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Fernanda Abreu superou uma separação e a morte da mãe para lançar o primeiro disco de inéditas em mais de uma década

"Love is the new money. O que é a vida senão um encontro? Qual a graça da vida senão as outras pessoas?", filosofa a cantora

Mauro Ferreira Publicado em 21/06/2016, às 16h47 - Atualizado às 20h43

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Fernanda Abreu: dor passada, suingue bom - Giovanni Bianco
Fernanda Abreu: dor passada, suingue bom - Giovanni Bianco

Em meados de 2008, Fernanda Abreu finalizava a turnê do CD e DVD MTV ao Vivo quando começou a sentir necessidade de gerar outro disco. Na época, a cantora e compositora carioca jamais poderia imaginar que demoraria oito anos para dar à luz o oitavo álbum da carreira solo, iniciada em 1990. O começo de uma crise no casamento com o artista gráfico Luiz Stein, a entrada da mãe em coma por causa de um tumor no cérebro e a adaptação lenta e gradual do mercado fonográfico ao mundo digital adiaram e atrapalharam a conclusão do disco.

Primeiro álbum de Fernanda em dez anos, Amor Geral chega enfim ao mundo neste mês de maio, após a resolução da série de turbulências na vida pessoal da artista. Oficializada em 1983, a união com Stein não resistiu à crise detectada em 2008 e acabou em 2011, em separação comunicada oficialmente apenas em 2012. “Em um casamento de 28 anos, você leva anos se separando”, pondera a artista. Enquanto o relacionamento com Stein ruía, a mãe dela, Vera Marina, passou longos seis anos em coma até morrer, em 2014. “Eu vivi o luto de ver minha mãe em coma durante esse tempo todo e de ver meu casamento acabar, tendo que dar atenção às minhas duas filhas. A minha vida pessoal demandou muito de mim”, diz a cantora, que se inspirou na dura jornada da mãe para compor “Antídoto”, única música que assina sozinha em Amor Geral.

A caminho dos 55 anos de idade, a serem festejados em 8 de setembro, a carioca Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu fala de maneira segura dentro do estúdio caseiro que mantém no Jardim Botânico, oásis de paz e música entranhado em abastado bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Afinal, Fernanda viveu a fase nababesca do mercado do disco ao ser projetada nacionalmente na década de 1980 como integrante da Blitz, banda que invadiu a praia da MPB no verão de 1982, abrindo as portas da indústria para o pop-rock brasileiro. Discos de ouro e turnês milionárias faziam parte do pacote. “Sou de uma época em que era possível fazer um nome nacional como eu consegui fazer. Por isso, continuei trabalhando e estive sempre me movimentando nestes dez anos que separam Amor Geral do disco ao vivo da MTV.”

Agora, o mundo da música é outro. A artista também é outra. “A gente viu desmoronar um modelo de negócio e ficou todo mundo apreensivo”, ela pontua. “Hoje estamos todos, artistas e consumidores, à mercê de quem controla as plataformas digitais. O único lugar onde o dinheiro ainda parece entrar fácil é no mercado musical do agronegócio. Até hoje eu me pergunto: ‘Por que gravar um disco de dez músicas’?”

A resposta pode estar no ímpeto de criação que move a artista. “É um estímulo interno de emoção e de afeto”, Fernanda conceitua. Impelida pela vontade de compor e gravar, a artista abriu parcerias com músicos contemporâneos, como Donatinho e Qinho, e se reconectou com antigos colaboradores, caso de Fausto Fawcett, parceiro da artista na composição da faixa-título de Amor Geral, assinada também por Wladimir Gasper. Como o projeto ao vivo da MTV teve caráter revisionista, Fernanda não apresentava repertório inédito desde Na Paz, álbum de 2004.

Fawcett é nome decisivo na discografia solo da cantora, estando presente desde o primeiro álbum feito por ela após o desligamento da Blitz. No segundo trabalho solo, SLA 2 – Be Sample (1992), criou com ela e Carlos Laufer “Rio 40o Graus”, hino da “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”. SLA 2 foi um dos primeiros discos brasileiros a mergulhar fundo no universo da música eletrônica e a propagar com orgulho já no título o uso do sample como ferramenta de criação. Dois anos antes, em 1990, Fernanda já experimentara uma linguagem brasileira para a dance music ao mixá-la com a disco music dos anos 1970 em SLA Radical Dance Disco Club. Em 1996, ela caiu no suingue do samba-funk, absorveu o veneno da lata e se transformou na “garota carioca suingue sangue bom”, epíteto que a acompanha até hoje.

