incrivelmente chapados, o Kerplunk. ” Em vez de Cannabis, houve “muito café” no estúdio, Cavallo comenta. Uma faixa em especial desse período, um sucesso certeiro, ficou guardada durante um tempo. Armstrong tinha a balada “Good Riddance (Time of Your Life)”, que compôs em 1993 e apresentou aos outros para Dookie. Cavallo e a banda sentiram que ela era errada para o disco. “Não encaixava”, lembra o produtor, que também sabia, no entanto, que “ela seria uma grande música”. O Green Day acabou gravando “Good Riddance” anos depois, enchendo-a de instrumentos de cordas, para Nimrod (1997). Lançada como single, a faixa foi um estouro, vendendo milhões de cópias e ganhando alta rotatividade na MTV.

Em abril de 1994, dois meses depois do lançamento de Dookie, o Green Day fez um show em Seattle e, depois, pegou a estrada por um dia e meio de volta à Bay Area. “Acordei na manhã seguinte”, lembra Armstrong, “e deveríamos começar a falar sobre o clipe para ‘Basket Case’”. Só que houve “um silêncio pesado na sala” depois que um dos empresários do Green Day contou à banda que Kurt Cobain havia sido encontrado morto em casa, em Seattle, depois de ter cometido suicídio.

“O Green Day e o Nirvana estavam em universos paralelos”, sugere Armstrong. “Não estávamos nas mesmas cenas, mas quando você estoura para o mundo, em comparação com o mundo em que estava antes, existe essa linguagem – as pessoas não te entendem mais. Você perde muitos amigos, e também acontece essa coisa nova – gente querendo ser seu amigo. ‘Só que você não entende o que está rolando, cara’.”

Armstrong sobreviveu a 1994, ano em que, entre outras coisas, ele instigou uma notória luta na lama no festival Woodstock e fez um show no Madison Square Garden no qual tocou nu, no Natal, só com a guitarra cobrindo a virilha. Em meados de 1995, o Green Day começou a gravar o álbum seguinte, Insomniac, uma reação de guitarras pesadas e letras ferozes ao sucesso pop de Dookie. “Todos estávamos com medo de ser abandonados, de não sermos levados a sério”, Dirnt argumenta. “Por mais que isso seja divertido, não é uma piada. É nossa vida.”

“Saímos da turnê e a banda continuava praticando cinco dias por semana”, diz o baixista com orgulho. Os três amigos ensaiaram as músicas para Insomniac e Nimrod na garagem de um professor de Dirnt e Armstrong do ensino médio. “Aquela era a nossa âncora.”

O Green Day comemorou o 20º aniversário de Dookie um pouco mais cedo, relembrando o álbum inteiro na sequência em dois shows na Inglaterra no ano passado, mas a banda já toca boa parte dele ao vivo, em cada show, desde que foi lançado. “Tocarei ‘She’ pelo resto da minha vida”, Armstrong promete. “Amo essa música e acho que ela envelheceu bem comigo. ‘Basket Case’ também, pelo motivo oposto – agora é sobre outras pessoas. Quando olho para o público enquanto tocamos esta, eles têm um momento só deles. Nessa hora, sou o espectador.”

“Sou tão grato por esse álbum”, ele continua, praticamente gritando sua gratidão. “É algo que continua rendendo. Tem gente que me diz: ‘Meu Deus, aquela época, aquela lembrança – os primeiros cinco anos da década de 1990 foram tão bons’”, ri Armstrong. “E eu digo: ‘Você está certo!’”

Então, ele dá uma lista de motivos pelos quais aqueles anos foram bons: “Creep”, do Radiohead, “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana, “Alive”, do Pearl Jam, “Black Hole Sun”, do Soundgarden e, de maneira audaciosa, sua própria “Basket Case”.

“Fizemos parte de algo em que as pessoas estavam cavando mais fundo dentro de si mesmas, no rock and roll, mais do que elas haviam cavado em muito tempo”, ele finaliza. “E isso foi notado.”