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Didático e emocionante, Cora Coralina – Todas as Vidas conta a surpreendente histórias de uma das maiores escritoras do Brasil

Misto de documentário e drama, filme mostra todas as facetas da poetisa que foi consagrada somente nos últimos anos de vida.

Paulo Cavalcanti Publicado em 12/12/2017, às 11h13 - Atualizado às 12h53

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As atrizes que interpretaram as diferentes fases de Cora Coralina. - Divulgação
As atrizes que interpretaram as diferentes fases de Cora Coralina. - Divulgação

No começo da década de 1980, uma senhora de 90 anos começou a aparecer na mídia impressa e em programas de televisão. O nome dela era Cora Coralina, escritora e poetisa nascida em Goiás. De repente, ela estava sendo entrevistada por Hebe Camargo e várias celebridades queriam tirar foto com ela. Apesar da aparência frágil e da dificuldade de locomoção, a velhinha era lúcida como poucos. E as palavras dela carregavam uma sabedoria milenar por meio de uma voz firme que ainda impressionava. Cora Coralina, na verdade, era o pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Com muita dificuldade, ela havia publicado Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, seu primeiro livro, em 1965, quando tinha 75 anos. Excetuando vizinhos e parentes, porém, ninguém sabia quem era ela ou o que havia feito da vida.

Cora só foi realmente descoberta em 1980, quando Carlos Drummond de Andrade referendou a obra dela em uma matéria no Jornal do Brasil. “Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. Ela é, para mim, a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina, passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje”, disse ele no texto.

Os críticos de literatura se encantaram e notaram que Cora não era apenas uma curiosidade, era realmente uma das mais talentosas e incisivas escritoras nascidas em nosso território. O interesse pela pessoa dela foi enorme e os jornalistas descobriram que a autora, além de tudo, tinha uma vida cinematográfica. Cora morreu em 1985, e esses últimos anos de vida dela foram frenéticos – ela recebeu um sem número de homenagens. A consagração veio tarde, mas foi definitiva.

A incrível vida e a essencial obra da escritora são revistas no docudrama Cora Coralina - Todas as Vidas, que estreia nesta quinta, 14. Dirigido por Renato Barbieri, o filme é baseado no livro Cora Coralina - Raízes de Aninha, de Clóvis Carvalho Britto e Rita Elisa Seda, que acaba de ganhar sua sexta edição, pela editora Ideias e Letras. O longa traz depoimentos dos autores do livro, de estudiosos, de pessoas que conheceram a escritora, e resgata cenas de arquivo da própria Cora. Ele é por reconstruções dramáticas atuadas por Camila de Queiroga Salles, Camila Márdila, Maju Souza, Tereza Seiblitz e Walderez de Barros, que vivem Cora em diversas fases. Beth Goulart e Zezé Motta também aparecem interpretando textos e poesias de Cora.

Como apontou Carlos Drummond, Cora era uma pessoa sem posses, extremamente humilde, que mesmo sem acesso a rádio, televisão e telefone era dona de uma cultura e visão de mundo impressionantes, apenas lendo os poucos jornais que chegavam até ela.

Ela se casou, teve alguns filhos, mas no geral sempre foi uma pessoa solitária e andarilha. Por cerca de 45 anos, viveu em diferentes cidades no estado de São Paulo. Somente quando voltou para Goiás pensou em publicar suas obras. Um dos grandes dons dela era o de observação, isso que ainda impressiona na escrita dela: uma prosa/poesia descritiva com tom um tanto fatalista e naturalista, mas repleto de compaixão e humanidade. Mesmo com um aspecto folclórico e rural e alguns temas situados em um Brasil de outrora, as escritas de Cora nunca perderam a atualidade.

Enquanto rodava o país e colhia material, a artista criava a família e escrevia para ela mesma. Cora, precisando ganhar a vida, se virava como doceira e, por causa deste dom, tornou-se bem conhecida na região. Era devota de São Francisco e, ainda que ela própria fosse uma pessoa bem pobre, sempre ajudava os necessitados. Cora escreveu em vários jornais nas cidades onde viveu e também teve participação na Revolução Constitucionalista de 1932. Com suas atitudes, lutou pela emancipação da mulher em tempos nos quais ninguém falava disso, especialmente em locais distantes das grandes metrópoles. Ela criou poesias falando de prostitutas, menores abandonados, presidiários e homens do campo e também se envolveu em questões ambientais.

O filme conta como surgiu o marcante apelido com o qual se tornou conhecida. Na região onde a futura escritora nasceu, a padroeira era a Santa Ana. Assim, muitas meninas eram batizadas de Ana ou de alguma variação do nome. Quando Cora ainda era garota já achava que um dia seria conhecida por alguma coisa importante, não queria ser “mais uma Ana da região”. Assim, surgiu Cora Coralina. Uma vez, ela definiu-se assim: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”. Todas estas facetas estão em Cora Coralina – Todas as Vidas, retrato imperdível desta figura impar da cultura brasileira.