Mãe de duas filhas, Sofia e Alice, Fernanda se porta atualmente como uma “jovem senhora” carioca de suingue sangue bom. Sempre abriu espaço para conversas francas com as filhas e fez questão de estar perto delas para falar sobre qualquer que fosse o assunto. Purga o sofrimento de quase toda mãe, às voltas com o caos da cidade abatida por balas perdidas que ceifam vidas diariamente. Sofia, que faz 24 anos em junho, anda de ônibus. Alice, de 16 anos, também. E às vezes cisma de sair a pé à noite pelo Rio, para preocupação de Fernanda. Mas tudo é negociado. “Também sou uma mãe supertradicional. Quando eu posso, levo e busco. Ou combino com outras mães. Alice e Sofia também andam de Uber, usam aplicativo de táxi. Elas ficam gritando por liberdade. Nessa idade, os jovens acham que podem tudo, e é fundamental que a gente esteja presente como mãe. Vi minhas filhas crescerem de fato, isso foi muito importante para mim. E aqui em casa ninguém é dono da verdade. Sempre teve diálogo, reflexão, olhar crítico. Mudar de ideia nunca foi problema.”

Após a separação de Luiz Stein, Fernanda Abreu se envolveu musical e afetivamente com Tuto Ferraz, baterista do Grooveria, coletivo paulistano. A união amorosa permanece, e a musical está exposta na ficha técnica de Amor Geral. Ferraz é parceiro dela em “Valsa do Desejo” e toca bateria, percussão e teclados em seis das dez músicas do disco.

O título do álbum extrapola a paixão de Fernanda por Ferraz. “O amor parece banal, mas atualmente representa a bandeira da resistência”, ela declara. “Love is the new money. O que é a vida senão o encontro? Qual a graça da vida senão as outras pessoas? Nesse disco, eu tomo posição política em favor do amor. Mais do que nunca, é preciso exercitar essa palavra chamada tolerância. Uma palavra que parece ingênua, porque o capitalismo trouxe cinismo para o mundo, para as religiões. Por exemplo: as pessoas precisam entender que já há novos modelos de família. É fundamental falar de liberdade.”

Fernanda parece ter construído o próprio mundo com base no amor que prega de forma ampla e irrestrita. “A separação do Stein foi dolorosa. O luto da minha mãe, também. O que me segurou foi o amor”, reitera a artista. A segurança foi reforçada com a decisão de fazer análise em 2008, o primeiro ano da crise no casamento e da entrada da mãe em coma. Antes, porém, Fernanda já absorvera violenta lhe foi dada quando tomou consciência de que a mãe, então com 38 anos, tinha um tumor na cabeça. “Aquilo foi um choque na minha vida. A partir dali, eu fiquei mais forte.”

Expiado o sofrimento, a força da criação musical voltou a se manifestar para valer a partir de 2013. As dez músicas de Amor Geral foram compostas nos últimos três anos. As dores estão lá, entranhadas no DNA de um disco dançante, calcado nos subgraves e repleto de canções autobiográficas.

Amor Geral reaviva a identidade musical de Fernanda sem copiar fórmulas e sons de discos anteriores. “Quando eu gravo um álbum, busco sempre apresentar alguma novidade dentro da minha trajetória. Neste eu quis enfatizar uma assinatura grande dos subgraves que estão no trap, no dub, no funk, no surdo do samba e no pop R&B”, ela enumera. “Ouvi e pesquisei muita coisa. No disco tem um pouco de house, algo de charme, tem soul e tem também funk carioca feito na contramão do funk pop que se ouve hoje nas rádios.”

Fernanda está falando da faixa “Tambor”, parceria com Gabriel Moura e Jovi Joviniano que traz também a assinatura ilustre do DJ e produtor norte-americano Afrika Bam-baataa. “O pop brasileiro ficou muito MPB nos últimos anos. Entrou numa onda lo-fi, com muito ukelele, muito violãozinho. Está muito assim hoje: ou muito MPB ou muito indie. Eu queria voltar ao disco com um negócio mais poderoso, um som mais vigoroso, mais porrada”, Fernanda avisa.

Defensora do funk desde a explosão do gênero na década de 1990, ela ainda detecta preconceito no estilo hoje domesticado pela indústria fonográfica com o toque pop que dá o tom do som de estrelas como Anitta e Ludmilla. “Eu percebo que o funk carioca já vem com preconceito embutido em si. A própria expressão ‘funk carioca’ vem com esse a dendo do preconceito. Mas o funk carioca é a música eletrônica brasileira. Eu às vezes fico chateada de perceber que as pessoas ficam tentando se livrar dele. A Anitta, por exemplo, é boa, tem musicalidade e não precisa forçar a barra para dizer que é pop e que não é mais funk.”

Sem a proteção da indústria fonográfica dos tempos idos, Fernanda Abreu virou também uma mulher de negócios. Bancou e administrou, sozinha, a produção executiva de Amor Geral, disco formatado por sete produtores. Do time formado por Liminha, Rodrigo Campello, Sérgio Santos, Tuto Ferraz, Wladimir Gasper e a dupla T.R.U.E. (formada por Qinho e Gui Marques), somente Liminha já atuava como produtor musical na década de 1980, quando o Brasil conheceu a voz e o rosto da cantora, mas não o som, já que na seminal banda Blitz Fernanda era somente vocalista, sem poder de criação no repertório (ela se derrete, no entanto, pelo líder do grupo, Evandro Mesquita: “Ele é um fofo. Sempre nos falamos”).

Concluídas as gravações de Amor Geral, a cantora acertou com a gravadora multinacional Sony Music a distribuição do álbum. Antenada com os rumos da indústria, ela pediu ênfase na divulgação no mundo digital. “Nunca se ouviu tanta música e nunca foi tão difícil fazer negócio com ela”, Fernanda conclui, sem saudosismo.

Amor ao Funk - a artista sai em defesa do gênero

"Sei que tem um monte de funk que, para muita gente, é difícil digerir. Tem o funk da putaria, do proibidão. Tem o funk mal feito. Mas as pessoas veem como se todo funk se resumisse a isso. E mesmo o cara do proibidão fala sobre o que ele está vivendo e sobre o que está se passando em determinada parte da cidade. A questão é que o preconceito contra o funk embute racismo e está diretamente ligado a esse racismo. Os caras são pretos. E tem essa coisa da classe média brasileira de determinar o que é bom gosto. A MPB é o bom gosto, o fino da bossa. No entanto, a música brasileira é muito rica, tem muita coisa bacana acontecendo. Tem muito funk horroroso, mas também tem muita gente chata pra caralho tentando fazer MPB e não decola. O samba conseguiu se livrar do preconceito e demorou muito para obter respeito, os caras apanhavam e tudo. Pelo visto, ainda vai demorar para o funk também conseguir esse respeito." - Fernanda Abreu

"Abreugrafia" na web

Fernanda vai relançar discografia completa em edição digital

Precedido em abril pela edição do single com a música "Outro sim", composta por Fernanda Abreu com Gabriel Moura e Jovi Joviniano, o álbum Amor Geral traz a cantora e compositora carioca de volta ao mercado fonográfico seis anos após coletânea editada pela gravadora Som Livre em 2000 na série Perfil. Ao negociar com a Sony Music a distribuição do disco em que apresenta dez músicas inéditas formatadas por seis produtores, em ação orquestrada pelo selo Garota Sangue Bom, a artista incluiu no contrato a reedição da discografia completa nas plataformas digitais. Quase toda lançada originalmente via EMI Music e até então fora de catálogo, a obra fonográfica de Fernanda estará disponível nos serviços de streaming e nas lojas virtuais no segundo semestre de 2016. “Não descartamos a possibilidade de editar uma caixa com os álbuns no formato físico”, avisa Fernanda.

Mesmo que o box não saia, novas gerações vão ter acesso a edições remasterizadas de álbuns como SLA Radical Dance Disco Club (1990), o primeiro trabalho solo de Fernanda Abreu, produzido por Herbert Vianna e Fábio Fonseca. Neste disco, a artista já promoveu o uso de samples, iniciativa então pioneira no Brasil que seria expandida e intensificada no álbum posterior SLA 2 – Be Sample (1992). O repertório deste segundo disco solo apresentou releitura de “Jorge da Capadócia” (1975) aprovada por Jorge Ben Jor, compositor do tema. Três anos depois, Da Lata (1995) ampliou o público da artista com uma azeitada mistura de samba e funk que rendeu sucessos como “Brasil é o País do Suingue” e “Veneno da Lata”. Na sequência, em 1997, Raio X – Fernanda Abreu Revista e Ampliada rebobinou músicas de álbuns anteriores da cantora em novas gravações e apresentou releituras inéditas, indo além do formato de best of das coletâneas. Seguiram outros dois álbuns, Entidade Urbana (2000) e Na Paz (2004), de menor repercussão, sendo que este foi o primeiro disco editado pelo selo aberto por Fernanda, Garota Sangue Bom. O retrospectivo CD e DVD MTV ao Vivo – único título da discografia da artista lançado com distribuição da Universal Music – fechou em 2006 o primeiro ciclo de carreira solo retomada neste ano de 2016 com Amor Geral.